Cronistas do blog

As mentiras também ajudam a viver
Cléo Farias de Araújo

Na canção “Traumas”, gravada em 1971, Roberto Carlos, em certo trecho, canta: “Meu pai um dia me falou pra que eu nunca mentisse, mas ele também se esqueceu de me dizer a verdade da realidade do mundo que eu ia viver”.

Meditando nessa expressão, fiquei a pensar até que ponto o cantor tinha razão. Afinal, meus pais e demais parentes sempre nos ensinaram a sermos verdadeiros e que, como a mentira tem pernas curtas, nos recomendavam jamais faltar com a verdade. Os Padres Vitório Galliani, Paulo di Coppi e Jorge Basile, nas aulas de catecismo, também nos mandavam seguir a mesma linha de atitude.

Com o passar do tempo, aqui e acolá, eu percebia certas situações, digamos assim, esquisitas dos meus pais, muitas vezes secundadas e/ou confirmadas pelos mais velhos. Por exemplo: Em época de vacas magras, a gente comprava uma lata de conserva e um quilo de farinha. Ao misturar, quase não dava pra ver os pedaços da carne enlatada. Mamãe dizia que era pra não dar dor de barriga, pois conserva era indigesta e se a gente comesse muito naquele dia, ia passar mal.

Questionamento: Minha imaginação trabalhava e algumas vezes, eu olhava pra barra de sabão pintadinho (eu acreditava, com firmeza, que era feito de conserva) e pensava que, se misturasse um pouco, o farofão ficaria melhor. Mesmo que desse dor de barriga!

Em outros momentos, quando o dinheiro não dava pra comprar farinha, mamãe servia só a galinha cozida e o caldo (ou o que tivesse de comida). Pra completar o almoço, relatava que estávamos com dor de garganta e farinha só iria piorar a situação. E mais: era melhor comer logo, antes que o bichano do vizinho viesse nos furtar. Sem comer farinha por uns dois dias, a gente ficava logo bom da garganta e não iria perder o passeio do final de semana, na granja do Dr. Celso.

Questionamento: A gente abria a boca na frente do espelho e não via nada de anormal.

Se, naquele horário das três da tarde, passava o picolezeiro ou o homem do cascalho, se as vacas estavam gordas, a gente podia chamar o vendedor, pois ia ter festa. Contudo, se a coisa estava braba, a resposta era que o produto oferecido na rua não tinha higiene e fazia mal pra garganta.

Questionamento:Embora apertássemos nossos pescoços em busca da algum sinal de doença, não achávamos nada.

De tanto questionar, num belo dia, meu irmão mais velho, acabou sendo “convencido” por umas boas “cinturãozadas” dadas pela mamãe, a tomar uma colher de azeite de andiroba (arrrrghhh!), “só pra prevenir”.

Vendo essas coisas acontecerem, por muito tempo, eu me perguntei:
E onde ficam os ensinamentos para não mentir?
Será que mentira é assim chamada só quando é praticada por criança?
Adulto não mente? Qual a versão para a atitude dos adultos?
A mentira, no sentido de enganar a fome e a falta de dinheiro, é permitida?
Será que os atos praticados por nossos pais, em tempos de vacas magras, serviam pra não deixar a tristeza entrar em casa?

Essas e outras perguntas passaram a povoar minha mente, até que lembrei de outra música, cantada por Jerry Adriani, que dizia assim:
“Quando eu fui criança
Tinha a esperança
De tudo um dia saber”.

Mais à frente, conclui:
Hoje, eu cresci. A vida já me ensinou
De tudo e até de amor
Mas algo não sei e ainda quero saber”.
Foi, então, que percebi que, ao crescermos, temos que virar bailarinos na dança da vida. O tempo passa e vejo que já até menti algumas vezes pros meus filhos, principalmente quando o pagamento estava prometido para aquele dia e não saía, ou quando o avião passava, na época do Círio de Nazaré e eles pediam pra ir à Belém. No primeiro caso, eu disse que a sorveteria estava fechada naquele dia; no segundo, disse que não havia mais passagens para vender: o avião estava lotado.

Experimentando o outro lado da situação, tenho que concordar que Roberto Carlos tinha razão, ao cantar, no final daquela música:
Agora eu sei o que meu pai queria me esconde
Às vezes as mentiras também ajudam a viver
Talvez um dia pro meu filho, eu também tenha que mentir
Pra enfeitar os caminhos que ele um dia vai seguir
”.

  • Pai, toda vez que lembro da sua infância sofrida, tomo forças para superar qualquer problema que eu esteja enfrentando, pois o senhor é o exemplo que no fim do túnel sempre existe uma luz.

    • Oi, meu bem. Obrigado pelas palavras. Vc também é uma maravilhoso exemplo, assim como seus irmãos, são o maior tesouro que Deus poderia me dar…e me deu!

  • A maior mentira que me faziam acreditar era de que o Papai Noel trazia presentes no dia de natal. Mas era uma mentira maravilhosa, pois eu esperava ansiosa a chegada do Papai Noel para me trazer um presentinho, por mais humilde que fosse. Acreditei no “Bom Velhinho”até os sete ou oito anos, mais ou menos.

    • Oi, Ivanete. Eu acredito até hoje e sempre acreditarei. Meus pais souberam contar a história tão bem, que continuo um eterno sonhador, mesmo porque, para mim, Papai Noel não está só na magia do Natal, mas perdura o ano todo. Uma prova disso é que em alguns lares a árvore de natal fica por muito tempo armada na sala. Lá em casa ela fica de novembro até o início de julho.

