O pai que eu quero ser

O pai que eu quero ser
Por Renivaldo Costa

Quando nasci, meu pai era um ser que às vezes aparecia para aplaudir minhas conquistas. Quando me ia fazendo maior, era uma figura que me ensinava a diferença entre o mal e o bem. Durante minha adolescência, era a autoridade que me punha limites a meus desejos. Agora que sou adulto, é o melhor conselheiro e amigo que tenho.

Freud dizia que não existe nenhuma necessidade tão importante durante a infância de uma pessoa que a necessidade de sentir-se protegido por um pai. E certamente me senti e me sinto assim até hoje.

Durante a noite, no sofá, em frente à televisão, meu pai se conecta com o mundo. Entro em casa e pelo som da minha voz que se expande pela sala, seus olhos, antes sonolentos, despertam felizes e com um gesto que consome mil palavras, acena. “Oi, filho, como está?”, quer saber.

Aí percebo que “meu velho” anda cansado. O armário invisível do tempo começa a pesar nas costas. Os 80 anos não lhe deixam mais trabalhar. O comércio de madeiras, móveis e esquadrias era a sua praça. Mesmo aposentado, resiste em ficar parado. “Pra quê? Pra ficar olhando as paredes?”, inquire.

Sento-me ao seu lado e o acompanho nos noticiários. Pena que o Brasil dourado que prometeram para ele nunca veio. “Há 30 anos é a mesma conversa, só mudam as caras, mas a politicagem é a mesma. No tempo dos militares as coisas eram melhores”, comenta.

Naquele álbum amarelado de família, que todo lar tem, pego e folheio página por página, perplexo, com a mesma gravidade como quem descobre os poemas de Fernando Canto ou de Alcy Araújo, nossos maiores poetas.

Pai, contemplando tua juventude naquelas fotos, queria que por um momento não fosses meu pai, fosses meu melhor amigo. Teríamos feito tantas coisas juntos, como ter nos vangloriado de nossas namoradas, repartido confidências, jogado bola, colecionado gibis… Mas o destino nos pregou outra peça, outro papel: a minha barba nasceu da tua, a tua voz a minha, a tua estatura o meu tamanho.

O que me deixa feliz é que posso ainda abraçá-lo e a certeza que, no mesmo álbum, no amanhã do tempo, meu neto daqui há uns anos, talvez perguntará: “Esse é meu bisavô?”. E eu, orgulhoso, direi: “Sim, ele é o pai que quero ser”.

