A tacacazeira de olhos ternos e largo sorriso

Dona Mangabeira era uma negra de olhar límpido, sorriso largo e dentes tão brancos como os guardanapos de algodão que ela mesma fazia para cobrir as panelas.

Foi uma das primeiras tacacazeiras da cidade. Era do bairro da Favela. Sua banca (naquele tempo não tinha os carrinhos de hoje) era montada na esquina da rua Leopoldo Machado com avenida Almirante Barroso. De longe se sentia o cheiro do tucupi. Esse cheiro dava água na boca atraindo tanta gente para sua banca. O camarão era vermelhinho e o jambu treme-treme.

Aos domingos, a movimentação era bem maior. Era parada obrigatória de quem passava por ali para ir ao estádio Glicério Marques assistir aos clássicos da época.

A todos – autoridade ou peão – Mangabeira atendia com alegria, contava histórias, fazia o tacacá do jeitinho que o freguês pedia.

– Mais goma ou tucupi? Quantas colheres de pimenta? Quer mais jambu?

E o freguês ia dizendo como queria.

De muitos ela sabia o gosto e já nem perguntava.

Contava que meu pai, o poeta e jornalista Alcy Araújo, era o único que tomava tacacá sem goma.

Mangabeira tinha um carinho especial pelas crianças. Para elas servia o tacacá em cuia menor e nada de pimenta.

Às vezes um moleque mais ousado pedia que ela colocasse um pinguinho. E ela, cheia de doçura, respondia: “Meu filho, criança não come pimenta”. E o moleque não insistia. O convencimento, tenho certeza, não era pelas palavras, mas pela doçura com que ela falava.

Além de tacacazeira, Mangabeira era excelente lavadeira. Daquelas que botava a roupa “pra quarar” e engomava usando ferro a carvão. Era também benzedeira, tirava quebranto de criança, fazia banho de cheiro pra curar gripe, catapora e sarampo e chás e garrafadas pra todos os tipos de males.

Mangabeira era uma imagem forte na paisagem do meu bairro e é uma das belas recordações da minha infância.

(Alcinéa Cavalcante)

Antônio Brasileiro, o homem misterioso que tocava músicas numa folha de mangueira

Uns diziam que ele era louco, outros falavam que era um bêbado. Não era  nem uma coisa nem outra, talvez misterioso, diferente de todos os outros homens que andavam  pelas ruas do antigo bairro da Favela. Ah, ele tinha sim mistérios guardados no olhar.
Sempre trajado elegantemente – calça social, sapato bico fino e camisa de mangas – diariamente ele percorria as ruas do bairro tocando maravilhosamente várias músicas, principalmente o hino nacional, numa folha de mangueira, por isso ficou conhecido como “seu Antônio Brasileiro”. Nunca vi ninguém, além dele, usar uma folha de qualquer planta como instrumento musical.
Louco não era, pois um louco jamais conseguiria essa proeza. Bêbado também não, pois caminhava sobre o meio-fio que, se muito, tinha um palmo de largura. Um bêbado não teria equilíbrio para tal.
Educado, mas de poucas palavras, cumprimentava todo mundo com um discreto bom dia, um aceno de mão ou inclinando a cabeça. Não falava de sua vida nem da vida de ninguém. Se alguém começava a lhe fazer perguntas tratava logo de pegar uma folha de mangueira e começar a tocar, assim fugia do interrogatório.
Quando ele aparecia tocando sua folha, as crianças corriam atrás dele e seguiam-no por alguns quarteirões. Ao ouvir o som, os adultos corriam para as janelas. Muita gente dizia que não havia ninguém que tocasse com mais perfeição que ele o Hino Nacional, em qualquer  instrumento que fosse.
Antônio Brasileiro nunca contou quando e como ou com quem descobriu que podia tirar os mais belos sons e tocar lindas melodias, soprando uma folha de árvore.
Seu endereço exato ninguém sabia. O certo é que morava na Favela (aqui abro um parêntese para dizer que o bairro da Favela nunca foi uma favela), talvez perto do estádio Glicério Marques, pois era por ali, na rua Leopoldo Machado que se ouvia, pela manhã, os primeiros sons de sua folha, depois descia a avenida Mendonça Furtado e seguia não sei para onde. Horas depois voltava pelo mesmo caminho.
Tinha família? Tinha sobrenome? Ninguém sabia. E se alguém lhe perguntasse não respondia, se punha a tocar. Como já falei, era homem de poucas palavras. Misterioso. E todos queriam desvendar, sem sucesso, os mistérios daquele tocador de folhas, que tinha o olhar sereno e quase nunca sorria.
Tinha profissão? Dizem que foi um cozinheiro de mão cheia do Hospital Geral e que do nada abandonou o emprego e passou a perambular pelas ruas. Por isso que uns dizem que ele era louco e outros que ele perdeu o emprego para o álcool. Mas eu reafirmo: nem louco, nem bêbado. Era o retrato da liberdade, livre de todas as amarras, talvez preso apenas aos seus mistérios que ninguém conseguia decifrar.
Às vezes quando caminho pelos canteiros floridos da avenida Mendonça Furtado ou à sombra das mangueiras da Leopoldo Machado imagino “seu Antônio Brasileiro” aparecendo de repente. Ele arranca uma folha de mangueira, começa a tocar, as pessoas aparecem na janela. Ele passa por mim, me cumprimenta com a cabeça, desce a ladeira e segue rodeado por um bando de moleques não sei para onde.
E eu sorrio. E quem me vê sorrindo assim sozinha nem imagina o por quê.
Antônio Brasileiro deixou seus mistérios impregnados na paisagem da minha Favela.

