Conto abril – Século XX

Conto abril – Século XX
*Alcy Araújo (1924-1989)

É abril. Esta, a grande e universal verdade. Abril – Século XX, explico. Relembrando Judas, o que traiu, e Pilatos, o que lavou as mãos, e Pedro, o que negou. Abril trazendo até nós a lembrança de que numa sexta-feira do Mundo crucificaram o Homem Bom. O que acreditava na remissão dos homens. O que andou sobre a poeira escaldante dos caminhos e sobre a leveza das espumas, conduzindo de público o gesto de bondade. O que não traiu. O que não foi indiferente. O que não negou. Eu sou a Verdade, disse. Capaz de todos os sofrimentos e de amar sobre todas as coisas. Sabia que amar é um modo de sofrer.

Numa sexta-feira do Mundo, o Homem Bom subiu a colina fora da cidade. Com o Homem, o Cireneu, as mulheres, os centuriões, a turba. Do alto da cruz elevou-se ao seu reino. César era de outro mundo. Ficaram a turba, os centuriões, as mulheres, o cireneu.

Vinte séculos depois de trinta e três anos de exemplos, envergonhado e triste, diante do templo, da imagem, círios lacrimais, o poeta não tem coragem de pronunciar seu santo nome.

Bastaria isto. Estariam salvas as almas migratórias, desencontradas, exodoidais que habitam as latitudes do poeta.

Sabeis. Muitos séculos viveu o poeta. Do Gênesis a abril do corrente século. Mais precisamente. Do caos ao hoje. Por isso os sentimentos. A traumatização da palavra sagrada, disse, há pouco. Melhor direi inibição. Melhor ainda. Descoberta de velhos sentimentos, na contemplação das almas do poeta.

Contarei a descoberta. O poeta contemplava nesta hora do século os olhos de suas almas multiplicadas, fixos nos céus, por onde passam anjos, estrelas, música de rádio, imagens de TV. E o poeta, cheio de experiências bem vividas – Caos, Paraíso, Dilúvio, Sodoma, Babilônia, Cartago, Roma, Wall Street, etc. etc – se comoveu.

Suas almas, almas de poeta, todas ali sem faltar nenhuma, na muda contemplação do azul, do infinito, dos horizontes do Pai. Emotivo e feliz, o poeta chorou. O poeta chora como os anjos.

Seus olhos, então, alçaram vôo, enquanto a mão emocional acariciava os cabelos cor de lago da alma recém-nascida.

Era chegado o momento. Tudo consumado. Ao longe, imóvel, pairava o disco voador.

Perdoai, Senhor, elas não sabem o que fazem. É abril – século XX.

(Do livro Autogeografia, lançado em 1965. O poeta, escritor e jornalista Alcy Araújo, nasceu no Pará em 7 de janeiro de 1924 e faleceu no Amapá em 22 de abril de 1989)

De Alcy Araújo

MINHA POESIA
Alcy Araújo

A minha poesia, senhor, é a poesia desmembrada
dos homens que olharam o mundo
pela primeira vez;
dos homens que ouviram o rumor do mundo
pela primeira vez.
É a poesia das mãos sem trato
na ânsia do progresso.
Ídolos, crenças, tabus, por que?
Se os homens choram suor
na construção do mundo
e bocas se comprimem em massa
clamando pelo pão?
A minha poesia tem o ritmo gritante
da sinfonia dos porões e dos guindastes,
do grito do estivador vitimado
sob a lingada que se desprendeu,
do desespero sem nome
da prostituta pobre e mãe,
do suor meloso da gafieira
do meu bairro sem bangalôs
onde todo mundo diz nomes feios,
bebe cachaça, briga e ama
sem fiscal de salão.
– Já viu, senhor, os peitos amolecidos
da empregada da fábrica
que gosta do soldado da polícia?
Pois aqueles seios amamentaram
a caboclinha suja e descalça
que vai com a cuia de açaí
no meio da rua poeirenta.
Cuidado, senhor, para o seu automóvel
não atropelar a menina!…

Anonovesco

Anonovesco
Alcy Araújo Cavalcante

(1924-1989)

Aceitarei sem mágoas milhões de luas. Não bem luas. Que o plural acaba com a poesia. Satélite. Assim o telescópio perceberá melhor os anéis de Saturno. Ser satélite. Girar em torno de. Há necessidade de uma gramática celeste. Melhor ainda, geografia celestial, de asas. Asas circunferenciais, eclipsiodais, tridimensionais, vista-visionais, de fim de ano, natalinas. Faltam tantos dias relativos para o começo de outro fim.

Sempre o começo. O início. O inaugural. O inaugural e a esperança de que após o fim o início recomeça. Há muitas casas no reino de meu Pai. A todos a melhor casa. Esperança de último. Esperança de ser o primeiro inquilino na interpretação simplista do Livro.

