80 anos de Luzair Costa – Emoção e saudade na linda crônica do juiz Heraldo Costa

80 anos de Luzair Costa
Heraldo Costa – juiz de Direito

Hoje, dia 11 de janeiro de 2022, se viva fosse, minha mãe faria 80 anos. Seria um dia de muitas emoções e alegrias.
Os manos estariam correndo para concluir suas atividades para, de noite, cantarmos parabéns para nossa rainha.
Não que durante o dia os filhos já não tivessem passado pela casa dela no café da manhã, almoço e café da tarde, alguns adiantando os abraços, beijos e presentes, ante a impossibilidade de alguns não poderem comparecer à noite.
O evento era simples, como de fato era a aniversariante. Não precisava de comidas e presentes caros para vê-la radiante num dos seus vestidos guardados especialmente para aquela ocasião.
Lembro de uma vez que fomos a um restaurante. Ela ficou muito feliz mas notei uma ponta de preocupação. Perguntei se não havia gostado e ela disse que tudo estava lindo, mas estava preocupada em dar uma despesa tão grande para tanta comida.
Mas na verdade, minha mãe, você nunca deu despesa, pois durante toda sua vida você só deu amor, cuidado e atenção.
Sua vida foi repleta de preocupações com os outros, que toda a nossa preocupação com você, não chegou nem perto da sua.
Mas a festa sempre era bonita pra ela. A casa ficava cheia. Familiares e amigos, conhecidos e desconhecidos. Gente simples e importante, sempre dava o ar da graça em seus aniversários.
E depois de tantos elogios, sabíamos que a fala da aniversariante seria de poucas palavras, mas regadas de muitas lágrimas de gratidão. Sempre após agradecer a Deus e a todos, falava que não merecia tudo aquilo que estavam fazendo.
Merecia sim, minha mãe. Se uma pessoa nesta terra mereceu todos os afagos, elogios e homenagens, essa pessoa foi você.
Há uma expressão bíblica no capítulo onze do livro bíblico de Hebreus que diz que as obras boas de Abel, mesmo depois de morto, ainda falam.
As suas obras, minha querida mãe, mesmo depois da sua morte continuam falando por você, pois, quanto mais nos distanciamos no tempo da partida da pessoa amada, podemos esquecer de sua fisionomia e de sua voz, mas nunca esquecemos do seu caráter.
Siga em paz minha mãe, no seu caminho espiritual.
Feliz aniversário e obrigado pelo tempo que nos deu o privilégio de palmilhar com você neste plano terrestre.

Quando chego a Macapá sinto um terremoto

Quando chego a Macapá sinto um terremoto
Por Ray Cunha

Meu caso com Macapá/AP é antigo, remonta a 7 de agosto de 1954, data do meu nascimento. Sete mais oito, quinze, noves fora, seis, mais um, sete, mais cinco, doze, noves fora, três, mais quatro, sete. Sete é meu número, que na numerologia representa a perfeição, ou a perfeita integração entre os planos físico e espiritual.

A propósito, meu nome, Raimundo, é do gótico, o alemão antigo, “protetor, sábio e poderoso”. Em 1971, Isnard Brandão Lima Filho, pai da minha geração perdida, de poetas cachaceiros, sugeriu que eu me tornasse Ray Cunha, pois se fosse vertido para o inglês seria mais palatável para o ambicionado mercado de leitores anglófilos. O poeta tinha razão.

Sou um autêntico sete, já que gosto de ambientes bem arrumados, tanto que, de manhã, deixo minha cama impecável; aliás, arrumo até cama de hotel. Fujo de barulho, isolando-me para ouvir Mozart e Frank Sinatra. E sou absolutamente artista; não saberia viver sem ser artista, sem criar. Eu crio personagens e converso com elas.

Se há uma coisa que me faz sofrer é injustiça, especialmente quando não posso corrigi-la. Porque somos introspectivos e às vezes nos isolamos podemos ser vistos como tímidos ou arrogante, o que me faz sofrer também.

Estamos nos dias da semana, nas fases da Lua, no ciclo menstrual feminino, nas cores do arco-íris e nas notas musicais. Outra coisa comum entre os sete é que somos como os gatos: vivemos com um pé na Terra e outro no plano astral.

