Artigo dominical

O jumento e o presépio
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

 Certa vez, um jumento conseguiu entrar, ninguém sabe como, numa igreja do interior. Era tempo de Natal e, num canto da capela, o povo tinha organizado um belo presépio. O jumento ficou olhando toda aquela arrumação. Não faltava nada. Tinha a estrela, as ovelhas, os pastores, os magos e tantas outras figurinhas de joelho em adoração. Finalmente o jumento reconheceu um seu semelhante, pequeno como os outros, mas com certeza seu parente. Chegou à conclusão de que tudo aquilo devia servir para celebrar o culto do jumento. Com um suspiro de saudade o animal pensou: “Antigamente, sim, os jumentos eram importantes. Deviam ser os donos do mundo!”.

Não sei se aquele jumento, ou burro que fosse, era tão inteligente para alcançar tamanho raciocínio, no entanto acontece também conosco que, muitas vezes, olhando as coisas e as pessoas, enxergamos somente aquilo que nos interessa, aquilo que achamos importante e vantajoso para nós. O resto passa despercebido ou mesmo ignorado.

Nestes dias, as nossas cidades estão cheias de luzes, de Papais Noéis de árvores de Natal de todo tamanho, cores e materiais. Quantas figuras e objetos, por causa da propaganda, tornam-se símbolos do Natal. Está passando despercebido o que está no centro, no foco do presépio: a Sagrada Família: Maria, José e o menino Jesus. Talvez porque estas personagens, afinal, não possam ser tão manipuladas, desfiguradas ou mesmo “pirateadas”. Foi mesmo aquela a família que Deus escolheu quando quis se tornar um de nós, humano, fraterno, solidário.

Assim, no domingo da Sagrada Família, somos convidados a contemplar àquela única e extraordinária família para aprender com ela e repensar também as nossas famílias, com todas as suas belezas e fraquezas. A família que o Pai escolheu para o seu Filho foi uma família muito comum, pobre, migrante, fugindo das ameaças dos poderosos. Foi uma família pequena, desconhecida, igual a tantas outras que, ainda hoje, sobrevivem nas periferias das grandes cidades, no interior de tantos países, enfrentando a luta do dia a dia. O extraordinário daquela família não esteve nas suas condições exteriores, nas suas regalias ou por não lhe faltar nada, esteve na fé que a alegrava, na esperança que a iluminava, no amor que a unia.

Quantas vezes a crise da família, hoje, é apontada como causa dos inúmeros desmantelos da sociedade. Escutamos isso de pesquisadores, juízes, pastores, políticos e policiais. Parece que as violências, drogas, crimes, depredações e desequilíbrios sociais e humanos tenham as suas raízes em famílias desarrumadas ou inexistentes. Pobre família! Lá, onde a alegria da vida deveria começar, onde o exemplo de doação e de carinho deveria ensinar por si mesmo, parece reduzida a simples convivência, a relações banais e interesseiras. Enchemos as casas de objetos e as esvaziamos de virtudes.

Talvez tenhamos que nos perguntar: o que fazemos para que a família continue digna da missão que lhe foi confiada? O que fazemos para alimentar no coração dos jovens um sonho bonito de família? Uma família que não seja um arranjo qualquer, algo que murche e passe de moda como qualquer enfeite de brilho superficial.

Precisamos confiar mais nas possibilidades das nossas famílias, nos laços que as unem, invisíveis, certo, mas capazes de desafiar os tempos e as circunstâncias da vida. Não será por existir a lei do divórcio que vamos desistir de acreditar no amor que dura para sempre, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Não será pela facilidade do aborto, tratado como uma questão de saúde pública, que a existência de uma criança será considerada lixo hospitalar. Não será pelas manipulações das ciências biológicas que deixaremos de amar as pessoas com deficiências.

Toda família pode ser sagrada quando acolhe a vida e a faz crescer “em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52) como fizeram Maria e José com o menino Jesus.

Artigo dominical

Perguntas e respostas
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

No ano de 2379 um homem e um marciano – assim se chamam os supostos habitantes do planeta Marte – se encontram e começam a falar:

– Nós marcianos somos todos iguais.
– Nós homens somos todos diferentes.
– Nós marcianos estamos sempre todos de acordo.
– Nós homens quase nunca estamos de acordo.
– Nós marcianos estamos sempre com o mesmo humor.
– Nós homens não; às vezes estamos alegres, outras vezes tristes e à vezes estamos alegres e tristes ao mesmo tempo.
– Para nós marcianos não é fácil compreender vocês.
– Também para nós não é fácil.
– O que? Compreender a nós marcianos?
– Não, compreender-nos entre nós homens.