Quando meu amigo se perdeu na mata

Há muitos anos um amigo meu se perdeu na mata. Era caçador experiente, conhecedor dos segredos da floresta, acostumado a entrar na mata para relaxar, apreciar as árvores e caçar algum animal para comer.
Mas certo dia ele se perdeu. Ao atravessar um igarapé por cima de um tronco caiu e bateu a cabeça. Ficou meio zonzo e, ao invés de tomar o caminho que o levaria ao ponto de partida, tomou o rumo contrário.
Ele entrou na mata com dois amigos e como sempre cada um seguia para um lado, mas às 16 horas tinham que se encontrar no ponto de partida para retornar.
Nesse dia meu amigo não retornou. Seus dois amigos esperaram até o anoitecer… e nada. Voltaram para Macapá para pedir ajuda.
Muita gente se mobilizou. Mesmo quem não tinha experiência nenhuma com mata queria ir à procura dele.
Passaram-se dias e dias… e nada. Os que entravam na mata davam tiros na esperança de que ele respondesse. É assim que costumam fazer. Mas, desta vez, não havia resposta.

Na caçada anterior, meu amigo trouxe uma guariba para ser seu bichinho de estimação.

Já estava para completar um mês do desaparecimento quando a mãe dele lembrou da guariba. E disse: “É a mãe dessa guariba que está prendendo meu filho na mata. Soltem ela, devolvam ela para a mata que ela vai soltar meu filho”. Dito e feito.
Soltaram a guariba (meu amigo Cristiano – o Raimundo Maia Barreto – é testemunha disso).
Pois bem, no dia seguinte o desaparecido foi encontrado navegando num rio numa jangada que ele improvisou com galhos de árvores e o pouco que restava de sua roupa.
Foi encontrado por um avião de pequeno porte cedido pelo governo para sobrevoar a área.
“Não foi o avião que me me encontrou. Fui eu que o encontrei”, contava, dizendo que ao ouvir o barulho do avião correu pro rio na jangada que acabara de fazer e fez sinal levantando os braços.
Trazido para Macapá, foi internado no Hospital Geral (hoje HCAL) para fazer exames. Dois dias depois em sua casa nos contava a aventura.
Relatou que ouvia os tiros dos colegas, mas não podia responder porque só tinha uma bala na sua espingarda que não poderia desperdiçar pois lhe seria muito útil se encontrasse algum animal feroz pela frente. Se alimentava de frutas, folhas e raízes; matava a sede com água que tirava de um cipó; passava as noites acordado no topo de árvores; dormia pouquíssimas horas por dia e para isso deitava no chão e se cobria com folhas; passou fome e muito frio e não tinha noção de quantos quilômetros andou – pela floresta, riachos e subindo e descendo morros –  procurando a saída. Em vários momentos percebeu que andava em círculos, pois sempre passava pelo mesmo lugar.

