Categoria: Alcinéa
Antônio Brasileiro, o homem misterioso que tocava músicas numa folha de mangueira
Uns diziam que ele era louco, outros falavam que era um bêbado. Penso que nem uma coisa nem outra, talvez misterioso, diferente de todos os outros homens que andavam pelas ruas do antigo bairro da Favela. Ah, ele tinha sim mistérios guardados no olhar.
Sempre trajado elegantemente – calça social, sapato bico fino e camisa de mangas – diariamente ele percorria as ruas do bairro tocando maravilhosamente várias músicas, principalmente o hino nacional, numa folha de mangueira, por isso ficou conhecido como “seu Antônio Brasileiro”. Nunca vi ninguém, além dele, usar uma folha de qualquer planta como instrumento musical.
Louco não era, pois um louco jamais conseguiria essa proeza. Bêbado também não, pois caminhava sobre o meio-fio que, se muito, tinha um palmo de largura. Um bêbado não teria equilíbrio para tal.
Educado, mas de poucas palavras, cumprimentava todo mundo com um discreto bom dia, um aceno de mão ou inclinando a cabeça. Não falava de sua vida nem da vida de ninguém. Se alguém começava a lhe fazer perguntas tratava logo de pegar uma folha de mangueira e começar a tocar, assim fugia do interrogatório.
Quando ele aparecia tocando sua folha, as crianças corriam atrás dele e seguiam-no por alguns quarteirões. Ao ouvir o som, os adultos corriam para as janelas. Muita gente dizia que não havia ninguém que tocasse com mais perfeição que ele o Hino Nacional, em qualquer instrumento que fosse.
Antônio Brasileiro nunca contou quando e como ou com quem descobriu que podia tirar os mais belos sons e tocar lindas melodias, soprando uma folha de árvore.
Seu endereço exato ninguém sabia. O certo é que morava na Favela (aqui abro um parêntese para dizer que o bairro da Favela nunca foi uma favela), talvez perto do estádio Glicério Marques, pois era por ali, na rua Leopoldo Machado que se ouvia, pela manhã, os primeiros sons de sua folha, depois descia a avenida Mendonça Furtado e seguia não sei para onde. Horas depois voltava pelo mesmo caminho.
Tinha família? Tinha sobrenome? Ninguém sabia. E se alguém lhe perguntasse não respondia, se punha a tocar. Como já falei, era homem de poucas palavras. Misterioso. E todos queriam desvendar, sem sucesso, os mistérios daquele tocador de folhas, que tinha o olhar sereno e quase nunca sorria.
Tinha profissão? Dizem que foi um cozinheiro de mão cheia do Hospital Geral e que do nada abandonou o emprego e passou a perambular pelas ruas. Por isso que uns dizem que ele era louco e outros que ele perdeu o emprego para o álcool. Mas eu reafirmo: nem louco, nem bêbado. Era o retrato da liberdade, livre de todas as amarras, talvez preso apenas aos seus mistérios que ninguém conseguia decifrar.
Às vezes quando caminho pelos canteiros floridos da avenida Mendonça Furtado ou à sombra das mangueiras da Leopoldo Machado imagino “seu Antônio Brasileiro” aparecendo de repente. Ele arranca uma folha de mangueira, começa a tocar, as pessoas aparecem na janela. Ele passa por mim, me cumprimenta com a cabeça, desce a ladeira e segue rodeado por um bando de moleques não sei para onde.
E eu sorrio. E quem me vê sorrindo assim sozinha nem imagina o por quê.
Antônio Brasileiro deixou seus mistérios impregnados na paisagem da minha Favela.
A tacacazeira de olhos ternos e largo sorriso
Dona Mangabeira era uma negra de olhar límpido, sorriso largo e dentes tão brancos como os guardanapos de algodão que ela mesma fazia para cobrir as panelas.
Foi uma das primeiras tacacazeiras da cidade. Era do bairro da Favela. Sua banca (naquele tempo não tinha os carrinhos de hoje) era montada na esquina da rua Leopoldo Machado com avenida Almirante Barroso. De longe se sentia o cheiro do tucupi. Esse cheiro dava água na boca atraindo tanta gente para sua banca. O camarão era vermelhinho e o jambu treme-treme.