Não faltam muitos anos para que este diálogo imaginário possa acontecer. Quem sabe, chegando lá… No entanto, compreender os outros nunca é fácil. Cada um de nós também é uma interrogação para si mesmo. Formular perguntas e buscar respostas é sinal da nossa inteligência e da nossa vontade de dar um sentido à vida. Muitas questões, inclusive, exigem uma resposta pessoal. Os outros não podem responder por nós. Está em jogo a vida de cada um.

O evangelho deste terceiro domingo de Advento está cheio de perguntas e respostas. É João Batista que manda perguntar a Jesus sobre a missão dele, e é Jesus que interroga as multidões sobre João: quer saber se entenderam o seu papel de profeta. Cada pergunta pede uma resposta. Assim, Jesus lembra aos discípulos de João que os sinais que ele faz são os sinais do messias prometido e esperado.

Aqueles que sabem ver e ouvir conseguem compreender. Eles mesmos podem dar uma resposta a respeito de quem é Jesus. Se alguém ainda está cego e surdo, ele mesmo pode abrir os seus olhos e os seus ouvidos. Quem se deixar curar por ele, quem se reconhecer pobre e carente, acolhe a boa notícia do Evangelho, acredita e não fica escandalizado com as suas palavras e os seus gestos. Pelo contrário, fica feliz, porque, finalmente, as antigas promessas dos profetas estão se cumprindo. Para entender a novidade de Jesus e a sua mensagem são necessários olhos e ouvidos novos. Quem se sente seguro nos seus preconceitos dificilmente entenderá. Continuará cego, surdo ou escandalizado.

Também a respeito de João Batista surgem muitas perguntas. Se ele for de verdade o mensageiro enviado à frente do messias para preparar o caminho dele, então, o Salvador não está longe, quem sabe já esteja presente no meio do povo. Jesus perguntando às multidões o que entenderam a respeito da missão de João Batista, está falando dele mesmo e de como é grande a tarefa de anunciar a sua chegada. Apesar desta missão única e difícil de João Batista, ele, porém, ainda faz parte da preparação, do tempo que antecede o evento. A presença de Deus que caminha com o seu povo já está acontecendo; o reino dos céus e os seus sinais já são visíveis. Assim quem acolhe o reino, por mais humilde que seja, já vive o evento e não mais a preparação e a espera.

É a nossa vez, agora, de colocar perguntas e buscar as respostas. Qual é a nossa posição a respeito do Reino que Jesus veio iniciar e que continua acontecendo na história das nossas vidas e da humanidade inteira? Será que ainda estamos indecisos ou aguardando outros sinais para participar ativamente da construção deste Reino? Mais uma vez cabe a cada um de nós abrirmos os olhos e os ouvidos ou pedirmos ao Senhor que nos cure de nossa cegueira e surdez. Simplesmente porque o Reino se revela aos pequenos, aos comprometidos, aos que confiam e acolhem a Boa Notícia de Jesus.

Também hoje, quem não admite a sua fragilidade e as suas limitações continua cego no seu orgulho e surdo aos apelos de Deus. João Batista e a sua pregação, o Natal de Jesus e a sua mensagem de paz e bem para todos, continuam incompreensíveis ou equivocados. Parecem conversas de outro planeta. Marte?

Artigo

UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA!
João Silva

A Ordem dos Advogados do Brasil é uma instituição importante para a democracia e o seu passado de luta orgulha os brasileiros. E não é preciso muito esforço para se ter a prova disso. Basta um olhar crítico sobre a história recente do País.Exibindo 1489273_717396378271094_178270815_n.jpg Sem a participação da OAB, da Associação Brasileira de Imprensa, de alguns partidos políticos e outras entidades da sociedade civil organizada, não se teria restaurado a democracia no País.

No Amapá o passado da OAB também é de muita luta contra a falta de liberdade e a concentração de poder nas mãos dos que governaram o então Território do Amapá. Felizmente hoje somos um Estado, com todos os poderes inerentes a essa conjuntura instalados e funcionando na sua plenitude. É sob esse clima de independência politica e administrativa que os advogados amapaenses irão escolher os seis (6) nomes para compor a lista sêxtupla que será encaminhada ao Tribunal de Justiça do Estado, afim de preencher a vaga do quinto constitucional (desembargo).

