Artigo dominical

Remorso e prazer
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Certo dia, um homem que nunca tinha mentido, contou uma mentira. Sentiu remorso, mas também prazer, porque a mentira tinha sido útil para ele. E, sendo que o mal é sempre fonte de prazer – porque se fosse fonte de sofrimento nunca ninguém o faria – começou a mentir todas as vezes que lhe era cômodo. Um dia, achou bom roubar, ele que nunca tinha roubado nem uma agulha. Sentiu remorso, mas também prazer, porque tinha aumentado os seus bens de uma maneira fácil demais. E, sendo que o mal é sempre fonte de prazer – porque se fosse fonte de sofrimento ninguém nunca o faria – começou a roubar todas as vezes que aparecia a oportunidade. Um dia teve a chance de matar, ele que nunca tinha pisado numa formiga. Sentiu remorso, mas também prazer, porque tinha experimentado a loucura do poder total. E, sendo que o mal é sempre fonte de prazer – porque se fosse fonte de sofrimento ninguém nunca o faria – tornou-se um assassino.

Nos dias de hoje, muitos vão atrás do prazer sem pensar de onde ele vem e assim se espalha o mal no mundo.

Uma pequena história – e relativa moral – para começar a quaresma. Sempre no primeiro domingo, deste tempo litúrgico, encontramos o evangelho das tentações de Jesus no deserto. A tentação acontece quando uma coisa errada se nos apresenta como boa, oportuna e conveniente. É o engano do mal que nos confunde. Esse, nunca se apresenta horroroso. Deve parecer mesmo cativante e gostoso. Se escolhêssemos o mal pelo mal, deveríamos voltar muito atrás na nossa consciência e nos perguntarmos quem foram os nossos mestres e se prestávamos atenção, quando os pais e as mães da nossa vida procuravam nos ensinar o caminho certo. Portanto, se escolhemos o mal é porque nos parece bom ou, ao menos, não tão errado. Qual será o segredo para desmascarar o mal disfarçado de bem?

Para vencer a tentação, precisamos ter muito claro o que é bom e o que está errado ao ponto de conseguirmos descobrir o engano. Não só, devemos gostar tanto do bem ao ponto de estar dispostos a lutar, sofrer e, até mesmo, morrer por uma causa justa, pela vitória do bem sobre o mal. Somente assim entendemos as respostas de Jesus ao Demônio e a sua perseverança na luta contra o pecado e a morte. O demônio apelou nada menos do que para a Palavra de Deus para tentar convencer Jesus. Se até a Palavra de Deus pode nos equivocar em quem mais podemos confiar? Isso prova que não basta ter decorado alguns versículos da Bíblia para estar seguros contra toda tentação. Precisa reconhecer e confiar no grande projeto de Deus, que é de amor e não de poder, para responder à altura.

As palavras de Jesus são todas citações da Bíblia, são palavras vivas e não mortas, são palavras comprometedoras e não interesseiras. Digo isso porque a nossa grande tentação de sempre será a de usar os meios duvidosos, ou mesmo errados, com a desculpa de defender uma causa justa ou de alcançar um objetivo bom. Mais uma confusão. Quando dizemos que “Deus pode escrever direito por linhas tortas” não significa que Deus  – e nós também – podemos usar do mal para fazer um bem,  mas quer dizer que de algo errado pode vir alguma coisa boa, como por exemplo alguma mudança em nossa vida, porque aprendemos com os nossos próprios erros ou ficamos conscientizados com as consequências desastrosas das nossas maldades.

Em geral, deveria ser evidente: o bem vem das boas ações, da verdade e da justiça praticadas com coragem, determinação e firmeza.  Somente se mantivermos os olhos fixos no bem e na verdade, somente se alimentarmos a nossa vida com uma Palavra de Deus viva e eficaz, poderemos desvendar os disfarces do mal e vencer as tentações. O tempo da Quaresma é um tempo muito bom para ficar alerta, atentos aos enganos e às armadilhas do mal. Cuidado, tudo pode começar com uma mentira e acabar num assassinado. Só porque ficou mais fácil, mais cômodo e mais conveniente.

Artigo dominical

O barco
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Dois turistas, que estavam acampados na beira de uma lagoa, decidiram atravessar o lago para fazer uma visita ao boteco do lado oposto. Ficaram por lá boa parte da noite tomando umas e mais umas. Finalmente o bar fechou e eles foram obrigados a voltar para casa. Cambaleando, demoraram a encontrar o seu barquinho e, mais ainda, para   sentarem-se nele. Pegaram nos remos e começaram a remar com força. Depois de duas horas, perceberam que ainda não tinham chegado.