Para não esquecer R.Peixe

Doce rebelde
João Silva*
Enfim presto minha homenagem a Raimundo Braga de Almeida, o R. Peixe, decano dos artistas plásticos do Amapá, que saiu de cena como grande guerreiro, inspirando depoimentos apaixonados sobre ele e sua obra traduzida em mais de meio século de carreira, ao longo do qual aprofundou o entendimento sobre sua arte.
Fiel às suas convicções, guerreiro, polêmico, irreverente, sim, e daí? Na sua juventude – e mesmo maduro, a inquietação saltava aos olhos como traço da sua personalidade. Em plena
Macapá dos anos 60 desafiou o Laguinho e o seu passista histórico, o Falconery, quando o Laguinho era reduto do samba no meio do mundo.
Provou no asfalto (e no pé!) que “samba nasce em qualquer lugar, que samba não é privilégio de ninguém”. Mesmíssimo Peixe que botou jaca na Avenida FAB para “homenagear” a mediocridade instalada no corpo de jurados do desfile das escolas de samba.
Peixe operou uma geral na face do carnaval, retocou para sempre a imagem opaca, sem brilho e criatividade que vinha desde o primeiro desfile das escolas de samba do Amapá com o enredo “Lendas e Mitos da Amazônia”, criado por ele para o desfile de l969, traçando um divisor de águas em se tratando do carnaval das escolas de samba no Amapá.
Eu mesmo experimentei essa emoção saindo na escola entre dezenas de botos, sacis e cobra grande serpenteando a passarela sob delírio do grande público; foi ali que o povo viu adereços de mão, fantasias sofisticadas e grandes carros alegóricos que propiciaram outro status ao nosso carnaval.
Para feito de registro, é bom dizer que antes desses avanços, Peixe brincou nos cordões, saiu de máscara nas batalhas de confete do Macapá Hotel, do Serrano, e Barrigudo; mais adiante ajudou a fundar pelo menos duas grandes escolas de samba do nosso carnaval: Piratas da Batucada e Embaixada de Samba Cidade de Macapá.
Dentre os vários R. Peixe que conheci, o que cursou a Escola de Belas Artes me impressionava mais que os outros, todavia não podemos esquecer o caboclo boêmio e dançarino, o atleta, o professor, todos também apreciados pelo grande círculo de amizade.
No futebol, foi goleiro apenas razoável do Trem, São José e Juventus; no salão de festa, não: foi rei, grande pé de valsa que sabia cortejar uma dama! Gostava tanto que construiu o “Somarisco”, restaurante e dançará que transformou no “point” da boêmia de Macapá no final da Hamilton Silva, no meado da década 70.
Mas a praia do R. Peixe foi mesmo a das artes plásticas, do impressionismo, como se poderia imaginar, sendo ele filho dos rios, dos igarapés, das matas do Pará. Estimulante, neste particular, vê-lo unido ao amigo e poeta Alcy Araújo, no primeiro governo Barcellos, em “guerra santa” pela construção da Escola de Arte “Cândido Portinari”, uma das suas paixões…
Deu certo, mas sendo artista de vanguarda Raimundo Braga Peixe queria mais: então “gerou” outro filho, a escola de pintura “Fantástica”, com suas linhas curvas e cores fortes da natureza nos trópicos, mas não parou por aí.
Ainda pode se atribuir à inquietude do Peixe a idéia do Movimento Artístico Popular-Moap, criado para comercializar na praça pública a produção cultural do Amapá e estimular o surgimento de novos talentos nas artes plásticas, no teatro, na literatura, na escultura, na música, no artesanato e na poesia.
Assim que aqui chegou, nos primórdios do Território do Amapá, proveniente de São Caetano de Odivelas, onde nasceu no dia 10 de julho de 1931, foi morar no Bairro Alto; ali instalou seu primeiro ateliê; apaixonou-se pela cidade e criou uma das suas obras mais importante, “O Fumante”.
Chamado “Peixe”, apelido herdado do pai, o artista viu Macapá provinciana, caboclinha mirrada trajando o “vestido de chita” dos versos da poetisa e mestra Aracy; então, decide traduzir em óleo sobre tela, em quadros e painéis todo seu encantamento por nós, pela nossa mistura de raça, pelo lugar bucólico e o seu casario primitivo sempre de janelas abertas.
Assim, transportou para seus quadros paisagens e gente do Amapá que sua arte preciosa fez viajar pelo Brasil e o mundo! Retratou Mãe Luzia, Julião Ramos, Pires da Costa, A Banda, o marabaixo, a Doca (entulhada de canoas à vela), o Marco Zero do Equador, a Fortaleza, a Igreja, o arraial de São José, a Festa de São Tiago, a floresta, o rio Amazonas, a pororoca e a Baixada da “Maria Mucura”.
Embora tenha ido para não mais voltar, o acervo gerado pelo talento prodigioso de R. Peixe, em sua grande parte, ficou nas mãos do poder público, portanto, imagina-se, preservado como patrimônio artístico e cultural do povo amapaense.
São obras que traduzem toda dedicação, o trabalho intelectual do artista, o seu interesse pelo registro histórico e a preservação da memória. Cuidar desse legado precioso é imortalizar o olhar de R. Peixe sobre nós e sua gratidão à terra que o acolheu na vida e na morte.
*João Silva é jornalista e cronista

O Natal não mudou. Nós mudamos

Meu pai , Alcy Araújo Cavalcante  – o poeta do cais, dos marinheiros, dos anjos e das rosas – assistiu a passagem de muitos Natais. Ele nasceu em janeiro de 1924, na Vila de Peixe-Boi (PA), e em abril de 1989 partiu para mais perto dos anjos, de Deus e do Menino Jesus.

Certa vez ele me disse que o Natal não mudava. O Natal, disse ele, é a renovação do milagre do nascimento de Jesus. A manjedoura na gruta de Belém, com o Messias anunciado pelo Profeta do Velho Testamento.