Pelo que se observa a eleição na OAB transcende aos limites da entidade para tocar de perto no interesse de todos os amapaenses, povo que é objeto da preocupação dos que apoiam a candidatura de Wagner Gomes.

Wagner Gomes foi presidente eleito da OAB/AP, por três períodos.

Na primeira gestão a frente da entidade, atendendo o clamor da população, foi ele que impôs uma derrota ao Governo, que insistia na cobrança da taxa de iluminação pública, considerada uma bi-tributação pelos advogados da OAB.

Uma inusitada ação civil pública, naquela época, impetrada pela entidade, acabou por colocar abaixo a cobrança que era feita ilegalmente pela Companhia de Eletricidade do Amapá. A atitude do então Presidente da OAB foi de afirmação na defesa das causas populares.

Por causa da vocação de Wagner Gomes para a vida pública e a sua participação efetiva e corajosa nos embates que desembocaram em várias conquistas politicas e sociais no Amapá, é que concluo uma coisa: a sua eleição para compor a lista sêxtupla do quinto constitucional é uma questão de justiça, ele que há mais de trinta e cinco anos se sustenta e sustenta seus familiares tão somente à custa dos seus trabalhos advocatícios e tem se revelado, nesses anos todos, um homem inconformado com as injustiças sociais e sensível a precariedade da liberdade de expressão no Estado do Amapá, se colocando na defesa de vários jornalistas, cuja atuação corajosa e decisiva no esclarecimento dos fatos tem despertado a ira dos que gostariam de silenciar a imprensa para sempre.

Poderia encerrar lembrando de sua atuação no júri que condenou os matadores membros da família Magave, mas prefiro recorrer a uma imagem que nunca esqueci: o meu amigo Wagner Gomes ao lado do Senhor Diretas Já, Ulisses Guimarães, em 1984, naquele comício histórico no coração do Laguinho, quando, aliás, aconteceu o que já era de se esperar..

A luz da praça foi embora, mas as vozes da democracia e o povo não; mesmo na escuridão ninguém arredou o pé, ninguém cedeu nada. Naquele dia todo mundo deixou o Laguinho sonhando com um País melhor.

Artigo dominical

Não cabe mais nada!
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um sábio, bem conhecido pela profundidade do seu pensamento, recebeu a visita de um professor universitário que tinha ido ter com ele para conhecê-lo e lhe fazer algumas perguntas sobre as suas doutrinas. O sábio serviu o chá ao hospede. Encheu a taça e continuou a colocar o chá, mesmo com o líquido trasbordando. Fez tudo isso sorrindo como se fosse uma coisa normal. O professor ficou olhando o chá derramado e, com expressão estupefata, mostrou que não entendia nada do que estava acontecendo. Pela boa educação não quis falar logo, mas, a certa altura, não aguentou mais e gritou:

– Por favor, não está vendo que a taça está cheia? Não cabe mais nada! – O sábio respondeu calmamente:

– Como esta taça está repleta de chá também o senhor está cheio da sua cultura e das suas opiniões. Como posso lhe falar das minhas doutrinas, compreensíveis somente aos corações simples e abertos, se antes o senhor não esvaziar a sua taça?

Neste domingo a solenidade de Nossa Senhora da Conceição prevalece sobre a liturgia do Advento. Acreditamos que Maria, nossa Senhora, foi “preparada” para cumprir a missão única e irrepetível de ser a mãe humana do Filho de Deus feito carne como nós. Jesus foi, em tudo, igual a nós, menos no pecado. Foi tão igual que aceitou morrer como todo ser que chega a este mundo, solidário com todos os mortais, fracos e pecadores. E Maria? Na saudação do anjo encontramos a resposta: “Alegra-te cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1,28). São as palavras que sempre repetimos quando rezamos a Ave-Maria. Ser “cheia de graça” é a condição de Nossa Senhora. Estar cheios, significa que não cabe mais outra coisa. Neste caso, Maria estava cheia da “graça”, do amor, da gratuidade de Deus.