– Não deveríamos ter alcançado o outro lado? – perguntou um deles ao amigo.

– Certamente – respondeu o segundo – mas talvez não remamos com a devida energia. Duplicaram os esforços por mais uma hora. Estavam exaustos, mas somente quando o dia começou a clarear perceberam que não tinham saído do lugar. Tinham esquecido de desamarrar a corda que segurava o barquinho ao trapiche.

Sem dúvida uma lei é como um caminho bem traçado pelo qual é possível avançar seguros. No entanto ela pode transformar-se numa corrente ou numa “corda” que nos prende e que nos impede de sair do lugar. Jesus, no evangelho deste domingo, diz-nos que não veio para abolir a Lei antiga, mas para dar sentido e pleno cumprimento a ela. Com efeito, uma lei mal entendida ou cumprida ao pé da letra pode nos deixar com a consciência tranquila, mas pode também nos afastar do seu próprio objetivo. Pelos próprios evangelhos aprendemos que Jesus muitas vezes agiu com extrema liberdade a respeito da Lei e, por isso, foi criticado e condenado. Para ele, tinha algo de mais precioso que a mera observância de uma norma: a vida e o amor ao irmão sofredor ou pecador que fosse. O Deus Pai que Jesus veio nos revelar não era nem um fiscal e nem um juiz. Não era um Deus para poucos escolhidos, perfeitos e imaculados. Agora sabemos que Ele é, em primeiríssimo lugar, amor misericordioso, feliz por perdoar e alegre por acolher os caídos à beira das estradas da vida. O Deus, Pai de Jesus e Pai nosso, é um Deus consolador, bondoso e compassivo. Para entender isso precisamos nos libertar das amarras de uma Lei fria, sem coração, uma Lei que mata em lugar de dar vida. À Lei antiga faltava mesmo o cumprimento que Jesus trouxe e que resume a própria Lei e os Profetas: o novo mandamento do amor.

Somente assim entendemos que não basta “não matar” o irmão. Jesus nos pede de respeitá-lo, de não cultivar raiva ou rancor. Com efeito, o ódio faz que “matemos” o irmão com o pensamento, que o condenemos com o nosso julgamento, que o apaguemos de nossa vida com o desprezo. Para nós é como se não existisse mais, é como se estivesse morto.

Também não devemos praticar um culto somente exterior. Não adianta apresentar uma oferenda bonita a Deus, se o nosso coração está cheio de pensamentos e projetos de vingança. Para que a nossa oferta seja agradável a Deus precisamos ter o coração em paz, precisamos estar reconciliados com os irmãos. Separar as práticas religiosas da nossa vida e dos nossos pensamentos significa esvaziar o culto, e deixar Deus fora da realidade torna inútil a fé. A nossa oração ganha o coração de Deus quando sabemos perdoar e aceitamos ser perdoados.

A fidelidade matrimonial também não pode ser mera fachada. Parar garantir isso precisa vigiar até sobre os próprios olhares e desejos. O amor conjugal deve ser alimentado todo dia pela honestidade e pela confiança recíproca. Quando não é mais motivado e mantido pelo amor, o matrimônio se torna realmente uma prisão insuportável e a convivência uma tortura. Se queremos sustentar a alegria da família, precisamos ter a coragem de cortar relações duvidosas, vícios perigosos e interesses escusos. É o tesouro do amor que sempre deve ser defendido.

A verdade deve resplandecer por si mesma, sem juramentos e inúteis palavreados. Para entrar no reino do céus, é necessário algo mais que a obediência a uma lei: é necessária a criatividade do amor. Muitas “cordas” ainda devem ser cortadas para sair do impasse do nosso comodismo disfarçado de obediência.

Artigo – Violência tira o sossego do cidadão de bem

Violência tira o sossego do cidadão de bem
Antônio Furlan*

Nos últimos dias estamos presenciando e sentindo na pele uma onda de violência praticada em todos os cantos do país, nas grandes e pequenas cidades. Aliás, o fenômeno já não é atributo das grandes cidades ou certo segmento da sociedade. A violência envolve hoje, tanto bairros pobres quanto os nobres de todo o Brasil. Um fato que vem mudando os hábitos da sociedade, e interessa a todos nós. O cidadão está cada vez mais perdendo a sua liberdade de ir e vir por conta do alto índice de violência que perturba, por seu grau de crueldade que beira à barbárie, e, sobretudo, pela falta de medidas enérgicas que possam dá um basta na dor, na humilhação e no sentimento de impotência que atingem as vítimas e as pessoas que a elas se solidarizam.

