A poesia de Alcy Araújo

MINHA POESIA
Alcy Araújo
(1924-1989)

A minha poesia, senhor, é a poesia desmembrada
dos homens que olharam o mundo
pela primeira vez;
dos homens que ouviram o rumor do mundo
pela primeira vez.
É a poesia das mãos sem trato
na ânsia do progresso.
Ídolos, crenças, tabus, por que?
Se os homens choram suor
na construção do mundo
e bocas se comprimem em massa
clamando pelo pão?
A minha poesia tem o ritmo gritante
da sinfonia dos porões e dos guindastes,
do grito do estivador vitimado
sob a lingada que se desprendeu,
do desespero sem nome
da prostituta pobre e mãe,
do suor meloso da gafieira
do meu bairro sem bangalôs
onde todo mundo diz nomes feios,
bebe cachaça, briga e ama
sem fiscal de salão.
– Já viu, senhor, os peitos amolecidos
da empregada da fábrica
que gosta do soldado da polícia?
Pois aqueles seios amamentaram
a caboclinha suja e descalça
que vai com a cuia de açaí
no meio da rua poeirenta.
Cuidado, senhor, para o seu automóvel
não atropelar a menina!…

Por isto houve o silêncio

POR ISTO HOUVE SILÊNCIO
Alcy Araújo

alcy3O homem havia sido feito assim: bom, humilde, terno para viver dentro de um mundo cheio de revolta. E o mundo foi angustiando o homem, rasurando a sua ternura, arranhando a sua bondade. Por isto que o homem, vítima de muitos desencantos, começou a fazer o que não devia, a andar de cabelos ao vento, telefonar, freqüentar o cais.

A cada sofrimento, o homem fazia mais uma tolice e magoava o seu Anjo. E o Anjo, pobre Anjo aflito, chorava lágrimas imensas, que cresciam em seus olhos como pássaros de luz.

Daí então o Anjo não pôde ter mais um minuto de distração. Mal ele se distraía e lá ia o homem por aí, pés descalços, braços nus em direção ao seu desconhecido, pisando espinhos que nasciam das rosas vermelhas.

Mesmo assim o homem sabia que não estava só, como naquele começo de tarde em que teve vontade de comprar uma bicicleta azul e um cavaquinho. Sabia também que não estava só como naquele poema em que o amor morria por falta de azul e os pássaros brancos deixaram de nascer.

E por ser assim o homem falou ao Anjo que a felicidade existia. Apenas estava além das lágrimas contemporâneas, colocada depois da dor, na continuidade da espera, na renovação de todas as esperanças.

E falou isto quando as estrelas gotejavam silêncio dentro da noite. A música se enovelava no coração e o poema era uma oração nascente.

Então o Anjo pegou o homem pela mão e caminharam em direção ao mar. Foi quando Deus sorriu e achou que o que tinha feito era bom. E descansou, porque era chegado o sétimo dia e na distância Anjo e homem se integravam no azul do mar. Por isto houve um grande silêncio no coração das coisas…

(Poeta, jornalista e escritor, Alcy Araújo, meu pai, nasceu em 7 de janeiro de 1924 em Peixe Boi, no Pará, e faleceu em 22 de abril de 1989 em Macapá, no Amapá.)

Jardim, pode

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Este foi o último poema escrito pelo poeta e jornalista Alcy Araújo em abril de 1989. O poema foi datilografado  – e depois corrigido à mão – pelo próprio poeta para publicação na coluna cultural “Artes e Raízes”.

Poema para Alcy

POEMA PARA ALCY
Paulo Tarso Barros
Anjos, Serafins,
Querubins:
as hostes te disputavam mas,
por bondade divina,
te deixaram conosco
por 66 anos.

Invejavam teu imenso amor
e sempre diziam ao Pai:
o que faz esse anjo torto de Peixe-Boi
naquele planeta equatorial escrevendo crônicas,
redigindo ofícios e despachando papéis do governo?
O que faz esse Anjo Bêbado naquele
planeta onde crianças passam fome
e são assassinadas ?
Ele é um de nós, Pai,
mas aprendeu a beber uísque
e a fumar cachimbo.
O Anjo Alcy amava os jardins,
os dias chuvosos e os tantos filhos que teve
com as mulheres que amou.
Apesar de anjo da mais alta hierarquia,
fez questão de pousar na terra e
viver perto do rio-mar
somente para imaginar-se na imensidão
amazônica e navegar até a Noruega.
Sim, o anjo Alcy gostava das caboclas
ribeirinhas, das moças do cais e
sonhava com as deidades nórdicas
que emergiam dos seus poemas
– que sempre contavam com a visita
dos anjos mais puros e loucos do universo.

