Uma crônica de Ruben Bemerguy

Entre medos
Ruben Bemerguy

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo
”.
Poema em Linha Reta – Fernando Pessoa (Álvaro Campos)

Minha história tem muitas gravuras. Algumas verídicas. Outras, nitidamente imaginárias. É inútil ensaiar separá-las. Elas se equivalem a toda hora. Elas também se amiúdam aos gritos e em silêncio. Eu as ouço e dai tudo se passa dentro de mim. Tenho medo de minhas gravuras. Tamanho é meu medo que, se bem sei, é ele a ilustração mais presente em minha vida.

Mesmo de coisas simples, tenho medo. Medo de poesia, eu tenho. Por isso, pouco a visito. Se me arrisco percorrer seus monumentos, a lua logo influencia meus movimentos e aí torno público o que trago de mais oculto. Sofro com isso. Sempre desejei alguns instantes de paz com a poesia. Poderia ela, não fosse meu medo, ter-me no colo. A pé, passear vagarosamente comigo. Soletrar-me. Despir-me e depois me deitar em seu casulo. Beijar meus olhos. Ah! Poesia, minha feiticeira. Só isso já me bastaria.

Também tenho medo dos que voam. Não pela preamar dos voos. Tenho medo do pouso. É um risco, por exemplo, pousar em um coração. Se ele é moço e se ainda não crê nos loucos, pobre pouso. Se já maduro, e se se crê exausto e em desuso, pobre pouso. Tenho muitos hábitos de defesa ao menor sinal de um pouso. Pernoito muito por isso desviando-me dos pousos. Não fosse esse medo, faria de mim um pássaro. Não para voar, mas só para pousar. Pousaria preguiçoso no corpo dele. Destruiria todos os muros. Juntos, içaríamos um ao outro. Indo e vindo. Não fosse meu medo, só isso me bastaria.

Tenho tantos e diferentes medos e, ainda assim, desguarneço-me. Contra essa desatenção ensaio todos os meus ódios. Há muito, pus meu exército de prontidão e às suas baionetas e foices descrevo minuciosamente cada poesia, cada possibilidade de pouso. Armo cadafalsos nos lugares mais altos. Secretamente, destruo cidades e dos escombros escuros que sobram desenho nomes. Sobre eles deito para me certificar que premeditadamente os aniquilei. Vou adiante. Alvejo a lua das sextas-feiras. Firo e confiro cada gota de lua derramando. Descanso ao perceber que não existem mais noites de sexta-feira. Também incursiono sobre os sábados e domingos. Inverto suas existências. Sábado é segunda-feira e domingo é terça-feira. Isso, só para proibir e escravizar. Faço tudo sem qualquer piedade. Ao fim, atiro o corpo dele a última estrela do universo. Cansado, volto. Rio do meu exército. Rio da lua gotejando e dos dias da semana que castrei para me proteger dos medos. Sozinho, choro. Choro muito de mim.

  • Conheci o Ruben nesses encontros ocasionais da vida, bom rapaz. Foi em meados de 83. Estou em manaus. Um abraço !!!

  • Eh, caro Ruben, meu parceiro no samba-enredo campeão pelo Maracatu, em 83…palavras são para serem utilizadas. O bau está aí. Muitos usam de qualquer jeito. Mas você consegue elenca-las tão bem que a construção fica perfeita. Concordo com o Alcione: por que publicas tão pouco?

  • Caro Ruben,
    Uma coisa só a lemenatr. Por que o egoísmo de publicar tão pouco e ficar somente pra vc com esses textos maravilhosos?
    Abs
    Alcione

  • Minha admiração pela pessoa que escreve este enfraquece meu elogio: mas achei esse texto MAGNÌFICO. Comecei tentando buscar sua essência e ao me distrair, lendo-o, acabei sozinho, chorando. Estou muito triste, tenho medo da morte, não da minha, mas a dos outros, me deixa triste. Não sei conviver com a perda, luto diariamente contra ela, não quero perder a vida das pessoas, mas ela vem assim mesmo. Mas não tenho medo de amar as pessoas, mais ainda aquelas que fazem a minha vida mais rica de sentimentalidades. Sinto-me gratificado por ter oportunidade de conhecê-las, agradeço a Deus pela dádiva do convívio com elas,compensam minhas perdas e me fazem felizes.

  • A poesia se entranha pelas calçadas,
    aduba os jardins,
    conversa com as rosas,
    escuta os girassóis
    dá colo aos jasmins.
    A poesia acolhe o orvalho da madrugada
    Clarea as noites escuras
    Escurece os dias de sol.
    Dorme enrolada na brisa
    Brinda o dia de calor
    com o sereno que chora pela gaivota que não voou.
    A poesia se faz em mim silêncio,
    esconde o que não quero dizer,
    diz o que quero esconder,
    faz de mim um canteiro de pétalas orvalhadas.

    Você brinca com palavras e imagens! É um jeito de escrever que eu saboreio. Adorei “saber” dos seus medos. Paz e bem!

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