As palavras podem ser diferentes, mas todas nos dizem que o coração de Maria estava decididamente “ocupado” pelas coisas de Deus. A vontade de Maria era a vontade de Deus. O projeto de vida de Maria era o projeto do amor de Deus com a humanidade. Faltava somente o sim dela, em respeito à liberdade e a responsabilidade das ações que cumprimos; respeito que o próprio Deus valoriza e aprova. Com a graça dEle, nossa Senhora venceu o medo e aceitou fazer parte das grandes e maravilhosas obras do Pai. Ela respondeu com total disponibilidade, sem reservas ou receios: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Assim nasceu Jesus, o Salvador, compromisso perfeito e definitivo do amor de Deus-Trindade com a humanidade toda e com cada um de nós, que continuamos a trilhar, confusos e incertos, os caminhos da história.

Podemos nos perguntar, de que está cheio o nosso coração? Vivemos numa sociedade onde a chamada “democratização da comunicação” favorece a troca de ideias e de pensamentos. Hoje, nas redes sociais, todos falam de tudo e sobre tudo. Os jovens  “postam” o seus pareceres. Enaltecem e derrubam. Exaltam e falam mal. Por isso podemos ter o nosso coração e a nossa mente cheia da opinião dos outros, correndo atrás dos últimos comentários sobre as últimas notícias. Quem se considera cheio de tudo, sempre atualizado sobre tudo, pode, afinal, estar absolutamente vazio, porque não tem mais nenhuma opinião pessoal. Prefere andar sobre as ondas da maioria virtual que firmar-se, corajosamente, sobre ideias importantes e valiosas que, não necessariamente, coincidem com aquelas da moda ou de quem grita mais alto. Menos ainda as opiniões dos poderosos que nunca querem perder as suas posições de prestígio.

Como o professor da história, talvez precisássemos, nós também, esvaziar-nos de algumas doutrinas badaladas como novas e atuais, disfarces, porém, de antigos orgulhos e egoísmos humanos. Deveríamos dar mais ouvido àquela Palavra que o próprio Deus nos dirigiu. Palavra que se fez carne e que continua a ecoar e a fazer maravilhas nos corações simples e abertos. Como o coração de Maria, nossa Senhora da Conceição.

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Jango e a exumação da verdade
*Pedro Simon

Os leitores de Zero Hora foram brindados, semana passada (22), com um brilhante editorial. Partia de premissas corretas para chegar a conclusões equivocadas. Começava pelo título infeliz (Revisionismo pirotécnico) e acabava desmerecendo o esforço que faz o país para exumar o ex-presidente João Goulart e a verdade soterrada pela ditadura. Ninguém se excede ao reescrever uma História fundada na mentira, como imagina o jornal, que capitulou ao embuste ao justificar: O Congresso da época chancelou tudo.

O Congresso de 2013, porém, não se dobrou e, na madrugada de 21 de novembro, corrigiu um ato de submissão cometido pelo Congresso na calada da noite de 2 de abril de 1964. Há 49 anos, de forma leviana, contrariando os fatos e a verdade, parlamentares emprestaram suas biografias para chancelar a falsidade de uma suposta fuga do país do presidente Jango, que estava em Porto Alegre tentando resistir ao golpe, que acabaria fechando o próprio Congresso por três vezes.

Uma resolução proposta pelo senador Randolfe Rodrigues e por mim, agora, resgata a história real e retira da treva o caráter de legalidade que se tentou dar, ao longo do tempo, para uma truculenta manobra parlamentar que tentava camuflar o putsch envergonhado.

Os políticos, como os jornalistas, devem se pautar sempre pelo que é fato e é verdade, bases essenciais para a construção da democracia. Quando os eventos são mentirosos, eles devem ser apurados e recontados, cedo ou tarde, como tributo à História.

A resolução do Congresso não tenta reempossar Jango, nem desfaz o que fez a ditadura. A altiva decisão do parlamento, agora, corrige um deslize histórico que rebaixou o Legislativo ao papel de cúmplice de um regime que, depois, abastardou a vontade popular pela força das cassações e pela violência dos Atos Institucionais, que prescindem do Legislativo e do povo.

Todos os anos, às 10h de 27 de janeiro, os habitantes de Israel param o que estão fazendo e saem dos carros e ônibus para ouvir em silêncio as sirenes que varrem o país por dois minutos. É a lembrança perene pelos milhões de judeus mortos pelo nazismo e homenageados no Dia Internacional das Vítimas do Holocausto. É pura emoção, sem pirotecnia. É o simbolismo da raça humana que não se abate. O reconhecimento pelo Congresso de que Jango é um presidente deposto, e não fugitivo, tem o peso dos símbolos que orientam e elevam a consciência do mundo.