O que mudou, disse-me, foi a humanidade. Mudaram as festas. Foi inventado Papai Noel e a oferta de lembranças estimulou a comercialização de presentes.

“O Natal saiu do recesso dos lares, do âmbito fechado da família. Passou a ser comemorado nos bares, nas boates, nos shows e restaurantes. Está estreitamente ligado à sociedade de consumo”, contou.

O chefe de família, dizia-me ele,  que presenteia a esposa com um moderno aparelho de televisão, está também se presenteando, o mesmo acontecendo com um pai que compra um ferrorama para o filho.

Mas ainda existem presentes individuais, singelos cartões, mensagens fraternais sinceras, embora a maioria seja um ato de relações públicas . O Natal, em si mesmo, não mudou. As igrejas ainda ficam lotadas de fiéis para os cultos ou missa. Onde é possível acontecem as ceias familiares e o sorriso das crianças. Do outro lado, há a fome e a tristeza. Nisto o Natal não mudou.

A humanidade, nós todos, mudamos. Às vezes ficamos desesperados, egoístas, medrosos ou coléricos. Mas ainda existe a esperança  em um mundo melhor, mais justo, mais fraterno. Esperanças que se renovam a cada Natal.

É o Menino trazendo, com teimosia e  persistência, a sua bela mensagem de Amor. O Natal não mudou. Nós mudamos e continuaremos em mutação até a consumação dos séculos.

Meu pai Alcy Araújo tinha alma de menino. Menino que acredita no Natal e na Esperança. E eu também.

Só tenha vergonha da sua pobreza se ela for de espírito…

Só tenha vergonha da sua pobreza se ela for de espírito…
Por Heraldo Costa*

Esse registro é de 1981. Eu com 13 anos e mano Heraclito Junior com poucos meses de vida, no colo, pois nasceu em dezembro de 1980. Ronaldo, segundo irmão mais velho, estava empolgado com uma máquina fotográfica e saia registrando vários momentos do cotidiano. Eu tinha chegado de fazer algum mandado pra mamãe.
Nesse tempo, além da escola, da venda de madeiras do papai que estava começando, ainda vendia chopp pela cidade. Ronaldo havia já saído do negócio. Quando tinha tempo ainda dava umas voltas de bicicleta, sentado no varão, acompanhado do amigo Paulo Nunes (que ainda mora na casa ao lado até hoje), poucos anos mais novo, que é esse garoto ao fundo com a mão na cintura.
O início dos anos 80 representa um limiar de oportunidades.
Nessa década conclui o ensino fundamental (1982) na escola Roraima. Conclui meu ensino médio no CCA (1985) estagiei no jornal fronteira do Pará (1985), tive meu primeiro e segundo emprego (1987 e 1988). Fui líder de jovens evangélicos no Buritizal e geral (86 e 87). Casei (1989). Enfim, não sabia eu mas Deus cimentava meu caminho pro futuro, enquanto também Ele preparava meus irmãos Junior, Renilda (tomando mingau no banco) e Renivaldo (a meu lado) para a vida.
Galibis 847, no Buritizal. A rua da mangueira. Era nosso endereço. Nessa casa, moraram os dez filhos com nossos pais.

*Heraldo Costa, juiz titular da Comarca de Tartarugalzinho

(Adoráveis) Invasores

Discretamente eles começaram a frequentar o quintal e, como ninguém se importou, eles passaram a se achar donos. Fizeram morada nas árvores, comeram algumas frutas e jogaram outras no chão.
Um dia avançaram mais e chegaram até a garagem, onde começaram a cantar e fazer festas. Ninguém os expulsou.
Não demorou muito um deles, talvez o líder do grupo, ousou mais: entrou sorrateiro na área de serviço. No outro dia voltou, comeu a ração dos cachorros e chamou seus comparsas para um banquete.
E como ninguém se importou abusaram mais ainda; invadiram a cozinha, se apropriaram da fruteira e bicaram mamão, bananas e outras frutas.
Da cozinha para a sala foi um pulo, ou melhor, um voo. E agora são os primeiros a chegar para o café da manhã e alegrar nosso amanhecer com seus maviosos cantos.
(Alcinéa Cavalcante)