A cada dia cresce o sentimento de insegurança e a percepção da ausência do estado seja na segurança, na educação ou saúde. Na verdade, há tempos a sensação e a realidade objetiva é que nada se faz para mudar essa situação, efetivamente.

A sensação de insegurança, o medo, a falência e ausência do estado estão fazendo até com que as pessoas acreditem que a solução seria a atitude extrema de se fazer justiça com as próprias mãos, o que não pode acontecer. Na verdade, o estado de violência vem gradativamente se internalizando em cada indivíduo ao ponto que até os mais pacifistas veem tal atitude (de se fazer justiça com as próprias mãos) como algo “compreensível”. E diante disso, o crime só cresce, especialmente envolvendo os jovens.

Os casos de violência nos deixam com o medo de não mais poder sair de casa e frequentar lugares públicos. A morte do sargento L. Vieira que morreu em uma troca de tiros com assaltantes em um restaurante no centro da cidade chocou ainda mais a sociedade. Um verdadeiro herói que defendeu a vida de dezenas de pessoas ali presentes. Uma situação lamentável. À família do sargento e a Policia Militar os nossos sinceros sentimentos.

Temos que reconhecer a importância da Polícia Militar. Temos que valorizar o trabalho desenvolvido por essa brilhante corporação que precisa de muito mais estrutura para desenvolver o seu trabalho com eficiência. É preciso valorizar cada militar que doa a sua vida em defesa da população.

Mas o fato é que, Macapá é uma cidade pequena e já é uma das mais violentas do país, e parece que o estado não admite, fazendo de conta que está tudo perfeito. Parece que nossos governantes vivem mesmo num mundo do faz de conta, sempre naquele discurso de que “já fizemos” ou “estamos fazendo muito”, enquanto a população sofre, e quando na realidade, com relação às ações governamentais e resultados concretos, nada se vê!

Os homicídios vêm aumentando, os assaltos praticados por menores, estupros, as mortes por motivos banais, enfim, não estamos vivendo, estamos sobrevivendo! Problemas e inquietações que nos fazem refletir sobre a vida e nos indagar: onde vamos parar? O que o estado irá fazer senhor governador? Será que voltaremos ao estado de barbárie e à irracionalidade?

A raiz da questão é muito mais profunda. Falta segurança sim, mas o que nos falta principalmente, é termos uma educação pública de qualidade, saúde, e o mínimo de oportunidades para se viver dignamente: social, física, intelectual e economicamente.

Erraremos e pagaremos por omissão, incompetência, descaso, burrice? Ou porque queremos mesmo? Há a necessidade de se fazer alguma coisa no Amapá antes que seja tarde, porque do jeito que está não pode ficar!

* Antônio Furlan é médico e deputado estadual

Artigo dominical

Como fazer beber um burro que não tem sede
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

O famoso padre Loew, um dia, escreveu: “Como fazer beber um burro que não tem sede? E como, mantida a atitude reverente, dar a sede e o gosto de Deus aos homens que o perderam? Como fazer beber um burro respeitando a sua liberdade? Há uma única resposta: encontrar um burro que tenha sede, grande sede… e fazê-lo beber longamente, com alegria e volúpia, ao lado do primeiro. Não para dar a este o bom exemplo, mas porque o segundo burro tem fundamentalmente sede, verdadeira e simplesmente sede, perpetuamente sede. É possível que um dia seu irmão, tomado de inveja, se pergunte se não deveria mergulhar, ele também, seu focinho na tina de água fresca. Ele mesmo descobrirá quanto lhe fazia falta aquela água. Os homens que têm sede de Deus são mais eficazes, para convencer os outros, do que as muitas asneiras contadas sobre ele…”.