*Senador (PMDB-RS)

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A corrente
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

A corrente tinha vergonha dela mesma. – É assim – pensava – as pessoas querem ficar longe de mim e têm razão: elas gostam da liberdade e odeiam ficar acorrentadas! – Um dia, porém, passou por aí um homem, pegou a corrente, subiu numa árvore, amarrou as duas pontas a um galho bem forte e fez um balanço para as crianças. Agora a corrente serve para fazer voar para o alto os filhos daquele homem e é muito feliz.

Às vezes basta pouco para dar valor às coisas e às pessoas. Basta simplesmente encontrar alguém que saiba reconhecer este valor.

Com a Festa de Cristo Rei encerramos o ano litúrgico. A página do evangelho de Lucas, que nos é oferecida neste domingo, é o trecho sempre tocante do diálogo de Jesus, agonizante na cruz, com os dois ladrões condenados junto com ele. A cruz é o verdadeiro trono de Jesus e a sua coroa é de espinhos. No entanto, é naquele momento, único e irrepetível, que ele doa a sua vida para, com o seu amor, resgatar-nos do pecado e da morte. Mistério do amor de Deus: é na fraqueza que ele vence, é assumindo a morte que derrota a própria morte. Desarma-nos pela impotência, ganha-nos pelo sofrimento,  conquista-nos pelo amor. Não toma, doa-se. Não força,  humilha-se.  Não se vinga, perdoa. Nada mais podemos contestar a um Deus inerme, que se entrega em nossas mãos sangrentas. Ele, que teve compaixão dos homens nas suas doenças, misérias e pecados, agora pede o nosso amor compassivo. É a nossa vez de aprender a gastar nossas vidas por amor como resposta e gratidão pelo amor dele.

Ainda hoje muitos se juntam ao coro dos zombadores. A cruz sempre será escândalo e loucura. Um, porém, ao menos um, reage. É o bom ladrão. Talvez esteja encontrando Jesus pela primeira vez, não terá outra chance, está no final de uma vida perdida, pagando pelo mal cometido. Mas ele faz um último ato de fé. Reconhece que Jesus “não fez nada de mal” e lhe pede que “se lembre” dele quando estiver entrado no seu reino. Jesus lhe promete o paraíso. Porque o paraíso é isso mesmo: ser lembrados por Deus. O inferno é ficar longe do seu amor, ser esquecidos por ele. Isso se Deus conseguir mesmo esquecer-se de alguns dos seus filhos. Vai ser muito difícil. Basta que os filhos continuem a deixar-se encontrar por ele, apesar dos caminhos contortos da vida, porque é sempre ele quem vai atrás da ovelha desgarrada.

Jesus veio neste mundo justamente para nos lembrar de que Deus nunca se esqueceu de nós, nunca nos abandonou, por desfigurados e desumanos que sejamos. Ele quis ser nosso irmão até o sofrimento e a morte para ninguém dizer que teve vida fácil ou privilégios. Quis ser preso para nos libertar das prisões do egoísmo, da vingança, do ódio e dos vícios. Somente nos pede um ato de fé nele. Simples e sincera.

Com este domingo, concluímos também o Ano da Fé, que nos foi proposto pelo papa Bento XVI e continuado pelo papa Francisco. A fé consiste em saber em quem acreditamos.  Devemos sempre procurar conhecer melhor o nosso Deus, para não acabarmos acreditando em alguém que, afinal, não era ele. Mas também precisamos entender o porquê da fé.

Acreditamos para que não se perca nada das alegrias e das tristezas da vida, dos afetos e dos desafetos, do bem e do mal. O bem nos deveria fazer desejar mais, buscar a plenitude. O mal, por outro lado, deveria-nos ensinar a ficar longe dos caminhos errados. Nada fica perdido, nada e ninguém é inútil aos olhos e ao coração de Deus. “Vai e faze tu a mesma coisa”, disse Jesus ao mestre da Lei depois de ter contado a parábola do bom samaritano.

“Ainda hoje estarás comigo no paraíso” disse ao bom ladrão arrependido. Quem encontra Jesus sempre tem chance de mudar e de ser feliz. Ele não deixa ninguém jogado às margens da vida. Ele quer que sejamos participantes e colaboradores do seu amor. Esta é a felicidade.