Crônica de José Machado – Do “Bruxo do Cosme Velho”, infelizmente herdei apenas o sobrenome e as gafes machadianas…

Do “Bruxo do Cosme Velho”, infelizmente herdei apenas o sobrenome e as gafes machadianas…
José Machado*

Com a massificação das novas tecnologias, a escrita à mão é cada vez menos utilizada, as pessoas escrevem mais em teclados. Tecla-se no computador, smartphones ou se usa as telas touch screen. Mas nenhuma dessas maravilhas se compara a satisfação tátil de um papel e uma caneta.
De um modo geral, dependendo do grau de ensino somente as escolas ainda mantêm a escrita à mão no cotidiano. A caligrafia, é o registro da nossa individualidade, nos envolve numa relação sensorial, imediata e particular.
Como cada escrita é única, ela permite identificar a autenticidade de documentos e assinaturas, assim como criar ligações emocionais mais fortes entre as pessoas.
Sinto-me privilegiado, por haver tido uma educação de base muito forte, de qualidade, e sei quanto a escrita à mão foi importante na minha formação, principalmente o desenvolvimento das habilidades motoras e, pode ser benéfico em muitas outras áreas do desenvolvimento cognitivo, uma relação tateada de afetos.
Não planejo dia ou hora para escrever, teço a fantasmagoria da vida desde que haja uma súbita captação mental, sou movido a fazê-lo quando surge o insight, porque as memórias são fugidias.
Às vezes, não consigo lembrar em sua totalidade, e sob a forma de texto divergem das ideias iniciais. É, escrever ou silenciar, o que fazer diante da ideia?
É a vida que está em volta, é o ato de observar. Por isso, urge se colocar no papel aquilo que chega de repente…Fragmentos de pensamentos que se alinham em letras. Como texto quer dizer tecido, então a ideia gerativa, é se trabalhar através de um entrelaçamento de textura.
O início é vagaroso como um aquecimento, e os poucos, a velocidade aumenta e a escrita fica rápida. Dependendo da natureza do texto, uso duas canetas.
A escolha pelas cores das tintas, não é um mero adorno estético, é uma forma de conferir singularidade a certas situações, para sublinhar e dar destaque a partes importantes.
Realça determinadas frases e, serve para identificar e adicionar uma anotação. Quando faço o texto direto no meu notebook, utilizo a mesma técnica para alterar a cor dos blocos.
Concluído o rascunho, ponha-o de lado. Um determinado dia lembro e vou atrás e, aí então quando o leio, sempre acho algo sem sentido e, então começo o processo de revisão.
Cortar, acrescentar ou modificar palavras, frases, parágrafos, alterando, reescrevendo, apagando, incluindo, excluindo e ainda assim, tenho a impressão de que falta alguma coisa, não está como eu quero.
O esboço, constitui material privilegiado, denota os garranchos, a neura, o cansaço físico e mental, traçadas no calor da inspiração e emoção – letras redondas, compridas, deitadas ou tortas -revela as etapas de como um trabalho se realizou, do processo criativo, com rasuras e hesitações.
E as vezes, na ânsia de não deixar escapar o raciocínio, algumas frases ficam como prescrições médicas…Apenas a letra inicial seguida de uma linha tortuosa. Os caminhos que a mão trilhou, com desvios e contornos.
Dificilmente um texto sai “redondo” como aquele slogan da cerveja. À maioria das vezes foi reescrito dezenas de vezes, até o autor se dar por satisfeito. Escrevo à velocidade em que o automatismo da minha mão, tenta acompanhar a fluidez do pensamento, que tem me causado sérios apuros, os mesmos enfrentados pelo “bruxo do Cosme Velho”.
Na ânsia de acompanhar o impulso mental, escrevia com rapidez e, depois tinha dificuldade em decifrar a escrita. Infelizmente dele, herdei apenas o sobrenome e as gafes machadianas.
*José Machado é veterano jornalista e cronista amapaense

Desorganizador

DESORGANIZADOR
Rui Guilherme*

Para Amarante,
Com raiva, com amor e muita saudade.

