A velhinha mal-arrumada

A velhinha mal-arrumada
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá 

Em tempo de férias, uma família de cinco pessoas estava na praia aproveitando do sol e do mar. As crianças tomavam banho e brincavam com a areia. De longe,  apareceu uma velhinha. Tinha os cabelos brancos esvoaçando ao vento e a roupa era visivelmente surrada e suja. Ela falava consigo mesma e, vez por outra, tirava alguma coisa da areia e a colocava num saco. Os pais chamaram as crianças mais perto e lhes disseram para ficarem longe da idosa desconhecida. Quando ela passou perto da família, sempre catando algo aqui e acolá, lançou um sorriso para eles, mas ninguém o retribuiu. Algumas semanas depois, souberam que aquela velhinha maltrapilha, há muitos anos, tinha escolhido para si uma tarefa: recolher os pedaços de vidro que ficavam na praia para que não ferissem os pés das crianças.  

No 19º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do capítulo 6 do evangelho de João. O assunto é ainda o do “pão da vida”, “o pão que desceu do céu”, mas com algo novo e muito importante. Jesus fala sobre o Pai que o enviou e diz que ninguém vai ao encontro dele se o próprio Pai não o atrair. Também, quem estiver com Jesus participará da ressurreição no último dia. Ele fala assim porque o povo murmurava a seu respeito. Pensavam conhecê-lo, porque sabiam algo sobre a sua família e a sua cidade. Esse foi o engano deles. Um equívoco sempre atual, porque é muito fácil julgar Jesus pelas informações recebidas nos anos da nossa infância e adolescência. Nós nos tornamos adultos, mas a nossa formação cristã não cresceu junto. Muitas vezes, desistimos de continuar a ser “discípulos de Deus” (Jo 6,45), de escutar o Pai, de nos deixar “instruir” por ele e assim nos aproximarmos mais de Jesus, o Filho.

Para o evangelista João o ser atraído, o conhecer, o ver e o crer são todas ações que o discípulo experimenta como dons de Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – com a única condição de deixar-se conduzir docilmente por ele. A não ser que o sufoquemos com a nossa desconfiança e o nosso materialismo, existe em nosso coração, um grande desejo de conhecer e encontrar a origem e a fonte da nossa existência. Podemos chamar isso de sede e fome de Deus. Mas Deus também está à nossa procura (Adão “onde estás?” Gn 3,9) e por isso enviou o seu próprio Filho, encarnado no homem Jesus. Com efeito, “a Deus, ninguém jamais viu” (Jo 1,18; Jo 6,46), porém, agora, se de verdade quisermos conhecê-lo e encontrá-lo, o caminho certo é acolher aquele que “vem de junto de Deus” porque este “viu o Pai”. Para que esse “caminho” de busca não seja mera especulação intelectual ou autossugestão, mas se torne vida vivida, experiência real, é necessário vivenciar bem a Eucaristia que celebramos e comemos. Quem se alimenta com “o pão que desce do céu”, reconhece a gratuidade do dom da vida de Jesus e, por isso, aprende também a fazer da própria vida um dom. Quem sustenta a sua vida aprendendo a amar com e como Jesus, participa da realidade amorosa de Deus com laços tão fortes que nem a morte pode destruí-los.

Estamos navegando na mais alta “teologia” do evangelho de João. O discurso parece confuso e misturado, mas a realidade é uma só: quem se alimenta de Jesus Eucaristia-Pão da Vida- Pão do Céu, assume o mesmo estilo de vida e, por sua vez, deixa-se consumir, dia após dia, por aqueles aos quais decide doar-se generosamente. Sem essa vida doada, a participação da Eucaristia se resolve em intimismo e devocionismo. Pode ser gratificante para a pessoa, mas não produz todos os frutos de amor que Jesus espera vir de quem se alimenta com ele, “pão vivo descido do céu”, “carne dada para a vida do mundo”. É difícil. Consola-nos, porém, saber que tantos irmãos e tantas irmãs, jovens e velhos, bem ou malvestidos, doam muito ou, ao menos um pouco, das suas vidas para que outros vivam mais felizes e sofram menos pelas feridas do desamor e da injustiça. Talvez nós não o saibamos, mas Deus os conhece, são seus amigos, já vivem da vida dele.

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