  • Hello! ^.^
    Achei mt legal sua cronica e nos ensina que por mais que a verdade seja boa, uma mentirinha serve para sair de algumas situações.
    E essa “mentirinha” passa de geração pra geração.
    Meus Parabéns !!! ^^

    • Oi, minha querida escritora. Obrigado pelo comentário. “Mentira” na dose e no momento certo, passam legal. Enganar a fome, dizer que o Papai Noel não teve tempo de passar em nossa casa, ou que perdeu o endereço, são coisas que ajudam a minorar as dificuldades. Beijão, querida!

  • Grande Cleo, fiquei encantada com seu artigo, relembrei minha infância. Mentiras saudáveis eram uma forma de proteger da realidade. Voce fala do cascalho, dá água na boca. Lembranças de um tempo que serviu para nos tornar pessoas ousadas e de sucesso. Parabens.

    • Você é a (grande poeta) Celina com quem trabalhei na CEA? Se for, onde vc anda? Bom te ver neste espaço cultural. Concordo com a ousadia e sucesso. Obrigado pela participação.

  • Estava sentido falta de suas crônicas. Linda, adorei, nossas mães , mulheres maravilhosas que souberam guiar nossos passos dando-nos a oportunidade de crescer na vida. Félicitations.

    • “Mis with a smile in the mouth”…Obrigado pela saudade. Isto só aumenta o desejo de mais escrever. Nossas mães driblavam as intempéries do destino, mais que mil Garrinchas juntos. Em TODAS as situações. Mãe é única. Missão dada diretamente por Deus…e que ninguém mais tem o condão de cumprí-la. Beijos. Vem visitar Macapá, please!

  • Como sempre um texto maravilhoso,nossas mães sabiam-sabem bem administrar a dose perfeita de verdade-mentira, fantasia e realidade no cuidado com nossas vidas. Que este aprendizado nos ajude com nossos filhos. Beijos.

  • Caro Cléo,
    Quando moleque,lembro-me bem do natal onde a ceia se resumia num copo de nescau e alguns biscoitos comprados na fábrica amapaense e mamãe sempre resmungando que aquilo ia nos fortalecer e fazer crescer mais rápido;era simplesmente uma doce falta da verdade para justificar a falta de recursos para sustentar a familia numerosa. Ah sim!ótima cronica. um grande abraço amigão.

    • Ê Mauro…ser pobre tem a vantagem da inventividade. Meu natal se resumia (???!!!) a dormir mais tarde (eu adoro isto!) por ir à missa do galo e, na manhã de 25, comer uma rosca de natal, no café da manhã. Belas lembranças. Abração!

    • O disfarce, a mimese e outros temperos também fazem parte da honestidade. Maquiar não é mascarar. Amenizar não é mentir é jeito que o jeito dá. Beijão, meu bem!

    • Oh, Marta…fico feliz que vc tenha gostado. Sou um eterno aprendiz das letras e procuro seguir bons ensinamentos. Obrigadão!

  • Caro Cléo, Como sempre, tudo muito pertinente em suas crônicas. No meu entendimento existem duas conotações para a mentira: A doce, a que nossos pais embalaram em nossos tempos de criança e que hoje utilizamos para amenizarmos as “aflições” em que nossos filhos e netos, principalmente os netos nos proporcionam; estas mentiras perdem o significado ante os valores que os nossos pais nos passaram e que temos a obrigação de passar em frente. Mentira amarga é a que alguns Mickeys(ninguém quer ser pateta), contam quando de seus depoimentos na PF ou na Justiça após a descoberta de uma operação fraudulenta ou os desvalores que passam aos filhos com seus enriquecimentos ilícitos. O segundo caso deve ser combatido tal qual a bactéria que vitimou a jovem Secretária de Estado aí na querida Macapá.
    Sds,

    • Obrigado, amigo Ruy. Os teus comentários, sempre abalizados, ajudam a nortear o que é bom, separando-o do joio. Ao crescermos, tomamos conhecimento dessas situações que nossos pais, com prudência e perícia, nos ajudam a ver a vida mais alegremente.

  • Cléo, um belo texto! Enquanto te lia, me perguntava o que é mentira? O que é fantasiar uma realidade? O que é polpar de uma dor? Muito bom!
    Um grande abraço, Cléo, paz e bem!

    • Não só ganhei o dia, como ganhei na megasena, pois esse comentário, vindo de uma Deusa, só me repleta de felicidade. Vc sabe: sou teu fã. Para mim, vc é o Djaníciuscilo (Djavan+ Vinícius+ Jorge Vercilo) de saia. Beijos etudo de bom.

  • Parabéns, o texto nos convida a refletir entre os limites da mentira e da razão. Acho que muitos pais foram verdadeiros artistas em suas tentativas de deixar a vida dos filhos mais colorida. Abração e boa semana a todos!

  • Caríssimo Cléo. Adorei o texto!!! Essas coisas de família são únicas… Boa semana, fquem com Deus…

    • É isso aí, Almir. Tenho certeza que algumas das situações aqui colocadas também foram vividas pelo dileto amigo.

  • Lindo texto! Lembrei-me do filme “A vida é bela” em que o pai é levado para um campo de concentração nazista e tem que usar sua imaginação para fazer seu pequeno filho acreditar que estão participando de uma grande brincadeira, para protegê-lo do terror e da violência que os cercavam.

    • É isso aí, Bruno! Embora haja similaridade, as situações colocadas no texto, são fruto de situações REAIS.

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