Enquanto isso, falece o gesto de bondade. Não observar o aviso – é proibido pisar na rosa. Superior mesmo é nascer pássaro e defecar na flor silvestre.
Também seria bom nascer borboleta e pousar na flor com asas de arco-íris. Digo, arco-da-velha. Nunca porém nascer disco voador, viajar milhões de mundo, encontrar milhões de humanidades. Uma é suficiente.

O necessário mesmo é reler Júlio Verne. Viajar deitado. Sem sair de casa. Acordado, à espera de Papai Noel de barbas brancas, saco de nylon e brinquedos de matéria plástica.

Depois esperar o dia da Fraternidade Universal e os três reis magos. Principalmente Baltazar, o que nasceu no Harlem, há mil novecentos e oitenta e oito anos, um mês e dezoito dias. Explico: Baltazar porque o poeta não tem preconceitos raciais.

Viva o ano novo que começa quando nasce uma criança.
(Do livro “Autogeografia”, 1965 – Macapá-AP)

A poesia de Alcy Araújo

MINHA POESIA
Alcy Araújo (1924-1989)

A minha poesia, senhor, é a poesia desmembrada
dos homens que olharam o mundo
pela primeira vez;
dos homens que ouviram o rumor do mundo
pela primeira vez.
É a poesia das mãos sem trato
na ânsia do progresso.
Ídolos, crenças, tabus, por que?
Se os homens choram suor
na construção do mundo
e bocas se comprimem em massa
clamando pelo pão?
A minha poesia tem o ritmo gritante
da sinfonia dos porões e dos guindastes,
do grito do estivador vitimado
sob a lingada que se desprendeu,
do desespero sem nome
da prostituta pobre e mãe,
do suor meloso da gafieira
do meu bairro sem bangalôs
onde todo mundo diz nomes feios,
bebe cachaça, briga e ama
sem fiscal de salão.
– Já viu, senhor, os peitos amolecidos
da empregada da fábrica
que gosta do soldado da polícia?
Pois aqueles seios amamentaram
a caboclinha suja e descalça
que vai com a cuia de açaí
no meio da rua poeirenta.
Cuidado, senhor, para o seu automóvel
não atropelar a menina!…

Ave Ternura – Alcy Araújo

AVE-TERNURA
Alcy Araújo (1924-1989)

Minha pobre avezinha. Lembro que te encontrei só, à margem do caminho. Havia medo em teu coração e falcões andavam à tua caça. E eu não possuía um ninho para te abrigar. Possuía apenas uma gaiola de ouro, com água fresca e alpiste. Nela eu te acolhi. E esperei que passasse o teu medo, a tua sede de ternura. Então, acariciei de leve, muito de leve, com muito amor, a tua plumagem.

Em raros instantes pensei que ia ouvir teu cantar. Um dia chilreaste um pouco. E eu senti que tua inquietação permanecia. Não temas. Esta gaiola de ouro não é uma prisão. É apenas uma pousada. A porta está aberta. Não estás prisioneira. Quando partires ela ficará vazia, de porta aberta e não terá nunca outro hóspede, outro ocupante.

O céu azul, o sol, as arvores verdejantes, as cascatas que murmuram, as flores que saúdam as manhãs estão lá fora, à espera do teu canto.

Vai. Cuida que não comas ervas venenosas, não bebas em água estagnada. Cuidado com as serpentes que atacam à noite os pássaros que dormem.

Há também os caçadores que matam por prazer. E há os caçadores que instalam armadilhas para fazer pássaros cativos. Cuida para que eles não te encontrem. Lá fora há amplidão, as árvores têm pomos de ouro e as flores são mais belas. Os bosques têm encanto e música. Aqui nesta gaiola há paz e há ternura.

Lá fora há o espaço e os perigos. E tu és uma avezinha solitária, deslumbrada e frágil.

Vai. A porta está aberta. Sempre esteve aberta. Ficará aberta, à tua espera, se quiseres voltar. Diariamente será renovada a provisão de alpiste, de água fresca e de ternura. Mesmo que não venhas.

O tempo não importa para o meu amor.

Se algum dia te encontrar novamente à margem do caminho, amedrontada e ferida, eu te recolherei, avezinha. Colocarei bálsamo em tuas feridas. Acariciarei com muito amor, muito de leve a tua plumagem e abrigarei a tua dor nesta gaiola de ouro. Não fecharei a porta. Quando sarares, poderás voar de novo. A porta ficará aberta, continuará aberta. O tempo não importa para o meu amar, feito de esperas renovadas

Boa noite!