O sete é o número da reflexão, da sabedoria, do conhecimento, da busca pela compreensão da vida. Mas somos, os do clube dos sete, inflexíveis muitas vezes, irritadiços, silenciosos, arrogantes, contudo, ao fim e ao cabo, místicos. Sinto-me, quase sempre, como o apanhador no campo de centeio. Observo as crianças brincando e se a bola cai muito distante vou apanhá-la e a devolvo às crianças. Zelo para que nada lhes aconteça.

Sei também que nós, sete, temos a capacidade de influenciar as pessoas, pois nossa intuição é aguçada e assim entendemos com facilidade os sentimentos alheios. Procuramos levar felicidade às pessoas, pois os sete não sentem vazio existencial; há sempre luz nos guiando.

E é assim, como um sete, que eu amo Macapá, onde vivi meus primeiros 17 anos, de 1954 a 1971. Aprendi a ler aos cinco anos, e então meu universo entrou em um big-bang igual ao do próprio Universo denso. Aos 14 anos, escrevia versos para a Alcinéa, batia papo com Isnard Brandão Lima Filho, embebedava-me com Joy Edson e conversava sobre pintura com os visitantes da exposição do Olivar Cunha.

Meu mundo era Macapá, até o dia em que fui a Belém, a capital da Amazônia na época em que os colonos portugueses dividiram o Brasil em dois: a Amazônia e o Brasil mesmo, o Sudeste. Em Belém, comecei a descobrir que havia outra cidade além de Macapá. Foi o começo da traição.

Confesso que, desde então, traio Macapá, mas isso se passa apenas na minha cabeça, porque as cidades são como as mulheres; pensamos que podemos ser donos delas, o que é impossível. As cidades, como as mulheres, são poesia no veio. Poemas são apenas pedras preciosas, gotas do azul, que garimpamos no veio da poesia. As mulheres são como esses veios, como minas, como labirintos de luz. E ninguém pode ser dono da luz.

E como as mulheres, as cidades são sempre agora. A cada encontro meu com Macapá, sinto, ao pisar no seu solo, um terremoto de sensações, como foi a sensação do primeiro beijo, da primeira mulher que me guiou na sua própria eternidade, como rosas vermelhas, colombianas, nuas, ao sol.

Na verdade, nunca traí Macapá, porque ela não está nem aí para mim; eu é que a amo, eu é que carrego na memória da minha alma seu cheiro de jasmineiros chorando nas madrugadas ardentes, seus sons do Caribe e dos Beatles, a voz da Linda, bate-papo com Fernando Canto, cheiro de mar.

Não sei como será desta vez, pois quando passamos tempo demais sem ver uma mulher ela nos esquece. Mesmo assim aqui estou eu, pois a mim não importa o esquecimento; tudo o que importa é o terremoto das emoções, eterno. De modo que basta eu chegar para que a intensidade seja quase insuportável.

Antônio Brasileiro, o homem misterioso que tocava músicas numa folha de mangueira