Até a corrente ficou alegre por fazer voar os filhos daquele homem que a tinha tirado do esquecimento. Quanto mais Jesus nos fará felizes se confiarmos nele.

Um artigo emocionante


Ruben Bemerguy

Ruben_8-150x150Eu não custo à tristeza. Ao menor sinal de dor, inclino-me a ela como único auxílio a minha sobrevivência. Sou assim desde menino. Não recorro a ninguém. Às vezes as lágrimas. Outras vezes aos meus mortos. Com as lágrimas e os meus mortos me sinto seguro e troco palavras que produzem outras lágrimas e outros mortos. Assim me contenho e assim vivo.

Outro dia escrevi que nessa vida tive muitas mortes, algumas até atrozes, difíceis de lembrar. Em todas, entretanto, eu estava amando e por isso meu temor em não morrer mais. É que morri no espelho, no escuro do quarto, rés a solidão. Morri no sábado que foi, no domingo que vem, no sopro do rio que morreu no mar eu morri. E tantas foram às vezes em que morri que por aqui pouco se ouviu falar de dor. Morri a morte que dura. A morte que imortaliza.

Ontem, dia 15 de novembro, outra vez a meu aviso, emborquei na tristeza. Uma tristeza diferente de todas as outras tristezas com as quais já deitei. Tristeza inclemente que, de profunda que é, assusta a barbárie. Tristeza que financia a dor impagável. Uma tristeza nacional que escuta Quixeramobim e que rasga os Brasis trazendo úmido o meu próprio epitáfio.

José Genuíno Guimarães Neto foi preso ao cair da tarde. Preso, feito no Araguaia, porque condenado em um processo judicial cuja conclusão já se adivinhava desde o germinar da acusação, feito no Araguaia. Em casos assim, e já vi muitos idênticos, de nada adianta a riqueza técnica da defesa e também não contribui a prova de que provas para condenar inexistem. Não. É preciso condenar e prender. Isso era e é inexorável, feito no Araguaia.

Mais do que a condenação improvada, paralisa-me também o regozijo de alguns com a formatação da prisão. Um funesto gozo coletivo. Parece que a última cena do terror se obriga sem pecados. Dela se exige momentos de tensão. A subida ao cadafalso sob a cobiça dos feixes de luz, os mesmos que iluminaram a condenação, feito no Araguaia. Um majestoso avião onde tilintam metais e pulsos. Uma pequena cela onde jazem móveis não repousáveis, um lavatório torpe para purificar o tempo passado e o tempo futuro, um chuveiro e um vaso sanitário inexistentes. Tudo antecedendo o disparo letal. Feito no Araguaia.

Eu não li o processo em que condenado Genuíno e nem penso necessário para sabê-lo inocente. Basta a biografia. A história contada pela história. Minha confiança inabalável na história é suficiente a contar a história aos meus filhos. Se a tristeza me permitir, chamo-os em um canto e canto a história desse verdadeiro brasileiro que organizou, com seus exemplos, muito de meu tratado existencial.

Por isso, por muito mais que isso, sou agradecido ao Genuíno. Pressinto que um dia irei encontra-lo, livre como sempre foi e sempre será. Serei íntimo à primeira vista. Vou chamá-lo de Zé. Vou abraça-lo como é próprio entre irmãos. Levarei comigo seu livro biográfico. Devolverei o livro ao dono do livro. Livro que para mim já cumpriu seu papel. Depois volto a Macapá. Ai sim, vou até o rio amazonas, coloco-o embaixo do braço e saio com ele por ai. Vou contar a história do Zé ao rio e, ao fim, dizer ao rio: “Olha, falei com o Zé. E tu não sabes da maior: ele te mandou um abraço”.

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Um simples e honesto cachorro
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

A brilhante e barulhenta civilização dos homens avançava. Poucas áreas verdes e de mata estavam sobrando para os animais. Todos se reuniram em assembleia para planejar a resistência. Precisava de um computador para organizar todas as informações. Somente a memória de um elefante daria conta.

– Eu sou um elefante – disse o caititu. E, porque tinha um tio na comissão foi aceito na equipe. Também precisava de um sistema de comunicação rápido e eficiente. Um pombo-correio resolveria.

– Eu sou um pombo – declarou a galinha. E, porque todos gostavam dela, foi aceita na equipe. Faltava um conhecedor de obras públicas para organizar as reservas de água. Um castor saberia das coisas.

