A tacacazeira de olhos ternos e largo sorriso

Dona Mangabeira era uma negra de olhar límpido, sorriso largo e dentes tão brancos como os guardanapos de algodão que ela mesma fazia para cobrir as panelas.

Foi uma das primeiras tacacazeiras da cidade. Era do bairro da Favela. Sua banca (naquele tempo não tinha os carrinhos de hoje) era montada na esquina da rua Leopoldo Machado com avenida Almirante Barroso. De longe se sentia o cheiro do tucupi. Esse cheiro dava água na boca atraindo tanta gente para sua banca. O camarão era vermelhinho e o jambu treme-treme.

Aos domingos, a movimentação era bem maior. Era parada obrigatória de quem passava por ali para ir ao estádio Glicério Marques assistir aos clássicos da época.

A todos – autoridade ou peão – Mangabeira atendia com alegria, contava histórias, fazia o tacacá do jeitinho que o freguês pedia.

– Mais goma ou tucupi? Quantas colheres de pimenta? Quer mais jambu?

E o freguês ia dizendo como queria.

De muitos ela sabia o gosto e já nem perguntava.

Contava que meu pai, o poeta e jornalista Alcy Araújo, era o único que tomava tacacá sem goma.

Mangabeira tinha um carinho especial pelas crianças. Para elas servia o tacacá em cuia menor e nada de pimenta.

Às vezes um moleque mais ousado pedia que ela colocasse um pinguinho. E ela, cheia de doçura, respondia: “Meu filho, criança não come pimenta”. E o moleque não insistia. O convencimento, tenho certeza, não era pelas palavras, mas pela doçura com que ela falava.

Além de tacacazeira, Mangabeira era excelente lavadeira. Daquelas que botava a roupa “pra quarar” e engomava usando ferro a carvão. Era também benzedeira, tirava quebranto de criança, fazia banho de cheiro pra curar gripe, catapora e sarampo e chás e garrafadas pra todos os tipos de males.

Mangabeira era uma imagem forte na paisagem do meu bairro e é uma das belas recordações da minha infância.

(Alcinéa Cavalcante)

Quando meu amigo se perdeu na mata

Há muitos anos um amigo meu se perdeu na mata. Era caçador experiente, conhecedor dos segredos da floresta, acostumado a entrar na mata para relaxar, apreciar as árvores e caçar algum animal para comer.
Mas certo dia ele se perdeu. Ao atravessar um igarapé por cima de um tronco caiu e bateu a cabeça. Ficou meio zonzo e, ao invés de tomar o caminho que o levaria ao ponto de partida, tomou o rumo contrário.
Ele entrou na mata com dois amigos e como sempre cada um seguia para um lado, mas às 16 horas tinham que se encontrar no ponto de partida para retornar.
Nesse dia meu amigo não retornou. Seus dois amigos esperaram até o anoitecer… e nada. Voltaram para Macapá para pedir ajuda.
Muita gente se mobilizou. Mesmo quem não tinha experiência nenhuma com mata queria ir à procura dele.
Passaram-se dias e dias… e nada. Os que entravam na mata davam tiros na esperança de que ele respondesse. É assim que costumam fazer. Mas, desta vez, não havia resposta.

Na caçada anterior, meu amigo trouxe uma guariba para ser seu bichinho de estimação.