Uns diziam que ele era louco, outros falavam que era um bêbado. Penso que nem uma coisa nem outra, talvez misterioso, diferente de todos os outros homens que andavam  pelas ruas do antigo bairro da Favela. Ah, ele tinha sim mistérios guardados no olhar.
Sempre trajado elegantemente – calça social, sapato bico fino e camisa de mangas – diariamente ele percorria as ruas do bairro tocando maravilhosamente várias músicas, principalmente o hino nacional, numa folha de mangueira, por isso ficou conhecido como “seu Antônio Brasileiro”. Nunca vi ninguém, além dele, usar uma folha de qualquer planta como instrumento musical.
Louco não era, pois um louco jamais conseguiria essa proeza. Bêbado também não, pois caminhava sobre o meio-fio que, se muito, tinha um palmo de largura. Um bêbado não teria equilíbrio para tal.
Educado, mas de poucas palavras, cumprimentava todo mundo com um discreto bom dia, um aceno de mão ou inclinando a cabeça. Não falava de sua vida nem da vida de ninguém. Se alguém começava a lhe fazer perguntas tratava logo de pegar uma folha de mangueira e começar a tocar, assim fugia do interrogatório.
Quando ele aparecia tocando sua folha, as crianças corriam atrás dele e seguiam-no por alguns quarteirões. Ao ouvir o som, os adultos corriam para as janelas. Muita gente dizia que não havia ninguém que tocasse com mais perfeição que ele o Hino Nacional, em qualquer  instrumento que fosse.
Antônio Brasileiro nunca contou quando e como ou com quem descobriu que podia tirar os mais belos sons e tocar lindas melodias, soprando uma folha de árvore.
Seu endereço exato ninguém sabia. O certo é que morava na Favela (aqui abro um parêntese para dizer que o bairro da Favela nunca foi uma favela), talvez perto do estádio Glicério Marques, pois era por ali, na rua Leopoldo Machado que se ouvia, pela manhã, os primeiros sons de sua folha, depois descia a avenida Mendonça Furtado e seguia não sei para onde. Horas depois voltava pelo mesmo caminho.
Tinha família? Tinha sobrenome? Ninguém sabia. E se alguém lhe perguntasse não respondia, se punha a tocar. Como já falei, era homem de poucas palavras. Misterioso. E todos queriam desvendar, sem sucesso, os mistérios daquele tocador de folhas, que tinha o olhar sereno e quase nunca sorria.
Tinha profissão? Dizem que foi um cozinheiro de mão cheia do Hospital Geral e que do nada abandonou o emprego e passou a perambular pelas ruas. Por isso que uns dizem que ele era louco e outros que ele perdeu o emprego para o álcool. Mas eu reafirmo: nem louco, nem bêbado. Era o retrato da liberdade, livre de todas as amarras, talvez preso apenas aos seus mistérios que ninguém conseguia decifrar.
Às vezes quando caminho pelos canteiros floridos da avenida Mendonça Furtado ou à sombra das mangueiras da Leopoldo Machado imagino “seu Antônio Brasileiro” aparecendo de repente. Ele arranca uma folha de mangueira, começa a tocar, as pessoas aparecem na janela. Ele passa por mim, me cumprimenta com a cabeça, desce a ladeira e segue rodeado por um bando de moleques não sei para onde.
E eu sorrio. E quem me vê sorrindo assim sozinha nem imagina o por quê.
Antônio Brasileiro deixou seus mistérios impregnados na paisagem da minha Favela.

A tacacazeira de olhos ternos e largo sorriso

Dona Mangabeira era uma negra de olhar límpido, sorriso largo e dentes tão brancos como os guardanapos de algodão que ela mesma fazia para cobrir as panelas.

Foi uma das primeiras tacacazeiras da cidade. Era do bairro da Favela. Sua banca (naquele tempo não tinha os carrinhos de hoje) era montada na esquina da rua Leopoldo Machado com avenida Almirante Barroso. De longe se sentia o cheiro do tucupi. Esse cheiro dava água na boca atraindo tanta gente para sua banca. O camarão era vermelhinho e o jambu treme-treme.

Aos domingos, a movimentação era bem maior. Era parada obrigatória de quem passava por ali para ir ao estádio Glicério Marques assistir aos clássicos da época.

A todos – autoridade ou peão – Mangabeira atendia com alegria, contava histórias, fazia o tacacá do jeitinho que o freguês pedia.

– Mais goma ou tucupi? Quantas colheres de pimenta? Quer mais jambu?

E o freguês ia dizendo como queria.

De muitos ela sabia o gosto e já nem perguntava.

Contava que meu pai, o poeta e jornalista Alcy Araújo, era o único que tomava tacacá sem goma.

Mangabeira tinha um carinho especial pelas crianças. Para elas servia o tacacá em cuia menor e nada de pimenta.

Às vezes um moleque mais ousado pedia que ela colocasse um pinguinho. E ela, cheia de doçura, respondia: “Meu filho, criança não come pimenta”. E o moleque não insistia. O convencimento, tenho certeza, não era pelas palavras, mas pela doçura com que ela falava.

Além de tacacazeira, Mangabeira era excelente lavadeira. Daquelas que botava a roupa “pra quarar” e engomava usando ferro a carvão. Era também benzedeira, tirava quebranto de criança, fazia banho de cheiro pra curar gripe, catapora e sarampo e chás e garrafadas pra todos os tipos de males.

Mangabeira era uma imagem forte na paisagem do meu bairro e é uma das belas recordações da minha infância.

(Alcinéa Cavalcante)

Sinto falta! – crônica de Elton Tavares

Sinto falta!
Elton Tavares

Quem me lê, sabe: sou um incorrigível nostálgico.