Saudade

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Hoje, 7 de janeiro, 92 anos do nascimento do poeta, escritor e jornalista Alcy Araújo, meu pai. Alcy faleceu em 22 de abril de 1989.

Bênção
(Alcy Araújo)

Que te abençoe o sol nos dias luminosos de verão
e as estrelas nas noites claras de setembro.

Que te abençoe o mar
o grande mar
e as areias brancas
que receberam as marcas dos teus pés
naquela manhã esquecida na infância.

Que te abençoe a lágrima
chorada certa tarde
quando eu não estava
e te abençoe o verde
que inaugurou a tua esperança.
Que te abençoe o azul do céu
e o branco da inocência
Que te abençoe a sombra
que acolheu o peregrino
e a água que matou a sede
do empoeirado viandante.

Que te abençoe a rosa
e te abençoe o pássaro liberto.
Não te falte nunca a larga bênção
da árvore à margem do caminho
nem a bênção que vem dos sinos
quando a tarde cai acendendo mistérios.

Que te abençoe o Anjo
que guarda a tua ternura
e não te falte jamais
a bênção do amor.

Que te abençoe o sofrimento
e a cor branca do luar
também a música
e o vento que acaricia teus cabelos.

Que te abençoe o perdão
que te negaram
e te abençoe a paz
a imensa paz da oração.

Que te abençoe a fé
perdida nos caminhos
e a fé que ainda permanece
no coração dos que amam.

Que te abençoe a dor
dos que sofrem sem perder a esperança
e as angústias dos injustiçados.

Que te abençoe a ternura
e um rio de lágrimas
que me pertenceram lave a tuas aflições.
Que te abençoe o sal da terra
e a terra que germina a semente do carvalho
para os que necessitam de sombra
e o grão de trigo para os que têm fome.

Que te abençoe a alegria da aurora
e a tristeza translúcida da tarde
e te abençoe o silêncio
e o riso claro das crianças felizes.

Que te abençoe finalmente
a infinita bondade de Deus
que te criou à imagem e semelhança
do meu sonho de poeta.

Anonovesco

Anonovesco
Alcy Araújo Cavalcante
(1924-1989)

Aceitarei sem mágoas milhões de luas. Não bem luas. Que o plural acaba com a poesia. Satélite. Assim o telescópio perceberá melhor os anéis de Saturno. Ser satélite. Girar em torno de. Há necessidade de uma gramática celeste. Melhor ainda, geografia celestial, de asas. Asas circunferenciais, eclipsiodais, tridimensionais, vista-visionais, de fim de ano, natalinas. Faltam tantos dias relativos para o começo de outro fim.

Sempre o começo. O início. O inaugural. O inaugural e a esperança de que após o fim o início recomeça. Há muitas casas no reino de meu Pai. A todos a melhor casa. Esperança de último. Esperança de ser o primeiro inquilino na interpretação simplista do Livro.

Enquanto isso, falece o gesto de bondade. Não observar o aviso – é proibido pisar na rosa. Superior mesmo é nascer pássaro e defecar na flor silvestre.
Também seria bom nascer borboleta e pousar na flor com asas de arco-íris. Digo, arco-da-velha. Nunca porém nascer disco voador, viajar milhões de mundo, encontrar milhões de humanidades. Uma é suficiente.

O necessário mesmo é reler Júlio Verne. Viajar deitado. Sem sair de casa. Acordado, à espera de Papai Noel de barbas brancas, saco de nylon e brinquedos de matéria plástica.

Depois esperar o dia da Fraternidade Universal e os três reis magos. Principalmente Baltazar, o que nasceu no Harlem, há mil novecentos e oitenta e oito anos, um mês e dezoito dias. Explico: Baltazar porque o poeta não tem preconceitos raciais.

Viva o ano novo que começa quando nasce uma criança.
(Do livro “Autogeografia”, 1965 – Macapá-AP)

Belíssima crônica de Natal

É Natal
Alcy Araújo Cavalcante
(1924-1989)

Sabeis que é Natal. Não é necessário que eu diga isto. O anúncio da renovação do milagre do nascimento de Jesus está nesta música que vem de longe, que desce do céu e flutua, em pianíssimo, em torno de nossa alma e toca de leve o coração dos homens. O milagre está, também, nesta luz que vem do alto e ilumina os espíritos, está no riso das crianças, na oração da rosa, na lágrima dos que sofrem, no canto dos pássaros, no sussurro da brisa, no murmúrio do rio e na saudade de minha mãe rezando.