Quando foi encontrado estava magro, quase nu, os pés, braços e pernas cheios de arranhões. Mas com muitas histórias para contar para os amigos, colegas de magistério e alunos pelos quais era tão querido.

E se alguém pensa que depois dessa ele se aquietou… negativo. Muchê continuou indo pra mata, porém nunca mais caçou guariba.

Adoráveis invasores

Discretamente eles começaram a frequentar o quintal e, como ninguém se importou, eles passaram a se achar donos. Fizeram morada nas árvores, comeram algumas frutas e jogaram outras no chão.
Um dia avançaram mais e chegaram até a garagem, onde começaram a cantar e fazer festas. Ninguém os expulsou.
Não demorou muito um deles, talvez o líder do grupo, ousou mais: entrou sorrateiro na área de serviço. No outro dia voltou, comeu a ração dos cachorros e chamou seus comparsas para um banquete.
E como ninguém se importou abusaram mais ainda; invadiram a cozinha, se apropriaram da fruteira e bicaram mamão, bananas e outras frutas.
Da cozinha para a sala foi um pulo, ou melhor, um voo. E agora são os primeiros a chegar para o café da manhã e alegrar nosso amanhecer com seus maviosos cantos.
(Alcinéa Cavalcante)

De quando os vizinhos eram os parentes mais próximos

Naquele tempo vizinhança era uma grande família. Falava-se que o vizinho era o parente mais próximo. E isso fazia muito sentido, pois qualquer sufoco – não importava a hora – recorria-se primeiramente ao vizinho.
Uma dor à noite? Corre lá no vizinho pra ver se ele tem um analgésico ou um chazinho.
Acabou o açúcar na hora de fazer o café? Ninguém ia tomar café amargo. “Menino, pega uma xícara e vai lá na vizinha pedir emprestado um pouco de açúcar”.
Ia  viajar e era dificil pegar taxi? (Naquele tempo se chamava carro de praça). O vizinho que tinha carro se prontificava a levar o viajante ao aeroporto.
Ia sair e não ficaria ninguém casa? Era só deixar a chave na casa do vizinho que o primeiro que chegasse ia lá pegar.
E aniversário de vizinho hein? Todo mundo queria ajudar a fazer a festa. Uma vizinha fazia o bolo, outra oferecia o vatapá, outra fazia o risoto e outras se ofereciam para moer a maniva da maniçoba… os homens ajudavam a botar a cerveja pra gelar naqueles enormes barris com imensas pedras de gelo e moinha. A moinha que um já tinha ido buscar na véspera numa serralheria.
Quando chegava um novo vizinho ele tratava logo de se apresentar indo de casa e falando: “Sou fulano de tal, estou me mudando hoje pra cá com minha família, trabalho nisso e naquilo e estou me colocando às ordens.”
A vizinhança mandava logo um bolo, ou qualquer outra guloseima, para os “novos parentes” como manifestação de boas vindas.
Era o tempo de cadeiras na calçada (não havia assaltantes) em animadas rodas de conversa enquanto as crianças brincavam de bombaqueiro, caí no poço, bandeirinha, tome esse anelzinho não diga nada a ninguém, esconde-esconde…
Todo mundo se conhecia, se gostava, se ajudava, repartia os frutos dos quintais.
Hoje praticamente os vizinhos não se conhecem, sequer se cumprimentam.
Lembrei disso porque ainda tenho alguns vizinhos “parentes mais próximos”. Dia desses, minha vizinha Josy – que tem coqueiros em seu quintal – bateu à minha porta com um cacho de côco. “Côco do Chicola, vizinha”. E tem também o Janjão que volta e meia me traz sapotilhas do seu quintal ou uma porção de cação cozido feito por ele.