– Eu sou um castor – falou a toupeira. E, porque sabia mexer por baixo dos panos, conseguiu a vaga. Assim todos conseguiram o seu emprego e o seu salário. Sobrou um cachorro. Os sábios lhe perguntaram:

– E você, o que sabe fazer?

– Eu sou somente um cachorro farejador – respondeu o pobre animal.

– Continua sendo cachorro – responderam as autoridades iluminadas. No entanto as coisas foram piorando cada vez mais.

– Quanta comida nos resta para sobreviver? – perguntaram ao caititu.

– Não sei, não me lembro – respondeu ele. Assim foi desmascarado e mandado embora.

– E a água? Onde está a barragem que o castor devia construir?

– Os trabalhos ainda não começaram – respondeu a toupeira. Também foi demitida.

– Vamos mandar o pombo para ver se ainda tem alguma campina verde.

– Mas eu não sei voar – respondeu a galinha. Foi expulsa.

De repente, do alto da colina, o cachorro farejador começou a fazer sinais para segui-lo. Os animais, ao extremo de suas forças, arrancaram pela ladeira e seguiram o animal. Ele ia à frente, fuçava o ar, mostrava a direção, organizava as filas. Voltava para encorajar os que ficavam para trás. De novo, estava lá em frente… Depois de tanto deserto, finalmente chegaram numa região verde, com água e árvores frondosas. Todos ficaram muito felizes, aplaudiram o cachorro e o aclamaram salvador.

– Peça qualquer coisa que nós vamos lhe dar. – disseram-lhe.

– Eu sou somente o cachorro farejador, um honesto cachorro farejador – foi a simples resposta.

Bem que Jesus nos alertou: “Muitos virão em meu nome dizendo: sou eu… Não sigais essa gente!”. No entanto a nossa pressa e a ilusão de resolver rapidamente todos os nossos problemas nos faz acreditar e confiar nos messias que se sucedem na história. Nada de novo. Ontem foram os impérios e os salvadores apareciam ameaçando todo o mundo, garantindo bem-estar para os amigos deles. Para sobreviver era o jeito acreditar. Hoje são os que prometem maravilhas para pessoas e para países inteiros. Somente mais tarde se descobre quem pagou a conta do “progresso”, quanto ficou mesmo para o povo continuar a pagar e quanto os líderes mandaram para as suas contas no exterior. Quem não gostaria ter uma vida mais cômoda, bem abastecida e sem problemas, se ainda fosse verdadeiro que nisso consiste a felicidade? No entanto não existem solu ções mágicas ou imediatas. Os caminhos da justiça e da paz são longos e exigem esforço, compromisso, lealdade e, sobretudo, honestidade. As mentiras só atrasam e confundem o caminho.

Também sobre isso Jesus nos avisou. É mais fácil aplaudir quem promete felicidade neste mundo, também se mente e vende ilusões, que acreditar em quem nos convoca para um mutirão de solidariedade e partilha. Como sempre, queremos resolver os nossos problemas cada um por nossa conta. Raramente percebemos a dimensão social das questões. Ficamos incomodados com quem nos pede fraternidade e não egoísmo, seja individual, seja de grupos. Quem fala assim sempre será perseguido pelos poderosos, porque ameaça a uniformidade do consenso e quebra o silêncio dos acomodados.

Quando Jesus fala do templo de Jerusalém, que será destruído, não quer nos apavorar; ele quer simplesmente lembrar que devemos decidir em quem confiar. Talvez precisamos aprender  a olhar além das pedras bonitas. Pode ser areia disfarçada de pedra. Quem garante? Devemos escolher qual será a pedra sobre a qual construiremos o sentido de nossa vida. Uma pedra que nos garanta permanecer firmes até o fim, para ganhar a vida, como Jesus prometeu.

Caititus que se proclamam elefantes, galinhas que se consideram pombos e toupeiras afirmando serem castores, aparecem todo dia. Mas quem ajudou mesmo os nossos amigos animais foi o cachorro farejador. Um simples e honesto cachorro. Sem disfarces, fachadas e mentiras. Deu certo.

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A nossa casa parece o céu

Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

 Anos atrás, uma criança de oito anos de São José da Costarica, fazendo a sua tarefa escolar, escreveu: “A minha casa tem só dois cômodos, duas caminhas, uma pequena janela e um gato branco. Na minha casa, nós comemos somente à noite, quando meu pai volta para casa com um saquinho de pão e peixe seco. Na minha casa somos todos pobres, mas meu pai tem os olhos azuis, minha mãe tem os olhos azuis, meu irmão tem os olhos azuis, eu tenho os olhos azuis. Também o gato tem os olhos azuis. Quando estamos todos sentados à mesa a nossa casa parece o céu”.

