O Vai da Vida – Por Rui Guilherme

O VAI DA VIDA
Rui Guilherme

Éramos três meninos que achavam que eram homens: Luiz Moura, o Mourinha, André Nunes e eu. Estudávamos em Belém do Pará, no Colégio Nazaré dos Irmãos Maristas desde o primário, e, naquele ano da graça de 1960, cursávamos o Terceiro Pré, o último ano do ensino médio, já nos preparando para o famigerado exame vestibular. Mourinha, dos três cavaleiros do Apocalipse, caxias nos estudos desde sempre, era o único que estava determinado quanto ao curso superior cujo vestibular enfrentaria: Mourinha encasquetara que seria engenheiro.

Dotado de prodigiosa inteligência e aplicadíssimo no estudo, Mourinha podia ser o que quisesse, menos jogador de futebol – para os esportes, jamais revelou a menor aptidão em qualquer modalidade. Em se tratando de jogos, era uma fera nos jogos de mesa: do baralho às palavras cruzadas, do gamão ao xadrez. Agora, passando à cultura física, Moura logo dizia:- “Tô fora!”

André… bem, com o André as coisas eram muito diferentes do que se passava com o Moura ou comigo. Comigo, a confusão mental era absoluta. Morria de pena de ver que logo, logo, não estaríamos mais estudando na mesma sala, em nosso idolatrado Colégio Nazaré. Minha vontade mais secreta era achar uma conjura, uma mandinga qualquer que me permitisse paralisar o tempo e deixar as coisas como estavam, com algumas melhorias sonhadas, tais como aquele carrão conversível do Hilarinho do Guaraná Soberano que bem podia ser meu, e uma casa menos deteriorada que o enorme sobradão em que morávamos e que vinha caindo aos pedaços, tanto é que um dia desabou na cabeça de minha família – mas isso é outra história.

Moura, como eu ia dizendo, podia ser engenheiro, maestro, médico, professor, o que quer que lhe desse na telha. Eu, por mim, em idade mais verde quisera ser oficial da aeronáutica. Fiz, no Rio, o exame para a Escola de Cadetes do Ar. Milagre! Passei em Matemática! Em Português, matéria em que – modéstia à parte – eu era bom, tive uma indisposição física que me levou quase a perder os sentidos. Resultado: bomba em português. E lá ficou a gloriosa FAB desfalcada de um bravo piloto de caça.

Os três cavaleiros do Apocalipse reuniam-se regularmente, curtindo porres poéticos e vivendo suas aventuras; sonhando com sua dulcinéas; ensaiando – quem conseguia – suas poesias. Lembro da vez em que nos hospedamos no Hotel do Russo em Mosqueiro, Praia do Chapéu Virado, para onde confluía toda a jeunesse dorée de Belém. Conosco, um quarto querido amigo, o ricaço Harold S., que se preparava para tentar Engenharia. Andávamos pela praia a filosofar, poetar e ciscar em busca de alguma paquera. O dia correu; o sol se punha em um deslumbrante espetáculo de cores. André, Mourinha, eu, paramos extasiados a contemplar o ocaso. Nosso embevecimento foi cortado pela praticidade do Harold:- “Que é que vocês estão fazendo aí feito um bando de patetas espiando o céu?”

Poxa, cara!” – alguém respondeu. – “Tu não tens um pingo de sensibilidade? Olha que coisa linda esse pôr de sol!”

– “Ora”, responde Harold com um muxoxo. – “Amanhã tem outro igualzinho.”

Como todo gênio, Moura tinha suas esquisitices. Uma delas era amar piadas sem graça, como a do português que não sabia contar piadas. E qual era a piada, afinal? – “Não tem!”, dizia Mourinha, espocando de rir. – “O português não sabia contar piada!” E naquele verão praiano teve um ataque de riso tão despropositado que o Harold, amigo sem maior sensibilidade para o sol poente e sem entender como o Moura podia estar gargalhando tanto diante de tal imbecilidade, foi contido por nós quando já se preparava para asfixiar o Mourinha com um travesseiro.

De piloto de caça, enveredei para ser oficial de Infantaria. Estava deslumbrado com o serviço militar que iniciara no CPOR. Mas o glorioso Exército Brasileiro ficaria sem este seu general, porque, como dizia o venerável Buda, só uma coisa na vida não muda nunca, que é a eterna mudança.

André Nunes, por motivos jamais completamente esclarecidos, foi fazer Economia, depois Administração, depois concurso para o Banco da Amazônia, cooperativismo e militante ativo do pecebão, o Partido Comunista Brasileiro – mais um mundo de coisas: casamento com uma Miss Pará, filhos, netos. empresário, contador de casos, vendedor de fichas telefônicas, talentoso escritor, dono de restaurante, perfumista, ambientalista, comerciante, distribuidor de cimento. Bom amigo. Um tipo encantador.

Dos três cavaleiros do Apocalipse, Mourinha foi o primeiro a partir. Deixou viúva minha irmã, filhos e netos que o adoram. Hoje, foi-se o André. Cremado. Suas cinzas, a pedido dele, serão espalhadas no rio Xingu que ele tanto amava. Restou eu: um Zorro sem o Tonto que há tempos aposentou o Silver e não se arrisca mais a cavalgar.

Rio, 30 de agosto de 2018

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