Talvez nem precisasse de muita explicação. No evangelho deste domingo, Jesus diz aos seus discípulos que eles são “o sal da terra” e “a luz do mundo”. Falava para eles e continua falando para nós. Jesus nos quer ativos, dando gosto à vida, e luminosos para ter clareza sobre o caminho a percorrer. Não quer seguidores insossos, sem alegria e sem entusiasmo. Não quer cristãos vaidosos, que gostem de aparecer por si mesmos. Quer cristãos decididos e corajosos, capazes de mudar condições de escuridão e desânimo em situações de libertação e esperança. Capazes de despertar a sede de Deus.

No entanto, tudo isso não é nada fácil por duas simples razões. Primeiro, por causa da nossa própria fraqueza, da nossa pouca luminosidade. Muitas vezes somos nós a não deixar que a luz do Evangelho ilumine a nossas vidas. Isso acontece quando tomamos as decisões sérias do dia a dia seguindo os critérios comuns, do interesse, da vantagem, do próprio bem-estar e tranquilidade. O mundo sempre quer nos convencer disso: o que vale é cuidar de nós mesmos, passar bem, ficar acomodados e sem nos preocupar com os grandes problemas da convivência humana. A nossa justificativa é que, afinal, sempre foi assim, sempre haverá injustiças, ricos e pobres. Deus criou o mundo assim e nós não vamos entrar nesta de querer mudar as coisas. Nem pensar! As grandes causas que dão sentido à vida não nos interessam.

O cristão que não quer mudar nada porque para ele tanto faz, perdeu a medida da justiça, não sabe mais distinguir entre o certo e o errado. É o sal que não tempera mais. É a luz que se apagou. Pode ser jogado fora. Se nem o primeiro burro tem sede, dificilmente convencerá outro a beber da fonte.

Muitas vezes, porém, o discípulo é bom, alegre, esforçado, consciente da sua missão, mas encontra muita dificuldade para conseguir despertar o interesse dos outros. Fala, explica, mas só colhe olhares de comiseração. Ninguém o escuta. Neste caso, o exemplo é decisivo, mas não mais um exemplo qualquer. O discípulo de Jesus deve manifestar tamanha firmeza e coragem nas suas atitudes que vai chamar atenção ou, ao menos, consegue fazer surgir, nos indiferentes, a dúvida de que seja ele a estar no caminho certo e que muita coisa mudaria, para melhor, se outros se juntassem a ele. No entanto, tudo isso não significa sucesso pessoal. Ao contrário, o cristão corajoso pode se tornar um mártir, isto é, uma testemunha capaz de perseverar até o fim, sem desistir nunca e sem recusar a entrega da sua própria vida. Quantas vezes, ao longo da história da fé, os outros se convenceram da bondade da busca do cristão exemplar quando ele não estava mais entre eles, quando tinha sido mandado embora ou literalmente eliminado. Sempre foi dito que o “sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. Como o sangue de Jesus.

Manter a alegria da própria fé em circunstâncias adversas, continuar a procurar o Deus verdadeiro em meio a críticas, zombarias e perseguições é sinal difícil de se esconder, luz que não se apaga facilmente, sal que sempre tem gosto. Alguém vai querer conhecer a fonte de tamanha força. A sede foi despertada. Desta vez, o segundo burro foi cativado. Perdoem-me a linguagem, mas se cada um de nós fosse capaz de convencer outro “burro”… Quantos mais louvariam ao “Pai que está nos céus”. E todos alegres!

Artigo – A terceira via

A terceira via
Ruy Guarany

Por decisão do Diretório Regional, o Psol lançou o economista Charles Chelala como pré-candidato ao governo do estado. Muito embora a indicação dependa de confirmação, durante as convenções partidárias que ocorrerão no período de 10 a 30 de junho, Charles Chelala surge como uma opção viável para valorizar a disputa política.
Nome respeitável, dotado de preparo, com conhecimento pleno da ciência econômica e gestão pública, a indicação está sendo recebida com agrado pelos segmentos da sociedade amapaense que vê no pré-candidato qualidades que se identificam com a atual realidade do estado.
Ora exercendo o importante cargo de secretário de governo, na Prefeitura de Macapá, Chelala vem mostrando capacidade e competência para manter o equilíbrio das contas públicas, cujos resultados começam a fluir em benefício tanto da sede Macapá quanto dos distritos municipais.
Sabendo-se que a economia não é uma ciência exata, o profissional da área precisa estar atento sobre tudo o que acontece no contexto econômico nacional, para poder analisar e adequar, de acordo com as necessidades da população, da região em que atua. E isso Charles Chelala sabe fazer muito bem.
O pré-candidato do Psol se apresenta como terceira via capaz de evitar a polarização da velha política e oferecer ao Amapá novos métodos de governar com conhecimento de causas, primando pelo equilíbrio das contas públicas e priorizando ações que atendam as reais necessidades do estado e da sociedade.
Causou mal-estar, no âmbito político e nos segmentos sociais, as decla-rações do senador João Capiberibe (PSB-AP) contrárias à decisão do Psol de concorrer com candidato próprio à sucessão estadual.
O mal-estar ocorreu até porque a democracia, conquistada pelo povo brasileiro em monumentais manifestações contra a ditadura, restaurou a liberdade em nosso país, o direito de ir e vir, o voto livre e soberano, a independência dos partidos políticos para tomarem decisões isentas de interferências estranhas que contrariam as normas partidárias.