Tudo é tão bonito que as lágrimas de dor e de saudade de infâncias inexistentes são poesia pura. O belo é tanto que não resisto à vontade vesperal de anunciar que é Natal, antes que a noite chegue, antes que seja oficiada a Missa do Galo, antes que dobrem os sinos na igreja comunicando a vinda do Messias.

Tudo é luz em torno do mundo. As trevas não prevalecerão quando cair a noite acendendo mistérios. As vozes dos anjos, o coral dos pastores de Israel, a lembrança dos Reis Magos estão presentes. Há perfume. Os turíbulos de Deus espargem incenso e mirra, porque é Natal no mundo e renasce a esperança no cumprimento da palavra dos profetas.

Mais uma vez é Natal!

Chegam as vozes da infância perdida nos caminhos e o coração enxuga saudades. Os sinos, à meia-noite, vão bimbalhar lágrimas distantes. Vêm de presépios inanimados e risos perdulários afogam angústias cotidianas. A dor se esconde por trás de mágoas indormidas e as horas se ocultam nos relógios, para que a poesia do Natal não passe e o musical minuto dure mais um segundo na eternidade deste dia.

É Natal!

Reza a minha alma de joelhos pelo menino sem brinquedos que perdi, na minha pobreza de sempre.

É Natal!

Repetem meus arrependimentos nas estradas.

E uma alegria imensa absorve as tristezas que fabriquei no mundo. Um sentimento infinito de bondade apaga as dores que construí durante o meu ontem irreversível. Uma ternura imensa acende felicidades futuras, porque é Natal, neste sábado do mundo. Há um polichinelo no bazar. Pertence ao menininho doente que Jesus chamou para o seu reino. Uma boneca abandonada já não chama mamãe para a garota loura que um anjo levou pela mão naquela manhã de sol. Mas outros brinquedos coloridos fazem ciranda em torno das árvores de Natal e milhares de crianças são felizes nos lares cristãos de meu país sem coordenadas. Enquanto isto, Deus sorri, pleno de Amor, por trás da Eternidade.

Boneca para Maria Rosa

Boneca para Maria Rosa
Alcy Araújo  (1924-1989)

Papai Noel meteu a mão na algibeira. Bem, melhor dizer bolso, da surrada calça de sarja azul. Quando a mão voltou trazia duas notas – uma de cem e outra de vinte, amarrotadas. E, mais, uma moeda de alumínio de vinte centavos. Papai Noel consultou o dinheiro. No botequim mais próximo, o rádio, em ritmo de samba, contava a história do homem do morro que amava uma guerreira das ruas pavimentadas. Tornou a conferir o dinheiro. Guardou no bolso da blusa os cento e vinte cruzeiros e no bolsinho direito da calça os vinte centavos de alumínio. Parou olhando a passagem de um jeep. Depois andou em direção ao botequim e ao rádio. Tirou o velho chapéu de massa marrom. Pediu um maço de cigarros vagabundos e um café, que foi servido num copo amarelado, que antes fora branco. Enquanto esperava o café bateu no balcão – de todos os lados – o maço de cigarros. Tomou o café, pagou a despesa e ficou com vinte cruzeiros e vinte centavos. Fósforo não comprou, que Papai Noel conhece a solidariedade dos fumantes – o fogo faz favor.

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Natal – Só esta vez

Só esta vez
Alcy Araújo (1924-1989)

Um dia Murilo Mendes perguntou: Criança, que vamos fazer no mundo soluçante? Eu pergunto a ti, Menino Jesus, que vens fazer agora quando nada tenho para te oferecer? Tenho as mãos vazias, sem incenso, sem mirra, sem o ouro da inocência. Sem esperança, sem os sonhos da infância, sem a crença dos adultos, cargueado de desespero, de sombras ogivais, de saudades de instantes que foram belos demais para morrer e que morreram, apesar de tudo… Talvez em ti a ressurreição, mas eu já não sei orar e esqueci as palavras que minha mãe me ensinou.
Mesmo porque ela já não está e meu anjo distraído soltou a minha mão na hora exata em que Continue lendo