 Por ordem médica, comprei um tal de Porta Med Super – organizador semanal de cápsulas, comprimidos e pílulas. O dispositivo contém 7 porta-cápsulas  destacáveis, com quatro compartimentos individuais cada (manhã, almoço, jantar e noite), um para cada dia da semana. Mais organizador impossível, inclusive ao dizer que serve para armazenar dia a dia “cápsulas, comprimidos e pílulas”; produtos que eu nem sabia que eram distintos um do outro, não sendo – como pensava na minha santa ignorância – senão meros sinônimos entre si.

Imagino como ficariam meu pai e o meu amigo/irmão Amarante  diante do Porta Med Super. Em nosso escritório de advocacia em Belém, na mesa de Papai era impossível enxergar-lhe o tampo: havia uma grande profusão de papéis, documentos, pedacinhos com anotações as mais diversas – um caos completo. E que ninguém se atrevesse a tentar arrumar: Papai jamais consentia, e a resposta que ele provavelmente daria diante de uma tentativa de invasão em sua profusão de papelório era a mesma que o Amarante um dia deu para a filha Tahys:- “Deixaaa isto aí que eu sou organizado na minha bagunça.”

Éramos quatro irmãos: Sérgio e eu; Amarante e Jorge. Os três primeiros, advogados; o último, médico. Do quarteto, sobrevivo eu, o derradeiro, o fona. Sérgio e Amarante estiveram juntos a maior parte de sua vida, desde a faculdade e no Departamento Jurídico do Banco da Amazônia em Belém, até nos anos que passaram em Macapá, trabalhando na Procuradoria Geral do Estado e morando na República Aristocrática de San Marino, meus vizinhos. Lá chegou a ir em visita Jorge, médico, violonista, seresteiro emérito, cuidador de indígenas, mais parecido comigo do que com o irmão dele, assim como Sérgio e Amarante pareciam ser mais irmãos um do outro do que éramos Sérgio e eu, filhos do mesmo casal.

Dizem que sou organizado, e quem assim me julga, faz-me justiça. O Jorge, não sei. Do quarteto, foi o primeiro a deixar este planeta. Organizado sou, sem ser fanático. Mas gosto de ter tudo em seu devido lugar, até para evitar o saco que é de ter que ficar procurando as coisas. Já estando quase que com meu prazo de validade vencido, para continuar podendo escrever minhas mal traçadas linhas, ouvir meus concertos, ver meu futebol, inteirar-me do noticiário, ler meus livros, curtindo minhas memórias, amando meus amores e me esforçando para perdoar a quem me tem ofendido, tenho que fazer minha ginástica três vezes por semana, observar uma dieta pobre em gorduras e açúcar e tomar diariamente a bateria de remédios que o médico me prescreve. É aqui que entra o organizador Porta Med Super, do qual o Amarante iria fazer gozação. Ele e Sérgio, contrariando a aprovação que eu receberia do médico Jorge. Afinal de contas, ele e eu parecíamos mais um com o outro que com os nossos irmãos mais velhos.

Jorge falava de sua derradeira mulher como sendo a nona geladeira, pois a cada casamento que se desfazia, uma geladeira ia embora.

Sérgio partiu sem tirar a farda verde oliva, apresentando-se como primeiro tenente Vasconcellos, da Arma de Infantaria. Fazia juramentos – que nem sempre cumpria – invocando a lâmina de sua espada de oficial. E por aí seguia, enquanto nos deliciávamos nas tardes de vinho e churrasco na casa deles no Condomínio San Marino, a qual Sérgio dizia que era a “Base do Exército”. Bem a propósito, e levando em conta outra mania do meu irmão mais velho de amar os Estados Unidos, Amarante dele falava que Sergio era militarado e amaericanalhado. Esse Amarante!…

Esse Amarante! Ele dizia, entre outras coisas, que iria ministrar um curso de “vitologia”, recomendando que Sérgio e eu nos matriculássemos, para que aprendêssemos a viver com ele. Não passou de projeto, rejeitado à unanimidade. Primeiro porque ninguém ensina ninguém a viver, depois porque viver como Amarante viveu… sei não… nem ele conseguiria ensinar, nem o melhor e mais esforçado aluno iria conseguir aprender.

Amarante partiu no raiar do dia, seis horas da manhã. Recebi mensagem de Tahys. Ela o adorava! Tentei consolar a filha desolada, mas caí num choro sem controle, e acabei sendo consolado por ela.