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As duas túnicas
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um jovem fez uma longa viagem pelo deserto para encontrar um misterioso padre.
– Padre – perguntou-lhe após tê-lo, finalmente, encontrado – como posso viver bem a minha vida?
O Padre lhe respondeu com uma pergunta:
– Como foi o caminho que te trouxe aqui?
O jovem explicou: – Quando saí da cidade o caminho era largo e muitas pessoas andavam por lá. Depois ficou mais estreito e poucas pessoas transitavam nele. Enfim se transformou numa vereda e fiquei sozinho até chegar aqui com o senhor-.
– Falaste bem: “se transformou”. Viver bem a própria vida significa transformar-se. E tu és aquela estrada.
Como assim? – perguntou o jovem.
– É muito simples – respondeu o sábio e tirou, de um pequeno baú, duas túnicas, uma vermelha e uma branca – A túnica vermelha é a da mocidade. Veste-a e vive a tua juventude começando daqui o teu caminho. Na vereda, terás a impressão de estar sozinho e viverás a angústia de começar a transformar o teu coração de egoísta em generoso. É uma luta difícil que vai durar toda a vida, mas podes sustentá-la com a força que tens em teus membros e a energia que sentes no fundo do teu coração. Tu te tornarás um pequeno caminho e já saberás orientar outros para seguir pelo rumo certo. Enfim, serás uma estrada e muitos caminharão através de ti na direção correta, com a alegria de não ter-se perdido. Chegarás assim à cidade: ao fervilhar do trabalho e do amor. Sejas uma cidade nobre, produtiva e generosa. No entanto, logo que perceberes que a tua túnica está perdendo a cor, deixe-a, veste a túnica branca e retoma o caminho de volta para o deserto. Será uma decisão dolorida, porque a cidade está cheia de vida e a estrada que sai de ti vai rumo à solidão. Tu terás, porém, a maturidade e a experiência necessárias para enfrentá-la. Seguirás em frente até não encontrar mais ninguém, se não a mim, que estarei te esperando. Te reconhecerei pela túnica que será de novo vermelha do teu sangue espiritual derramado para transformar-te de novo e sempre.

O jovem entendeu que a vida pode ser uma extraordinária aventura e que cada idade tem o seu sentido. Assim, leve, começou a caminhar pela vereda que saía do coração do Pai.

Neste domingo, a festa da Apresentação de Jesus ao templo prevalece sobre a liturgia do tempo comum. Isso nos dá a oportunidade de refletir sobre as profecias que os dois idosos, Simeão e Ana, expressam a respeito de Jesus e de Maria. Jesus, diz Simeão, será um “sinal de contradição”. Poderá ser “causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel”. Ainda hoje Jesus é razão de vida e de esperança para alguns, como também de escândalo e de loucura para outros. Difícil ficar indiferentes, tamanha é a novidade que ele nos trouxe: a “libertação” do pecado e da morte, como a velha Ana reconheceu. Para Maria, o anúncio é de sofrimento. Não podia ser diferente para a mãe daquele que nos resgatou pelo sangue da cruz.

Nesta página do evangelho, chamam-nos a atenção a criança que é Jesus e os dois idosos Simeão e Ana. Um começando, os outros chegando ao final do caminho da vida, mas alegres por ter visto de perto a realização das promessas. É fácil para os jovens estar cheios de sonhos e de projetos. Mais tarde, a vida se encarregará de redimensionar e concretizar tantas expectativas. Mais difícil para os idosos ter ainda algo para esperar.