Já estava para completar um mês do desaparecimento quando a mãe dele lembrou da guariba. E disse: “É a mãe dessa guariba que está prendendo meu filho na mata. Soltem ela, devolvam ela para a mata que ela vai soltar meu filho”. Dito e feito.
Soltaram a guariba (meu amigo Cristiano – o Raimundo Maia Barreto – é testemunha disso).
Pois bem, no dia seguinte o desaparecido foi encontrado navegando num rio numa jangada que ele improvisou com galhos de árvores e o pouco que restava de sua roupa.
Foi encontrado por um avião de pequeno porte cedido pelo governo para sobrevoar a área.
“Não foi o avião que me me encontrou. Fui eu que o encontrei”, contava, dizendo que ao ouvir o barulho do avião correu pro rio na jangada que acabara de fazer e fez sinal levantando os braços.
Trazido para Macapá, foi internado no Hospital Geral (hoje HCAL) para fazer exames. Dois dias depois em sua casa nos contava a aventura.
Relatou que ouvia os tiros dos colegas, mas não podia responder porque só tinha uma bala na sua espingarda que não poderia desperdiçar pois lhe seria muito útil se encontrasse algum animal feroz pela frente. Se alimentava de frutas, folhas e raízes; matava a sede com água que tirava de um cipó; passava as noites acordado no topo de árvores; dormia pouquíssimas horas por dia e para isso deitava no chão e se cobria com folhas; passou fome e muito frio e não tinha noção de quantos quilômetros andou – pela floresta, riachos e subindo e descendo morros –  procurando a saída. Em vários momentos percebeu que andava em círculos, pois sempre passava pelo mesmo lugar.

Quando foi encontrado estava magro, quase nu, os pés, braços e pernas cheios de arranhões. Mas com muitas histórias para contar para os amigos, colegas de magistério e alunos pelos quais era tão querido.

E se alguém pensa que depois dessa ele se aquietou… negativo. Muchê continuou indo pra mata, porém nunca mais caçou guariba.

Quando a gente se guiava pelas estrelas

Quando a gente se guiava pelas estrelas

“Olha! Olha!” Exclamava o menino apontando para o céu.

“Lá vai, lá vai”.

E todos olhavam e viam e falavam sobre o objeto que passava saltitante entre nuvens e estrelas.

Não. Não era um disco voador. Era simplesmente um satélite, provavelmente desses que ficam fotografando a Amazônia.

Diversão da meninada naquele tempo, quando a noite caía, era sentar na frente da casa e olhar o céu, caçar satélites e estrelas cadentes, procurar São Jorge na Lua e identificar constelações.

O telescópio era um canudo de cartolina.

Ah, tempo bom, quando a gente sabia se guiar pelas estrelas e sonhava ser astronauta para visitar outros mundos, brincar em outros planetas e, depois, voltar à Terra com as mãos transbordantes de estrelas.

Trazer também uns fiapos de nuvem para fazer algodão doce, pois que a vida, meu irmão, era uma doçura e plena de encantamento naquela rua sem asfalto, sem bangalôs, sem muros e sem televisão.

(Alcinéa Cavalcante)

Mais uma vez minha poesia atravessa o Atlântico

Neste Dia Mundial da Poesia fui comunicada que serei homenageada com o troféu e diploma “Personalidade Artística Internacional” no 10° Encontro Internacional de Lusofonia que ocorrerá em maio, em Portugal.
Mais uma vez minha poesia atravessando o Atlântico. Obrigada pelo reconhecimento.
Que mais eu poderia desejar neste Dia Mundial da Poesia? Mais nada.
Minha gratidão a Deus, a Literarte (Associação Internacional de Escritores e Artistas) e aos organizadores.

O Fim do Mundo

Quando disseram
que o mundo ia acabar
Tia Lila pegou seu terço
e pôs-se a rezar.

O dono da venda
dividiu toda a mercadoria
com seus funcionários
e distribuiu o dinheiro do caixa
para os mendigos.

A recatada dona Clotilde
jogou-se aos pés do marido
e implorando perdão
confessou que o tinha traído com o compadre.

Seu Joaquim, um santo homem,
ajoelhou-se no meio da rua
ergueu as mãos para o céu
e pediu perdão a Deus
pelos assassinatos que cometeu
como matador de aluguel.

No dia seguinte
o dono da venda pedia esmolas,
a recatada Clotilde, expulsa de casa,
foi morar num velho puteiro,
Seu Joaquim foi preso.