Quantas vezes os olhos e o coração das crianças enxergam mais longe que os olhos e o coração dos adultos. Com sua simplicidade e singeleza, as crianças nos ajudam a perceber ou a lembrar do valor e do sentido verdadeiro das coisas. Para aquela criança, apesar da pobreza e da fome, a sua família reunida na mesa era um pedaço de céu. Alguns dizem que isso acontece porque elas, as crianças, sem perceber, guardam ainda em seu coração algo do lugar de onde, faz pouco tempo, vieram: o céu, onde estavam, perto de Deus, antes de nascer. É bonito acreditar nisso.

A disputa de Jesus com os saduceus, da qual nos fala o evangelho deste domingo, não é uma discussão sobre o matrimônio, como poderia parecer, mas sobre a ressurreição. O caso, irreal, apresentado pelos saduceus, fala de uma mulher que, nesta vida, teve sete maridos. Eles queriam saber de qual dos sete ela se tornaria esposa na outra vida, se houvesse mesmo ressurreição dos mortos. Jesus desmascara a insensatez da pergunta porque, diz ele, a outra vida, a ressurreição, não será uma cópia simplesmente melhorada desta vida, será algo de totalmente novo, onde não existirão mais casamentos e tudo o que eles trazem. Seremos todos “filhos de Deus”, isto é amados pelo único amor que desafia e supera qualquer imaginação humana: o amor de Deus. Neste caso, mais do que o amor conjugal específico entre marido e mulher, vale a capacidade de doar-se, de querer o bem do outro – ou da outra – e assim ser, cada casal, um sinal daquela aliança de amor que Deus estreitou com o seu povo e que Jesus Cristo renovou para sempre na cruz amando até o fim a humanidade.

É sempre difícil para nós, agarrados a este planeta terra pela gravidade e pela matéria, imaginar como será a ressurreição. Mas quem diz que devemos “imaginá-la” como se os nossos raciocínios e palavras conseguissem explicá-la ou descrevê-la? A ressurreição pode ser somente objeto de fé, porque será dom do próprio Deus que se doa a si mesmo. Dom é gratuidade, não um direito. É por isso que o caminho melhor para conseguir balbuciar algo sobre a ressurreição é o caminho do amor.

Quem não consegue pensar numa existência que não seja negócio, ganância ou interesse, tem boas probabilidades de achar o céu um tédio eterno, um “fazer nada” sem sentido. O contrário deveria acontecer com aqueles e aquelas que, de uma forma ou de outra, perceberam quanto e como o amor subverte e transforma os valores materiais que o mundo adora. O amor não é questão de fazer coisas, mas de ser amados e ser capazes de amar, mesmo sem “fazer”  ou articular ações na maioria das vezes. Se não fosse assim, pessoas pobres, pequenas, simples, doentes, no fundo de uma cama, com limitações físicas ou psíquicas, nunca poderiam amar. Quem pode julgar o amor e a gratidão que sente uma pessoa que por, por algum motivo, não consegue expressar este amor? Será que porque não o diz, ela não ama? E o que dizer das coisas pequenas, corriqueiras, do dia a dia, que porém alegram e preenchem nossas vidas, como o sorriso de uma mãe ou o carinho de uma criança?

Na ressurreição descobriremos, encantados, mas sem inveja e sem remorsos, o quanto grande foi o amor de pessoas desconhecidas e insignificantes aos olhos do mundo, mas grandes, muito grandes, aos olhos de Deus. Outros talvez, famosos e exaltados pelos homens, nos parecerão pequenos e mesquinhos. Mas também não haverá disputas ou classificações. Tudo será alegria porque tudo será avaliado pelo único critério que vale neste mundo e no outro, o único tesouro que não se consome: o amor.

Quantos olhos “azuis” desperdiçados existem por aí. Quanto pouco céu deixamos entrar em nossas casas. Quanto amor é barrado na porta dos nossos corações endurecidos. No entanto, quem se abre ao amor está a caminho da ressurreição. Os meus olhos são meio verdes e meio azuis. Não dá para mudar a cor deles, mas o meu coração sim. Todos nós podemos.