No entanto, justamente nisso está a sabedoria e a fé das pessoas que já viveram grande parte de suas vidas: reconhecer que o que eles desejaram e sonharam está acontecendo, por pequenos que sejam os seus sinais. A alegria de ter contribuído para que o grande projeto do amor de Deus não parasse de acontecer deve encher os seus corações. Também os idosos são chamados a olhar para frente. A semente plantada dará frutos. Alguém colherá o bem semeado. Eles são chamados a viver a gratidão por ter tido a oportunidade de espalhar a fé em Deus e o amor dele. A vida é sempre uma extraordinária aventura. Sempre em qualquer idade.

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O surdo e o doente
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um homem surdo foi avisado que um  vizinho seu estava doente. Ele pensou consigo mesmo: – Devo mesmo visitá-lo, não tem saída. No entanto, com a minha surdez como poderei entender o que o vizinho irá me dizer? Vou tentar adivinhá-lo pelo movimento dos seus lábios. Quando eu lhe perguntar: Como está o meu pobre amigo? Ele responderá: “Muito bem!”. Então eu lhe direi: Louvado seja Deus! E depois falarei: O que tem tomado? Ele deve responder: “Um sorvete”. E eu: Bom proveito! E depois: Quem é o médico que está cuidando do senhor? “O tal”. Ele é bom, vai dar tudo certo.

Tendo, assim, preparado de antemão todas as perguntas e as respostas ele foi visitar o enfermo.
– Como o senhor está? – perguntou.
– Estou para morrer – respondeu o outro.
– Louvado seja Deus – exclamou o surdo.
O doente ficou indignado com estas palavras e pensou: “Este deve ser um dos meus antigos inimigos!”
O surdo continuou com a conversa: – O que o senhor tomou?
– Veneno – respondeu o outro.
– Bom proveito! – continuou o surdo, aumentando a raiva do doente.
– Quem é o médico que está cuidando do senhor?
– O anjo da morte! Vá embora daqui! – gritou o enfermo.
– Coragem, ele é um médico bom, vai dar tudo certo! – disse o visitante na saída. – Graças a Deus, consegui – pensou consigo mesmo o surdo, com um suspiro de alívio.

Esta é uma antiga história do século 13 para sorrir e refletir. Quantas vezes, apesar de não sermos nada surdos, agimos ou conversamos como se o fossemos. É o chamado “diálogo entre surdos” quando as pessoas conversam, mas não escutam – ou não querem escutar – o que o outro diz. Um fala uma coisa, mas o outro entende – ou finge  entender – o que bem quiser, distorcendo, muitas vezes, as palavras do outro. É tempo perdido para ambos. É inútil, não resolve e não muda nada.

Neste domingo, o evangelho nos apresenta a primeira pregação de Jesus e o chamado, também, dos primeiros discípulos. O seu convite à conversão e ao seguimento ecoa, ainda hoje, para todos, sem dúvidas, com tempos e respostas diferentes para cada um, mas ainda capaz de mudar a vida das pessoas. A conversão é uma decisão importante; se for algo passageiro e superficial é pura ilusão, promessa nunca cumprida. Conversão pede mudança de pensamentos, valores, posturas e estilo de vida.

Contudo, isso pode acontecer somente quando percebemos e acreditamos que esta mudança seja para melhor. Não uma melhoria na “quantidade”, mas na “qualidade”. Estamos escolhendo algo que nos fará mais felizes, que dará mais sentido e plenitude a nossa vida. Por isso, a conversão exige também fé e confiança em quem nos convida a mudar. Na dúvida, ninguém se mexe; o bom senso e a prudência nos prendem.

Pelo jeito os primeiros apóstolos tiveram coragem, deixaram o que era seguro e conhecido para eles – o barco, a pesca, o pai – para seguir o pregador de Nazaré. Talvez, simplesmente, viram em Jesus alguém mais confiável do que as suas redes, do que a sua própria profissão. Somente na palavra continuavam a ser “pescadores”, mas agora o seriam de pessoas, de amigos e inimigos, de conhecidos e desconhecidos. Deixaram o que lhes devia parecer certo, para algo de imprevisível e desconhecido. Acreditaram, porém, que o que lhes podia acontecer, com Jesus, devia ser algo para o qual valia a pena arriscar a vida.