Ouvi com raiva a notícia da morte do amigo singular. Pouco antes dele partir, fruto quiçá de premonição que ocorre com os iluminados, Amarante ouvia a música “Epitáfio”, dos Titãs. A letra diz que “devia ter amado mais, arriscado mais, ter visto mais o sol nascer”. Daí minha raiva, talvez frustração, de não ter convivido mais com ele, com Jorge, com Sergio; de não termos fruído juntos mais nasceres do dia, ocasos, luares. De não termos brigado menos e trocado mais tanto amor que deixamos inconfessado. Por isso esta saudade tamanha, mitigada, mal-e-mal, pela esperança de que o quarteto volte a reunir-se, respeitando um a bagunça do outro, ou sua organização, ou seus infames trocadilhos, ou suas mais bizarras idiossincrasias.

*Rui Guilherme é poeta, escritor, autor de vários livros, juiz aposentado e atualmente mora no Rio de Janeiro

My friend Fernando Canto

My friend Fernando Canto
Ray Cunha

Conheci Fernando Canto por volta de 1969; tínhamos em torno de 15 anos e eu morava perto da casa do Fernando, no Morro do Sapo, Laguinho. Já frequentava, então, a casa do pai da minha geração perdida, Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário Cruz, amava os Beatles e bebia como Ernest Hemingway.

Em dezembro de 1971, publiquei, com Joy Edson e José Montoril, um livrinho de poemas, XARDA MISTURADA, e no ano seguinte peguei o que pude de exemplares desse livro e me mandei de Macapá. Peguei um barco para Belém e, de lá, consegui carona em um caminhão via Belém-Brasília e de Brasília fui parar no Rio de Janeiro, onde convivi com o músico Aimorezinho Nunes Batista e seu irmão, Itabaracy, com o compositor Luiz Tadeu Magalhães, com o poeta e pintor Manoel Bispo e com o pintor Abenor Pena Amanajas, até 1974, quando peguei de novo a estrada.

De volta a Macapá, tentei retornar aos estudos, o quarto ano ginasial, mas eu continuava extremamente inquieto e a estrada me atraía irresistivelmente, e assim tomei outro barco e desta vez segui para Santarém e depois para Manaus, onde morava tia Izabel, irmã de meu pai, João Raimundo Cunha. Em Manaus, consegui emprego como repórter policial do Jornal do Commercio. Era o ano de 1975.

Vivi em Manaus até 1877. Trabalhei, depois do Jornal do Commercio, em A Notícia e A Crítica. Foram dois anos de farra, que me deram elementos para escrever o conto A GRANDE FARRA. Mesmo assim sentia-me entediado. As coisas estavam acontecendo mesmo em Belém, onde moravam o pintor Olivar Cunha, Isnard Lima e Fernando Canto, além de vários amigos de Macapá.

A estrada novamente me tragou. Peguei um avião e me mandei para Belém, onde consegui emprego como repórter em O Liberal. Eu continuava com apenas o quarto ano ginasial, o equivalente, hoje, ao último ano do ensino fundamental, mas as empresas jornalísticas ainda aceitavam jornalistas sem diploma.

Foi nessa época que estreitei minha amizade com Fernando Canto. Bebíamos e conversávamos muito. O Fernando tinha um tio que era dono de bar e quando aparecíamos lá, bebíamos de graça. Certa noite bebemos tanto gim no bar do tio do Fernando que no dia seguinte eu rescendia a gim.

Em 1980, retornei ao Rio e em 1982, a Belém. Submetera-me ao supletivo de primeiro e segundo graus e ao vestibular da Universidade Federal do Pará e passei no curso de Jornalismo. Graduei-me em 1987 e retornaria ao Rio, mas, em Brasília, Walmir Botelho, então diretor de redação do Correio do Brasil, me convidou para trabalhar com ele como redator da capa do jornal. Aceitei, casei-me com a gata Josiane Souza Moreira Cunha, nasceu minha princesinha Iasmim Moreira Cunha e até hoje moro em Brasília.