“Uma lua sonâmbula espia pela janela os meus olhos molhados de olhar. No cinzeiro, uma ausência impede esquecimentos, sinto uma vontade imensa de gritar dentro da noite, de pedir uma aurora sem vínculos e sem saudade” (Alcy Araújo)

Quando a alma é uma canção

QUANDO A ALMA É UMA CANÇÃO
Alcy Araújo Cavalcante

O poeta pensou que fosse fácil falar, fosse fácil escrever, dizer qualquer coisa, neste dia de amor filial. A emoção, porém, interdita o gesto de escrever. As palavras ficam prisioneiras e a alma é uma canção que chora silêncios, neste domingo do mundo.
Penso no olhar de minha mãe rezando. No olhar que me viu pela primeira vez e adivinho um universo de ternura. Ternura que se transmitiu a mim e me fez poeta. Acho que sou poeta porque a sensibilidade de minha mãe assim o desejou.
Tanta coisa para dizer e este poeta sem palavras, com o coração cheio de lágrimas. E a inspiração defronte, doendo como um remorso. O poeta se pergunta se é um bom filho. Se merece amor. E não encontra resposta. É que hoje é dia das mães.
Que pode dizer este poeta, meu Deus, neste domingo? É melhor não dizer nada. É melhor pedir perdão. Bênção, minha mãe… perdoe seu filho.
Depois beijar as mãos enrugadas de mamãe e chorar. Chorar muito, até a alma se purificar com o fogo das lágrimas. Lágrimas caindo no rosto de minha mãe, no beijo de minha mãe, nos cabelos grisalhos de minha mãe.
Mãe que é perdão, súplica, oração, bondade, fé. Mãe onde ainda posso depositar minhas mágoas, meus desencantos, minhas grandes dores, minhas angústias só minhas.
Mãe que me pôs no mundo para a glória de ser poeta, para amar, para sentir as grandezas e as misérias do mundo. Mãe que me fez homem. Que me ensinou a ser bom, até o limite em que um homem pode ser bom. Que me ensinou a ser generoso até onde me permitem as minhas humanas limitações. Que me fez humilde até onde é possível meu orgulho. Enfim, que me fez filho, nada mais que um filho que ainda precisa de carinho porque não encontrou o caminho do retorno.
Minha mãe, acabaram as minhas palavras. Mas o meu amor permanece.

(O poeta, escritor e jornalista Alcy Araújo Cavalcante, meu pai, nasceu em 7 de janeiro de 1924 em Peixe-Boi, no Pará, e morreu em 22 de abril de 1989 em Macapá. Sua mãe, Elvira Araújo Cavalcante, morreu em novembro de 1971 em Macapá)

Especial Dia das Mães – Carta

CARTA
Alcy Araújo

Há muito tempo, muito tempo mesmo que não escrevo para você. Não escrevo porque é muito difícil falar de coisas só nossas. Minhas e de você, como, por exemplo, o dia em que fugi de casa para conquistar o mundo e tinha apenas três anos. Também aquela vez que, maravilhado com a descoberta da caixa de fósforos, provoquei o mais belo princípio de incêndio que tenho na memória e que resultou em vigorosas palmadas que impediram que eu escolhesse, no futuro, a espetacular profissão de pirotécnico.
São coisas intimamente nossas, na saudade do que foi, como a escola e os sacrifícios que você fez para que eu fosse o que nunca pude ser o que você queria tanto que eu fosse. Às vezes fico pensando como seria a nossa vida hoje se eu tivesse podido entrar para o seminário de Belém. Quem sabe eu teria a minha paróquia como o padre Jorge? Mas o seminário não foi possível e ficou, até hoje, a frustração que atingiu o menino.
Há também a vida dura das oficinas e os plantões noturnos intermináveis nos jornais. E os nossos momentos felizes, apesar de uma existência tão plena de pobreza. O dia da minha primeira comunhão, a primeira vez que vesti o roquete de coroinha, o uniforme de escoteiro, o primeiro dinheiro ganho foram instantes de imensa felicidade. E as tristezas, como naquele dia em que Papai Noel não veio.
Depois o menino ficou homem e aconteceram muitas aflições e desencantos. Mas o menino que você embalou, que vestiu para o primeiro dia de aula não mudou em sua essência. É humilde e terno. Apenas sofrido. Carrega dores e cicatrizes no coração grisalho.
Mamãe, o menino ainda sente a mesma necessidade de carinho e de amor, sonha e tem as mãos cheias de ternura, para repartir entre os que necessitam de compreensão e de esperanças.
Que importa o que a vida judiou se os ensinamentos que vieram de você ainda permanecem? Mas não tem sido fácil conservar em meio a tantas mágoas o gesto de bondade.
Se isto pode servir de algum consolo para você, eu conto que o mundo não me fez mau. Digo isto porque você sabe que andei muitas vezes por caminhos proibidos. Mas isto, mãe, não é coisa nossa. Abençoe seu filho, nesta hora em que sinto uma vontade imensa de chorar…

(O poeta, escritor e jornalista Alcy Araújo Cavalcante, meu pai, nasceu em 7 de janeiro de 1924 em Peixe-Boi, no Pará, e morreu em 22 de abril de 1989 em Macapá. Sua mãe, Elvira Araújo Cavalcante, morreu em novembro de 1971 em Macapá)