Desde aquele tempo, quantos ficaram insensíveis ao chamado de Jesus… Quantos de nós, ainda hoje, preferimos os nossos cálculos, o nosso aconchego aos riscos da vivência do evangelho? Falo assim porque, quando menos pensamos, todos podemos ficar “surdos” aos apelos de Jesus ou nos satisfazer com respostas já preparadas, doutrinalmente perfeitas, mas longe da alegria e do entusiasmo do evangelho. Estas respostas não têm nada a ver com a conversão. Servem só para nos convencer que, afinal, continuamos sendo bons cristãos. Se o Senhor quiser, chame outros, nós já respondemos. Será mesmo?

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Por dez mil rublos
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Certa feita, um jovem se queixava de Deus nos seguintes termos:
– O bom Deus dá riquezas aos outros, mas não dá para mim. Como começar a vida sem nada?
Um ancião que o ouvira queixar-se lhe diz:
– Serás tão pobre quanto acreditas? Deus não te deu juventude e saúde?
– Não digo que não e até posso me orgulhar da minha força e da minha juventude!

O ancião lhe toma, então, a mão direita e lhe diz:
– Deixaria que a cortassem por mil rublos?
– Certamente que não!
– E a esquerda?
– De modo algum.
– E consentiria, por dez mil rublos, em perder a visão?
– Que Deus me proteja! Eu não daria um único olho por nenhuma fortuna!
– De que se queixa então? – disse o ancião – Não vês que Deus te deu uma imensa fortuna? Vai e, doravante, sê mais grato.

Este diálogo é nada menos que do famoso escritor russo Leon Tolstoi. Uma sábia reflexão e, ao mesmo tempo, uma lição de vida. Com efeito, acredito que muitos de nós esqueçamos tantos dons que receberam da vida ou de Deus, se nele acreditam, que vivem constantemente insatisfeitos, porque não possuem aquelas riquezas que o mundo apresenta como indispensáveis para uma vida feliz.

Sonhamos, na prática, de possuir muito dinheiro. Mais temos, mais desejamos, pela simples razão de que sempre haverá alguém mais rico do que nós. Assim, ficamos com inveja, desejamos maus negócios para os outros que os julgamos adversários num combate sem fim. Ficamos tão obcecados pelas coisas materiais que acabamos, conscientemente ou não, desprezando outros tipos de riquezas, sobretudo aquelas que enriquecem o coração, mas não o bolso. Se o dinheiro é a medida de tudo, os bens que não podem ser comercializados perdem o valor, porque estão fora do mercado. Não têm nem vendedores e nem compradores.

No evangelho deste domingo, João Batista declara que Jesus é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Numa pequena frase ele resume uma longa história de lamentos e de esperanças, de profecias e de infidelidades e, ao mesmo tempo, faz uma maravilhosa profissão de fé. A esperança da libertação do pecado e da morte chegou ao fim. Agora está presente na história humana, solidário e irmão de todos, o Filho de Deus, capaz de obedecer ao Pai, até dar a sua própria vida. Nele está agindo o Espírito, não somente para uma missão específica e limitada, mas para realizar, uma vez por todas, a reconciliação do gênero humano com o amor misericordioso de Deus. Jesus é “o Cordeiro”. Não será mais necessário o sangue de animais, porque o sangue derramado pelo Filho, na cruz, reconduzirá plenamente a humanidade ao encontro com o Pai, numa comunhão renovada de vida e de amor, de paz e liberdade. Apesar dos nossos pecados e das nossas fraquezas, o amor de Deus, manifestado no Filho, é mais forte do que o pecado e a morte. Fomos, enfim, libertos.

Esta riqueza, esta possibilidade de amor, tem valor incalculável. Custou a vida do Filho. No entanto parece que tenhamos perdido a consciência do valor deste amor. Mal agradecemos e menos ainda procuramos entrar no caminho da vida nova que Jesus nos ensinou. Queremos riquezas, bem estar, saúde, conforto, muitos objetos desnecessários. Dificilmente pedimos que o Senhor aumente o nosso tesouro de amor, que nos dê a oportunidade de amar mais. Competimos em poder, nunca em generosidade. Desejamos ser grandes, famosos, mas nunca mais santos. É sinal que a bondade e a misericórdia valem pouco aos nossos olhos, as desprezamos e não tem lugar em nosso projeto de vida.