(Alcinéa Cavalcante)

Quando a gente se guiava pelas estrelas

Quando a gente se guiava pelas estrelas

“Olha! Olha!” Exclamava o menino apontando para o céu.

“Lá vai, lá vai”.

E todos olhavam e viam e falavam sobre o objeto que passava saltitante entre nuvens e estrelas.

Não. Não era um disco voador. Era simplesmente um satélite, provavelmente desses que ficam fotografando a Amazônia.

Diversão da meninada naquele tempo, quando a noite caía, era sentar na frente da casa e olhar o céu, caçar satélites e estrelas cadentes, procurar São Jorge na Lua e identificar constelações.

O telescópio era um canudo de cartolina.

Ah, tempo bom, quando a gente sabia se guiar pelas estrelas e sonhava ser astronauta para visitar outros mundos, brincar em outros planetas e, depois, voltar à Terra com as mãos transbordantes de estrelas.

Trazer também uns fiapos de nuvem para fazer algodão doce, pois que a vida, meu irmão, era uma doçura e plena de encantamento naquela rua sem asfalto, sem bangalôs, sem muros e sem televisão.

(Alcinéa Cavalcante)

O rasgador de letras – Ruben Bemerguy

O rasgador de letras
Ruben Bemerguy*

Sou o único destinatário das coisas que escrevo e também das que não escrevo. As que escrevo, não leio. As que não escrevo, dedico tempo juntando letras imaginárias aqui e acolá, até ter ideia clara das cores predominantes em cada uma delas.  Depois as rasgo. Elas gotejam, como padecessem de desmedida dor moral. Sinto que elas – as letras – não perdoam minha inclemência, mas é assim que me omito de mim e sofro um pouco menos exatamente por não me conhecer, gravado ou não em papel.

Ignoro-me não por pesar, mas por amor. Meu grau de proximidade comigo, um certo sentimento de tolerância mesmo, está na precisa distância que de mim estabeleço.

Não sei de meus olhos ou do revestimento de minha pele. Acuso apenas a noção de minhas unhas. Delas, não posso prescindir. Não só por ser rasgador de letras, mas também pela necessidade de laminar frequentemente grande porção da vida.

Assim, dela, – da vida -, obstinadamente, dilacero de um tudo. De mim, sobra pouco. Esse resto trago empilhado na zona mais afiada das unhas, como se prestes a feri-lo ao mais tímido indício de remorso de ainda conservar algo de mim.

Nessa escuridão permanece o que de tenra idade ainda tenho: uma ginjeira, uma rabiola, um bem-te-vi, a primeira sessão de domingo no cine Macapá, um pedaço de menta, uma revista do Tio Patinhas e outra do Mandrake, um conga azul e um vulcabrás preto, um gol perdido, uma monareta, o tio Casemiro, seu Banha e um avião cruzeiro do sul, um pouco de extrato de alfazema, dois vinis: um Long Play e um Compact disc, um rabino distante e uma prece, alguns quebrantos, meio retrato onde não mais me pareço e um segredo. Isso é tudo que ainda me acompanha.

Compareço ao meu encontro a cada segundo. Arrumo e desarrumo na prateleira do vento isso tudo e depois, freneticamente, torno ao arquivo morto. Em seguida, volto ao ponto de partida. Sou assim.

Só não toco no segredo. Tenho medo. Ele, a ninguém deve ser dito. Muito menos a mim. Fico a imaginar se o descubro descalço e se seus pés decidem percorrer meu tronco em tênue intensidade? Se o descubro sem túnica e se seu corpo é bordado e se me põe em cerco militar e se minha infantaria a ele adere e se ele me escraviza? Se o descubro a articular outros segredos em meus ouvidos pastos? Se o descubro Cacique e se ele em círculos me canta e se seu arco arremessa uma flecha e se a flecha me vaza e se, por um lapso, eu gozar? Não. Nesse segredo eu não toco. Tenho medo.