Aqui e ali vou a Macapá, onde tenho encontro marcado com Fernando Canto. A última vez que estive lá, de 11 a 16 de janeiro passado, foi uma grande farra. Estivemos juntos quase o tempo todo, vagabundando por toda a orla, até o Curiaú, e parando em restaurantes e bares da cidade. Encontrei com o Manoel Bispo e bati um longo papo ao telefone com a Alcinéa Maria Cavalcante, musa da minha geração e a grande dama da poesia macapaense.

A realidade é infinita como a própria vida. Cada qual tem a sua própria realidade, assim como cada circunstância e cada local e horário tem realidade específica, de modo que a realidade é um labirinto infinito em sucessão e variação. A sensação de que só há uma realidade é que só nos encontramos em um determinado ponto desse labirinto e em determinado momento, de modo que aquele ponto e aquele momento criam a ilusão de que só há aquela realidade.

De certa forma, isso se parece com a observação do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), de que só é possível chegar ao entendimento ao superar as próprias circunstâncias, que estão, por sua vez, em permanente processo de mudança: “O homem é o homem e a sua circunstância”. Acho que, em suma, esta foi a conversa que tive com Fernando Canto, durante os quatro dias em que estive em Macapá, ora a bordo do carrão tipo James Bond do Fernando, ora em bares, ora ao telefone.

Fui à Macapá para ver minha irmã Linda, que está bem. Fernando Canto e eu batemos muito papo durante esses poucos dias. Senti-me personagem de ficção, o Mundico dos TEMPOS INSANOS, conto publicado inicialmente no livro O Bálsamo e Outros Contos Insanos, pela Editora da Universidade Federal do Pará, em 1995. Na companhia do Fernando sinto a velha sensação de aventura, de novas possibilidades, de coisa nova.

Acho que vale a pena transcrever o conto OS TEMPOS INSANOS, comentado. Trata-se do melhor texto, o mais criativo, de um escritor que vem, a cada dia, se assenhoreando mais e mais do labirinto da vida, que já compreendeu que a verdadeira vida se passa em um plano mais sutil do que o da matéria, pois ele, como eu, já aprendeu a voar na luz.

Chuva-Matina

CHUVA-MATINA
Alcy Araújo (1924-1989)

De repente o azul do céu ficou cinzento e o sol que bailava em luz na manhã tomou a inesperada resolução de se esconder por trás do silêncio que se fez.
Um relâmpago fotografou o momento de espanto e um trovão rasurou a manhã que ficou pesada como chumbo. Então a chuva começou a cair sobre a cidade, comprimindo os pássaros contra as árvores molhadas e as crianças nas vidraças das janelas.
Depois a chuva começou a entrar no meu quarto, gotejar no meu poema, molhar o meu relógio cansado de marcar as horas lúcidas do meu imenso amor, refletido em lágrimas no espelho defronte e insone.
Poderia contar aos que ouvem meu poema nascendo, que muitas dores embarcaram inutilmente nos barquinhos de papel para naufragarem sem remissão logo adiante, na primeira curva do rio que a chuva inaugurou diante de minha janela. Mas não conto porque todas as tristezas voltaram a habitar o meu dia e a minha noite e o meu poema.
Estou visivelmente crucificado à minha dor. Mesmo porque não tenho uma rosa vermelha para mandar à Bem-Amada que chora a minha ausência e a infelicidade de haver me amado numa noite em que a música vinha do interior dos saxofones e nos tornou comovidos e solitários. Lembro que não conhecemos ninguém fora de nós mesmos, quando promovíamos a gestação da saudade.
Sei agora que ando de pés nus, pisando lágrimas cristalizadas que ferem como cactos. Mas longe, onde a esperança se esconde, a felicidade prometida sorri nos olhos daquela que tem as mãos cheias de afeto.
E a chuva continua lavando desencantos…
Não tenho, porém, nenhuma rosa e nenhum pássaro pousado nos meus ombros nesta manhã cinzenta. Quem estiver ouvindo o meu poema nascendo sabe que é assim e que me falta um gesto de amor que ficou na saudade e que pode voltar a qualquer momento, para minha eternidade absoluta. Digo isto porque o céu está ficando azul novamente, neste instante em que enxugo uma lágrima no lenço que guarda a lembrança das lágrimas que a Bem-Amada chorou, numa desesperada hora de amor.