Jesus, o Cordeiro que tira o pecado do mundo, doa-nos um caminho de amor, talvez de sacrifício e de doação, com certeza de superação dos nossos defeitos e do nosso egoísmo. Pobres de nós se pensamos que a bondade do coração seja tempo perdido, esforço inútil, vida não vivida. E se fosse o contrário? Se a verdadeira riqueza estivesse mesmo na capacidade cada vez maior de amar, de fazer o bem, de “perder a vida para ganhá-la” (cf. Mt 10,39)? Talvez saberíamos agradecer mais a Deus e reclamar menos com ele. Seríamos mais felizes. Tolstoi tinha razão: Deus nos deu uma imensa fortuna.

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ESTOU AQUI DE PASSAGEM
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

No século passado, um turista americano foi visitar o famoso rabino polonês Hofez Chaim. Ele ficou maravilhado quando viu que a casa do rabino era constituída de um simples quarto cheio de livros. Os únicos móveis eram uma mesa e um banco para sentar. – Rabi, onde estão os seus móveis? – perguntou o turista. – E os seus, onde estão? – replicou o rabino Hofez. – Como assim, os meus? Eu estou aqui somente de passagem – respondeu o americano. – Eu também – disse o rabino.

Todo ano no domingo da Epifania lemos a página dos Magos do evangelho de Mateus. É evidente que o evangelista quer nos dizer muito mais que contar uma história. Os evangelhos não foram escritos para satisfazer as nossas curiosidades, mas para nos ajudar a crer. Assim os Magos, personagens misteriosas e dos quais, praticamente, não sabemos nada, representam todas aquelas pessoas que saem em busca do “rei que nasceu” apesar de não fazer parte do povo de Israel e nem conhecer “as escrituras”.  Uma estrela os orienta e, quando encontram o Menino, ficam cheios de alegria e o adoram. Depois desaparecem do evangelho; simplesmente “retornaram para a sua terra”.

O evangelista quer nos dizer que qualquer um pode encontrar Jesus. Basta ter o desejo, a determinação e alguém que o oriente. A estrela, o caminho, a busca e as Escrituras podem significar tudo isso. Os Magos são apresentados como pessoas interessadas, que não desistem facilmente, porque acreditam que vale a pena encontrar o que estão procurando. Eles têm humildade suficiente para pedir ajuda a quem conhece os Livros Sagrados, a quem, pensam, deveria saber e poder orientá-los na sua busca. Para alcançar a meta não tem medo de sair do seu lugar, de caminhar e perguntar.

Assim os Magos representam os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares da terra que procuram de coração sincero dar um sentido às suas vidas. Eles arriscam, caminham e, no final, encontram. Os outros podem ajudar, é verdade, mas ninguém pode nos substituir na busca fadigosa das respostas pessoais às grandes perguntas da vida. Podemos tentar fugir delas, deixar para outro dia, achar que seja inútil.

No entanto, a vida vai passando e as grandes perguntas nos acompanham sempre porque estão dentro de nós. Se ficarem sem respostas, um dia perceberemos, inexoravelmente, o vazio. Chegaremos à conclusão de ter perdido o tempo, os anos, talvez os melhores da nossa vida. Não podemos viver sem sonhos, sem ideais, sem projetos, sem fé. Nossos de verdade; pérolas preciosas que guardamos e que não podemos perder.

O segredo que os Magos nos ensinam é estar dispostos a caminhar. Precisamos sair das “certezas” fáceis, comuns, banais, daquelas que, aparentemente, são de todos. Somente fazendo perguntas, querendo saber e entender, questionando nós mesmos e os outros, descobriremos a cada dia algo de novo, se abrirão horizontes e a estrela sempre reaparecerá. Tudo isso vale para qualquer pensamento ou ideologia, visível ou disfarçada, e também vale para a fé. A sociedade do consumo sem controle, das coisas inúteis, dos mitos instantâneos e das aparências enganosas, quer pensar para nós, quer nos dizer tudo o que devemos fazer, desejar, escolher.

Assim renunciamos a refletir e transferimos para ela a responsabilidade das nossas escolhas. A respeito da fé, também, não basta imaginar de tê-la herdada dos pais, de tê-la recebida uma vez por todas. A fé deve ser uma luz para cada um de nós, bem viva, resultado também de busca e decisão pessoal. De outra forma ela fica um presente que nem chegamos a desembrulhar. Para isso precisa caminhar muito e quem caminha não pode carregar tantas coisas, nem móveis e nem bagagens inúteis. Somos mais peregrinos do que pensamos, como o rabino e o turista. Mas a alegria do grande encontro acontecerá. Como foi para os Magos.