Artigo dominical

Felicitas
Dom Pedro José Conti –
Bispo de Macapá 

Felicitas era uma ajudante da paróquia católica de Gisengi em Ruanda. Quando aconteceu o genocídio, tinha acolhido na casa dela um grupo de hutus que corriam o perigo de serem massacrados pelos tutsis. O irmão dela era coronel e a tinha avisado que estava arriscando a vida. Felicitas escreveu para ele: “Irmão muito querido, agradeço a sua ajuda, mas salvar a minha vida agora significaria abandonar as quarenta e três pessoas das quais me sinto responsável. Escolho, por isso, morrer por elas. Meu irmão, reza para que todos possamos chegar à Casa do Pai. Dá um abraço forte à nossa mãe velhinha e ao nosso irmão. Eu rezarei por ti quando estiver com Deus. Veja de preservar a sua saúde. Muito obrigada por ter pensado a mim. Tua irmã Felicitas Miyteggaeka”. Quando os soldados chegaram para prendê-la, junto com as pessoas que tinha protegido, disse: &ldqu o;Chegou o momento de dar o nosso testemunho. Vamos”.

Chegando ao final do Tempo Pascal, antes das solenidades de Ascensão e Pentecostes, a Liturgia da Palavra nos apresenta, através de trechos diferentes, o grande – e único – mandamento de Jesus: aquele de nos amarmos uns aos outros (Jo 15,17). O amor fraterno deve ser o sinal distintivo dos “amigos” dele e o fruto produzido deve permanecer, ou seja, continuar a florescer e frutificar para sempre. Todo amor verdadeiro é a consequência da generosidade, da doação que cada ser humano pode fazer de si mesmo em prol dos outros, mas, diz Jesus, o amor “maior” é de quem “dá a vida para os seus amigos”. A referência à entrega dele na cruz é evidente. Ele mesmo nos deu o exemplo desse amor maior. Por esse amor total deveríamos sempre ser agradecidos e firmes no seguimento de Jesus, convencidos que esta é a única possibilidade de resgate do ser humano de todos os tempos e de todos os lugares. Como o de Jesus, o amor verdadeiro não conhece fronteiras nem de espaço e nem de tempo. É um caminho que deve ser percorrido. Quem entra nele, sempre deixa rastros, atrai. Outros o seguirão, porque oferece uma alegria diferente, uma felicidade e uma paz que somente assim se encontram. Quem doa com generosidade e sem interesse, também recebe com fartura os “dons” reservados a quem “permanece” no amor do Senhor.

“Dar a vida” pode ser mesmo morrer para salvar alguém ou solidariedade com as vítimas numa trágica circunstância. A história tem muitos exemplos disso, alguns conhecidos, outros que ficarão guardados no coração amorosos de Deus. No entanto, o mandamento do amor não pode ser reservado para alguns raros momentos de heroísmo e desprendimento, deve tornar-se o jeito de viver ordinário do cristão. Jesus pede a todos para “dar vida”, ou seja, trabalhar, lutar e nos unir para que todos “tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Para entender isso é bom lembrar que o contrário de “dar vida” é tirar vida, limitar ou mesmo desprezar e desvalorizar a vida dos outros. Todos somos tentados a cuidar em primeiro lugar de nós mesmos. Talvez seja uma questão de sobrevivência, mas, muitas vezes, é fruto mesmo do egoísmo. Os antigos padres da Igreja já ensinavam que a roupa que guardamos no armário e não usamos é a roupa do pobre que não tem o que vestir. Quem deve decidir o que não lhe serve e que pode ser partilhado é cada um de nós. Acumular sem necessidade pode ser mesmo tirar o sustento de outros, condená-los a uma vida miserável. Não é isso, evidentemente, o que exalta a sociedade de hoje pela qual somos conduzidos a comprar e consumir muitas coisas das quais antes nem sentíamos falta, mas que depois se tornam indispensáveis à nossa vida. Desse jeito, vai sobrar muito pouco para os pobres.

A nossa irmã Felicitas foi heroína um dia, mas o seu amor e o seu martírio começaram muito antes, quando acolheu em sua casa os hutus perseguidos. Eram de outra raça e, naquele momento de guerra tribal, inimigos, mas ela nem pensou nisso. A generosidade não se improvisa. Se aprende aos poucos. Para nós cristãos, só olhando a Jesus.

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