Aos domingos, a movimentação era bem maior. Era parada obrigatória de quem passava por ali para ir ao estádio Glicério Marques assistir aos clássicos da época.
A todos – autoridade ou peão – Mangabeira atendia com alegria, contava histórias, fazia o tacacá do jeitinho que o freguês pedia.
– Mais goma ou tucupi? Quantas colheres de pimenta? Quer mais jambu?
E o freguês ia dizendo como queria.
De muitos ela sabia o gosto e já nem perguntava.
Contava que meu pai, o poeta e jornalista Alcy Araújo, era o único que tomava tacacá sem goma.
Mangabeira tinha um carinho especial pelas crianças. Para elas servia o tacacá em cuia menor e nada de pimenta.
Às vezes um moleque mais ousado pedia que ela colocasse um pinguinho. E ela, cheia de doçura, respondia: “Meu filho, criança não come pimenta”. E o moleque não insistia. O convencimento, tenho certeza, não era pelas palavras, mas pela doçura com que ela falava.
Além de tacacazeira, Mangabeira era excelente lavadeira. Daquelas que botava a roupa “pra quarar” e engomava usando ferro a carvão. Era também benzedeira, tirava quebranto de criança, fazia banho de cheiro pra curar gripe, catapora e sarampo e chás e garrafadas pra todos os tipos de males.
Mangabeira era uma imagem forte na paisagem do meu bairro e é uma das belas recordações da minha infância.
(Alcinéa Cavalcante)
Da série “Dias inesquecíveis”
Há exatamente nove anos lancei na Bienal Internacional do Livro de São Paulo meu livro de poemas e crônicas “Paisagem Antiga”
Foi uma experiência maravilhosa e inesquecível!
Acho que todo escritor deveria, pelo menos uma vez na vida, lançar um livro numa grande bienal internacional.
Entardecer
Entardecer
Te prometo, Poeta,
que no próximo entardecer
vou pintar um arco-íris
para deixar tua tardezinha
menos triste.
Hás de sentir que o entardecer
pode ser tão belo
quanto o alvorecer
que ilumina teu rosto
e abre sorrisos no teu olhar.
Presta atenção, Poeta,
o entardecer
é o momento solene
no qual Deus apaga o sol
para acender a lua e as estrelas
Principalmente aquela estrela
que tanto te encanta
quando estás
tecendo sonhos
e versos na madrugada.
(Alcinéa)
Explicação
Explicação
Vivo do ato de escrever
sobre tragédias
e espetáculos
sobre o candidato vitorioso
e o derrotado
sobre o deputado corrupto
e o governante que finge ser honesto
sobre a exportação da mandioca
e a importação da farinha
sobre a fome e a riqueza
sobre o real e o dólar.
Perdoa-me, Anjo.
Não sobrou tempo
para escrever
um poema de amor.
(Alcinéa Cavalcante)
Musical
Musical
Depois do show
quero descansar a cabeça
no teu ombro
no teu braço
no teu peito
e sonhar
para que a canção
não fique apenas na brevidade
desta noite
mas se eternize em nós.
(Alcinéa)
Se eu soubesse…
Se eu soubesse…
Se eu soubesse
rezar um verso
esta saudade
não estaria doendo tanto
como a dor
de não ser pássaro para flutuar no azul.
(Alcinéa)
Vem, amado
Vem, amado
Vem, amado meu,
enquanto existem borboletas amarelas
e um beija-flor
beija a flor
que Deus plantou no meu jardim.
Vem, amado meu,
enquanto o vento brinca com as nuvens
criando códigos
que só nós dois sabemos decifrar.
Vem, amado meu,
enquanto há risos de crianças
e a tarde está pintada de ternura.
Não demores, amado meu,
Pois o meu amor é breve
como esta louca vontade
de sair bailando contigo pela vida.
(Alcinéa Cavalcante)