O medo sincero é a mais gentil e sublime virtude de qualquer rasgador de letras. Mas não basta ter medo. É preciso também falar baixo. Bem baixinho, pra não excitar o segredo. Em mim, ele – o segredo – dorme, mas tem sono leve e isso é um risco permanente. Minha melhor porção o embala e o vigia, sem tréguas.

Sob o ângulo da vida, pareço louco. Ela – a vida – teima em nunca resignar-se a arquitetura dos que laceram letras. Daí, me quer em holocausto. Contra mim, imputa falsamente versos que nunca fiz, músicas que jamais ouvi, danças que nunca passei, beijos que não guardei.

Eu, na quietude da mais serena convicção, nada faço. Se o segredo dorme, me basta.

À vida, apenas digo: não me doce, nem me salgue. Me alme.

*Ruben Bemerguy é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras

SELFIE – Por Ruben Bemerguy

SELFIE
Ruben Bemerguy*

Tenho muitos vícios. O mais imperfeito deles é o vício de fumar. O mais perigoso é o vício de amar.
Imperfeitos ou perigosos os vícios me impõem a condição de servo.

Do primeiro – fumar – não raras vezes tentei me libertar, mas ainda sem êxito. Do segundo – amar – dado ao elevado grau de risco, já estou serenamente livre. É que amar mata. Segundo minhas observações, quem traga o amor como eu trago é candidatíssimo ao óbito precoce. Não há pulmão que resista a um grande amor. Melhor fumar. Fumar salva vidas.

Há outro vício. Desse, tal como o vício de amar, também permaneço liberto, ainda bem. É o vício da Selfie.  Criei até uma certa antipatia pela palavra Selfie. E olhe que amo as palavras. Só a elas, inclusive.

Mas Selfie é um estrangeirismo que faz com que quem o pronuncie passe representar o mais imponente falso-culto, quando pouco. Aliás, falso-culto é uma expressão, inventada por mim e para mim, exclusiva para identificar a exata futilidade da Selfie. A verdade, é que ando com raiva das Selfie’s. Em outras palavras, falso-culto tem o sinônimo falso-mundo. É, definitivamente, uma palavra criada para me proteger dos cínicos.

Selfie é, portanto, um auto-retrato (muitas vezes um multi-retrato) onde se irradia a vaidade própria, próprio da própria desconfiança.

A Selfie nunca será um retrato. O retrato nasce em outros olhos e isso é suficiente para distanciá-lo da Selfie. A Selfie, assim, é um verdadeiro funk ostentação.

Seja como for, e por isso mesmo o falso-mundo, eu nunca me deparei com uma única Selfie triste. Selfie que chore. Selfie saudade. Selfie volte pra mim. Selfie dúvida. Selfie perdi. Selfie me perdoe, eu errei.

Só encontro Selfie triunfante. Selfie Sorridente. Selfie Forte. Selfie Valente. Selfie ouruda. Selfie Feliz.

Ontem estive com o Rio. Expliquei quanto a meu vício de fumar e de como isso tem salvado a minha vida. Ele confidenciou que também inala do mesmo vício e por essa simples razão ainda existe. Depois, respirou fundo, e molhando em suas águas o vício do amor na modalidade cem metros rasos vaticinou: “Ouça Ruben, o amor não passa de um traço feito a lápis na cortina d’água”. E olha, de amor e de água o Amazonas entende mesmo. E muito.

Já quanto ao vício da Selfie, ele – o Rio – acha tudo muito natural. Justifica ensaiando que o aperto de pés, por exemplo, é mais sagrado do que o aperto de mãos. E que nós só assistimos os apertos de mãos porque o aperto de pés só se revela na volúpia de nossas águas mais profundas e, por isso, é invisível a olhos nus. Nada mais invisível do que o aperto de pés, segundo o Rio.

Quando comprimimos os pés descalços em outros pés descalços – me disse o louco do Rio – embora ninguém veja, ninguém saiba, caminhamos exatamente para a invisibilidade dos destinos paridos no vício que mata, mas sem o qual não se vive. O tal do vício de amar.