Só Tia Lila continuou do mesmo jeito.
De terço na mão continuou rezando
e entre uma oração e outra murmurava:
– É mesmo o fim do mundo
– Dona Clotilde, hein, quem diria?
– Seu Joaquim com aquela cara de santo, hein!
É o fim do mundo! É o fim do mundo!
(Alcinéa Cavalcante)

De quando os vizinhos eram os parentes mais próximos

Naquele tempo vizinhança era uma grande família. Falava-se que o vizinho era o parente mais próximo. E isso fazia muito sentido, pois qualquer sufoco – não importava a hora – recorria-se primeiramente ao vizinho.
Uma dor à noite? Corre lá no vizinho pra ver se ele tem um analgésico ou um chazinho.
Acabou o açúcar na hora de fazer o café? Ninguém ia tomar café amargo. “Menino, pega uma xícara e vai lá na vizinha pedir emprestado um pouco de açúcar”.
Ia  viajar e era dificil pegar taxi? (Naquele tempo se chamava carro de praça). O vizinho que tinha carro se prontificava a levar o viajante ao aeroporto.
Ia sair e não ficaria ninguém casa? Era só deixar a chave na casa do vizinho que o primeiro que chegasse ia lá pegar.
E aniversário de vizinho hein? Todo mundo queria ajudar a fazer a festa. Uma vizinha fazia o bolo, outra oferecia o vatapá, outra fazia o risoto e outras se ofereciam para moer a maniva da maniçoba… os homens ajudavam a botar a cerveja pra gelar naqueles enormes barris com imensas pedras de gelo e moinha. A moinha que um já tinha ido buscar na véspera numa serralheria.
Quando chegava um novo vizinho ele tratava logo de se apresentar indo de casa e falando: “Sou fulano de tal, estou me mudando hoje pra cá com minha família, trabalho nisso e naquilo e estou me colocando às ordens.”
A vizinhança mandava logo um bolo, ou qualquer outra guloseima, para os “novos parentes” como manifestação de boas vindas.
Era o tempo de cadeiras na calçada (não havia assaltantes) em animadas rodas de conversa enquanto as crianças brincavam de bombaqueiro, caí no poço, bandeirinha, tome esse anelzinho não diga nada a ninguém, esconde-esconde…
Todo mundo se conhecia, se gostava, se ajudava, repartia os frutos dos quintais.
Hoje praticamente os vizinhos não se conhecem, sequer se cumprimentam.
Lembrei disso porque ainda tenho alguns vizinhos “parentes mais próximos”. Ontem mesmo, minha vizinha Josy – que tem coqueiros em seu quintal – bateu à minha porta com um cacho de côco. “Côco do Chicola, vizinha”. E tem também o Janjão que volta e meia me traz sapotilhas do seu quintal ou uma porção de cação cozido feito por ele.

(Alcinéa Cavalcante)

Já que hoje é Dia do Amigo vamos de poema para os amigos

Poema para o amigo
É possível que eu te conte
uma história de príncipes e fadas
que escutarás com o olhar perdido na infância.
Ou que te conte uma piada tão engraçada
que rolaremos de tanto rir.
Nossas gargalhadas contagiarão os passantes
e de repente todo mundo estará rindo
sem nem saber por quê.
É possível
que eu faça um café com tapioca e te chame
pois café, tapioca e amigo tem tudo a ver.
É possível que eu chegue na tua casa sem avisar
só pra te ofertar uma rosa que acabara de nascer
e te oferecer um Johrei.
É possível que eu te ofereça uma música no rádio
ou te mande, pelo Correio,
uma carta numa folha de papel almaço.
É possível que eu te ligue
no meio da noite
no meio do dia
a qualquer hora
– mesmo na mais imprópria –
só pra dizer:
Amigo, eu amo você.
(Alcinéa Cavalcante)

Vida de jornalista

Não lembro exatamente os anos, mas foi na segunda metade da década de 1980.
Eu, Alcinéa Cavalcante,  entrevistando o governador do Território Federal do Amapá, Jorge Nova da Costa.
Nova da Costa governou o Amapá de julho de 1985 a abril de 1990. Foi nomeado pelo então presidente José Sarney. Na época não havia eleição para governador.
Mas antes disso, lá pela década de 1950, Nova da Costa morou alguns anos no Amapá exercendo cargo na Divisão de Produção (o que corresponde a Secretaria de Agricultura. Na época não existiam secretarias).