Só esta vez

Só esta vez
Alcy Araújo Cavalcante
(1924-1989)

Um dia Murilo Mendes perguntou: Criança, que vamos fazer no mundo soluçante? Eu pergunto a ti, Menino Jesus, que vens fazer agora quando nada tenho para te oferecer? Tenho as mãos vazias, sem incenso, sem mirra, sem o ouro da inocência. Sem esperança, sem os sonhos da infância, sem a crença dos adultos, cargueado de desespero, de sombras ogivais, de saudades de instantes que foram belos demais para morrer e que morreram, apesar de tudo… Talvez em ti a ressurreição, mas eu já não sei orar e esqueci as palavras que minha mãe me ensinou.
Mesmo porque ela já não está e meu anjo distraído soltou a minha mão na hora exata em que um trem de ferro me apanhava numa curva do mundo. Esmagou-se o escombro da minha última alegria, esmagou-se o pedaço que restava do que fui.
Porque eu não soube ser, o homem manso de coração está pleno de revoltas. E é Natal, quando todas as esperanças deveriam renascer em mim, como renascem em outros homens mais felizes, porque souberam deixar de ser meninos e assumiram os seus caminhos, as suas veredas, os seus itinerários. Eu apenas me perdi nas noites sem auroras, nas tardes ensangüentadas, nas horas nuas que crucificaram todas as lágrimas que me pertenceram.
E é Natal, menino Jesus. Que vens fazer neste mundo soluçante, se a luz não é mais luz dentro de mim? Gostaria de reaprender uma só oração, uma só prece, entre tantas que minha mãe me ensinou. Menino, peço a ti o milagre de me ensinares o caminho da fé, de me indicares a rota do retorno ao interior de mim mesmo para que eu encontre no meu coração gretado, emperdenido, seco como o chão dos meus pesadelos, um pouco de umidade, que venha até os meus lábios e mate esta sede que me consome.
Uma vez que se cumpram as palavras dos profetas, alivia o sofrimento de um homem só na multidão… O que amou os pássaros, as rosas, os barcos partindo, o grão de trigo, a fonte murmurante, a canção, a primeira professora, a face que se escondeu num espelho há muito partido, o gato que ronronava junto dos cadernos, a rua primeira, a primeira comunhão e tantas outras coisas inaugurais.
Devolve a fé que perdi à margem da decência. Devolve a fé que deixei à margem dos meus desencantos.
Menino, agora que estás de volta, que vens de novo a este mundo, eu te peço: não deixes que eu te crucifique novamente.
Devolve, Menino, neste teu renascimento, a paz que eu perdi, por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. Perdoa as minhas ofensas. Faz com que eu volte a te amar e me comova diante daquela gruta antiga. Que não seja eu a atirar a primeira pedra e que dê ao Pai o que pertence ao Pai, ao Teu Pai. Faz com que eu possa novamente curvar os joelhos, ajoelhar a minha alma, curvar o meu coração e cantar um hino em teu louvor, como no tempo em que eu era um simples pastor nas planícies de Israel.
Menino, volta a habitar o meu peito lacerado, de onde se esvaíram os sentimentos de bondade. Volta a habitar, por um instante, na Eternidade de Ti mesmo, o homem desesperado que já não sabe orar.
Menino, só esta vez, só neste Natal, acende em mim as esperanças que perdi… Amém…

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