Para o Rio, esse excêntrico excessivo, seja a selfie auto ou multi, ela – a selfie – é palavra sem gênero e só por isso estaria justificada sua existência e proliferação. Para ele, a Selfie é e sempre será um aperto de pés. O que o selfie revela mesmo ninguém vê porque não é pra ver mesmo. É assim mesmo. Pés entrelaçados. Palmas enlouquecidas. Dedos em riso.

A Selfie é desse modo. Só anota que os pés existem, mas o aperto de pés é caligrafia que só se decifra no vício de amar.

Me despedi do Rio e ri. Ri muito. Costumo rir dos Rios.  Me diz o Rio que o vício de amar é efêmero e quer me fazer crer nele e em Selfie. Ora veja!

Arranquei um cigarro do bolso esquerdo, acendi a luz que me salva a vida e segui. Simplesmente segui.

*RUBEN BEMERGUY é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras

Mãe, eu queria ser seu neto – Ruben Bemerguy

Mãe, eu queria ser seu neto
Ruben Bemerguy

Mãe, eu queria ser seu neto.

Não que eu creia que os netos sejam mais amados pelos avós do que foram ou são amados os filhos, ou algo parecido. Não. A lógica do amor desses amores – se é que o amor tem alguma lógica – aproxima intensidades sem-segundos e, ao contrário, até os unifica. Dois são um, embora sejam dois e não um.

Mãe, eu queria ser seu neto porque eu queria ser criança duas vezes. Uma vez só não me bastou. Nem sei se devo condenar – ou pedir desculpas – as longas tranças do tempo, mãezinha, mas não posso prescindir de desejar ser criança duas vezes. Não. Não com a mãe que tive.

Tivesse sido eu, por exemplo, filho da Rainha Elizabeth, mãe, e não reclamaria – nem pensaria nisso – o capricho de também ser, além de filho, neto, e, assim, teria me bastado ser criança uma vez só, filho fosse eu da Rainha Elizabeth.

As Rainhas, inclusive Elizabeth, veem o mundo sob uma perspectiva psicológica tão egoica que filhos e netos, antes de filhos e netos, são súditos. Daí, mãe, que as Rainhas, se se prestar bem atenção, aprisionam as liberdades já no útero e, com domada timidez, vivem a acenar ao vento como a cumprimentar a si mesmas.

Que coisa, mãe!

Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha de cócoras brincando com os filhos ou com os netos. Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha abraçando e beijando os filhos ou abraçando e beijando os netos. Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha medir a temperatura dos filhos ou dos netos.

Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha brincar de “bole-bole”, de “trinta e um alerta”, de “macaca”, ou de “Queimada” com filhos ou netos. Boca de forno, mãezinha, nem em fantasia. A senhora lembra, né? “Boca-de-Forno…Forno… Jacarandá?… Dá… E Se Não Der? …Apanha Um Bolo”.

Mãe, imagine se as Rainhas soubessem fazer tacacá, mugunzá, beijo de moça, cocada e uma fogueira de São João! Mãe, imagine se as Rainhas soubessem se perder no caminho da fazendinha, se soubessem se achar na cor do Curiaú?

Fazer tricô, mãe! Tricô, mãezinha – feito à mão – é um imperativo a qualquer Rainha. Rainha que não sabe tecer não tem novelo para o trono e, então, não é Rainha.

Por isso, mãezinha, o sinônimo da palavra Rainha, para mim, sem alterar em nada seu significado, é Helena. Se desenhasse a palavra Rainha a partir de uma figura de linguagem, quase que uma onomatopeia, a palavra Rainha seria decorada com som de seu nome: Helena.

Minha sorte, mãezinha, é que sendo a senhora uma Rainha de verdade, e como as Rainhas de verdade não estão sujeitas à morte, posso, na infinidade da minha crença, me reapresentar como criança sempre que sentir saudades suas, seja como filho, seja como neto.

Tudo isso porque eu queria mesmo, minha Rainha, além de filho, ser seu neto.

(Ruben Bemerguy é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras)