RECEITA PARA DESVOTAR
Ruben Bemerguy , advogado
“quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo, e dou livremente a minha opinião, agrade, ou desagrade a minorias, ou maiorias”. (cfr. Rui Barbosa “O dever do Advogado” Fundação Casa de Rui Barbosa, Ed. AIDE, 1994, pág. 43).
O exercício liberal da advocacia, especialmente aos que se dedicam um pouco ao direito administrativo e constitucional, proporciona uma leitura relativamente real da conjuntura política vivida no Estado. É que, muitas vezes, a coincidência de fatos postos a defesa, de tão repetitivos, proporcionam interpretar o ambiente político a que todos estamos sujeitos.
Me refiro, em curtas palavras, ao que observo, a partir de minha profissão, na gestão da saúde pública. O diálogo do Estado com o conjunto dos agentes que atuam na área, sejam pessoas físicas ou jurídicas, servidores públicos ou não, parece ver-se substituído pela desnecessária – essa palavra merece ser sublinhada – e grave violência política – essa também merece – que instrumentaliza um perverso maniqueísmo que, por sua vez, em minha opinião, oculta, ou pelo menos disfarça, o adequado enfrentamento as demandas da saúde pública.
É uma pena que essas demandas, com as quais me deparo e enfrento dia a dia, se limitem a nosso escritório de advocacia e se comprimam em escaninhos forenses sem que se oportunize, por falta de instâncias sociais públicas, um sério debate sobre o comportamento do Estado e seus reflexos em direitos individuais, quando menos.
Ilustro meu sentimento a partir de apenas dois casos concretos:
O Estado do Amapá firmou contrato com empresa (por razões éticas, vez que não tenho autorização para fazê-lo, deixo de registrar o nome que a distingue) para prestação de serviços de tomografia em um hospital público, cedendo, inclusive, além de equipamento, área no interior de hospital público para viabilizar o serviço. A empresa, por sua vez, conduziu também, além de profissionais, outros equipamentos ao local para permitir o desempenho. Entre os equipamentos constavam cadeiras, geladeira, lixeiro, maca, bebedouro, entre o mais. Ocorre que a inadimplência contratual do Estado obrigou a paralização dos serviços e, após intervenção do Ministério Público, nova licitação, para os mesmos serviços, foi feita, sagrando-se vencedora a mesma empresa.
O Estado do Amapá, ao invés de adjudicar a licitação, ou anulá-la se assim motivasse, preferiu a solução mais inapropriada, mais impetuosa, irascível mesmo, e confiscou todos os bens da empresa privada sob o álibi curioso da existência de um “estado de emergência”. Não desconheço que a situação da saúde no Estado é crítica, mas essa debilidade não se eterniza por acaso e não é com a prática truculenta que será superada. O certo que a falta de ternura administrativa levou consigo, manu militare, às cadeiras, geladeira, lixeiro, maca, bebedouro e tudo mais, para atender a urdida emergência. Não teria o Estado do Amapá capacidade de adquirir esses bens por meios próprios e lícitos a qualquer tempo respeitando o patrimônio alheio? Estaria o Estado do Amapá tão fortemente embebecido em gesso a ponto de expor-se ao escárnio administrativo confiscando bens tão vulgares até no comércio local? Se o Estado houvesse optado, o que já seria absurdo, pelo confisco de bens exclusivamente indispensáveis ao início de serviços de saúde urgentes, penso que seria menos cômico. Se o Estado, respeitando a propriedade privada e a livre iniciativa, julgasse absolutamente necessários os bens particulares e, assim, os desapropriasse, pagando previamente a respectiva indenização, seria, do ponto de vista jurídico e político, admissível. Mas confiscar, apreender, tomar a força é um traço repugnante e põe em dúvida biografias. Esse fato foi solucionado por atuação judicial e os bens devolvidos a empresa dona.
A mesma sorte das cadeiras, geladeira, lixeiro, maca, bebedouro, se assentou em outro cliente – também não me é permitido nominar. Este foi citado em uma operação policial e a ordem judicial originária da atuação determinava que fossem afastados os servidores públicos que ocupassem cargos ou funções comissionadas ou que manuseassem recursos públicos. O cliente, muito embora não se enquadrasse em nenhuma das condições, foi sumariamente afastado do exercício da medicina em hospital público pela Secretaria de Saúde do Estado. Comunicado o fato ao juízo, este determinou o retorno do cliente ao serviço público na medida em que não ocupante de cargo ou função comissionada. Ao contrário de cumprir a ordem, em demonstração de pura e desnecessária insolência, o Estado do Amapá justificou a existência de processo administrativo contra o cliente e que o havia afastado para que respondesse ao inquérito fora do serviço público. Notificada a Secretaria de Saúde para que apontasse a que processo administrativo se referia, na medida em que nenhuma notificação havia o cliente recebido, a manifesta truculência sequer acudiu singela resposta ao cidadão. Uma resposta comum, que dissesses estar ele respondendo a uma sindicância, revelasse pelo menos o número do processo. Não. Nem isso. É verdade que essa intransparência administrativa pode parecer simples para as autoridades do Estado do Amapá e um reforço ao discurso que divide o bem do mau, desde que o governo seja o bem. Mas para quem está sendo acusado, o mínimo que pode esperar, independente de sua posição ideológica ou da gravidade ou não da acusação, é que, pelo menos, seja notificado da acusação que sofre para permitir a mais singela defesa. O contrário é o caos.
Não estou aqui a fixar que a empresa, seja ela qual for, está imune a incursão do Estado. Muito menos digo que servidor público não possa ser cautelarmente afastado de suas funções. Não é isso. Se os atos encontram proteção constitucional ou legal, tudo é possível. O que causa indignação, o que se repele, o que veste de luto a democracia mais tenra, é a forma inapta, incivil, de buscar objetivos a custa da razão e do direito que desqualificam a cidadania em proteção a um discurso sazonal, não verdadeiro e muito chato.
Essa experiência, porém, como tudo na vida, tem um lado positivo. A cidade de Macapá espera um novo governo. Os olhos da cidade estão ávidos, não só por uma gestão competente mas, também, que a solução dos pleitos sociais e eventuais conflitos se avie pelo caminho do diálogo, institucional e constitucional. O exemplo do Estado do Amapá, pelo menos ao que agora se vê, não é modelo a ser seguido e merece ser desvotado, se quisermos, em meu sentir, vencer os desafios da saúde pública municipal.
3 Comentários para "Receita para desvotar"
Amigo Ruben, como sempre, um artista de refinadas palavras. Parabéns, amigo.
Querido, suas palavras como sempre me emocionam, tanto faz em que forma elas venham, prosa , poesia, crônica ou dissertação, pois nelas estão seus sentimentos, suas verdades, seu senso de justiça. obrigado.
Camilo poderia ter aproveitado a tal reforma dos secretariados é exonerar o Secretário de Sáude e seu adjunto, manifestamente incompetentes, mas não preferiu exonerar La Rocque, seu melhor secretário, a pedido da Assembleia. Onde Camilo mora? será que ele é blindado por seus assessores para não enxergar o caos que se instalou na SESA? será que ele sabe que grande parte dos prestadores de serviços estão contratados a título de contratos emergênciais, o que facilita a improbidade. Outra pasta que serviu de boi de piranha fora da publicidade institucional que segundo camilo não divulgava os feitos do Governo. Ora, a culpa não é da pasta e e sim do Governo Camilo que não tem fomentado a publicidade do Estado com boas notícias.