Pior (ou melhor, depende do ponto de vista), quando começo a devanear sobre as coisas que me fazem falta, saudades de pessoas, situações e épocas, aí a “emoção se conecta ao pensamento e ao sentimento” (como diria Vinicius de Moraes). É quando discorro sobre grandes e pequenas carências do cotidiano.

Sinto falta do meu pai, a maior falta da minha vida. Do meu irmão que mora em Belém (PA), que me brinda de tempos em tempos com sua presença. Sinto falta de conviver com minha sobrinha linda, de apenas seis anos de vida.

Sinto falta dos velhos amigos, os que me distanciei por conta de pedras em minhas mãos e dos que não tenho contato hoje em dia por conta dos afazeres da vida.

Sinto falta do cotidiano frenético de redações, da velha equipe de trabalho (briguenta e foda nas coberturas de pauta). Sinto falta de poder comer porcaria sem receio de ficar maior do que estou. Sinto falta dos tempos que bebia muito e não tinha ressaca. Sinto falta dos meus velhos vinis, fitas cassetes e CD’s de Rock, pois agora só tenho arquivos em MP3.

Sinto falta de tremer ao entregar um boletim de notas escolares, de chegar na casa da minha avó e sempre ter algo guardado com muito carinho para eu comer. Sinto falta de promover festas de rock e de viajar com frequência.

Sinto falta do tempo que era mais bonito (ou menos feio), mais ingênuo, mais empolgado, menos duro, desconfiado e cético em relação ao mundo (e quase todos que nele vivem).

Sinto falta de passar horas jogando videogame e falando merda. Também sinto falta de uma boa briga. Sim, sinto saudade da infância, da adolescência e dos 20 e poucos anos.

Sinto falta da velha rapaziada, do mau comportamento e das más companhias (risos). Sinto falta de escrever algo realmente bom, pois a correria tira totalmente a minha inspiração. Sinto falta do passado, não todo, somente da parte feliz e de tudo que ficou lá.

Sinto falta mesmo é de não ter ficado mais tempo com ela. Essas ausências e saudades me fazem muita falta. E como fazem!

Disse uma vez o sábio Drummond: “Sentimos saudade de certos momentos da nossa vida e de certos momentos de pessoas que passaram por ela”. É isso!

Aos loucos, pirados pelo poder – Crônica de Elton Tavares

Queria que esses loucos por poder fossem tomados por lucidez e bom humor. Que eles respeitassem nossas individualidades, fraquezas, escolhas e habilidades. Gostaria que estes canalhas avaliassem o profissional, a pessoa, o amigo, sem o sagaz desejo de domínio absoluto do ser e sem a mão pesada da tirania imbecil.

Queria que estes doidos por dinheiro nos deixassem escolher, questionar, discernir, pensar livremente. Queria que os insanos por status nos desse o direito de sermos sinceros, de vivermos com clareza, de acordo com nossas escolhas, sem ameaças ou tramas de desconstrução de nossas imagens.

Ficaria feliz com um pouco de reconhecimento pelo que foi feito, pelo que aconteceu, pelos bons e ilusórios tempos de brodagem. Também seria grato se os alucinados se tocassem que não possuem super-poderes, muito menos competência para “queimar” quem não atende seus desejos.

Queria que fossem menos incoerentes, estúpidos, insensatos e imorais. Uma pena que loucos maus conduzam cegos, entre eles, bons cegos.

Por fim, queria mesmo que esses malucos monsenhores boçais e seus vassalos, envenenados pelo poder, parassem de, a esta altura do campeonato, tentar dar um migué (fraco) para cima de quem os conhece bem. Chega, insanos, de tentar rezar a missa em latim de trás pra frente.

Afinal, ninguém é totalmente mau ou plenamente do bem, mas injustiça e perseguição gratuita é loucura. E como é! Ah, como eu queria que esses loucos fossem menos pirados por poder.

(Do livro “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”, lançado em setembro de 2020)

Adoro velhos malucos – Crônica de Elton Tavares

Adoro velhos malucos
Elton Tavares

Resistir, fazer beicinho ou ficar chateado não adianta nada, todos envelhecemos. Lutar contra isso é uma guerra inútil, de fato. Acho legal a coroada que leva isso na boa, principalmente os velhos malucos. Adoro velhos malucos. Conheço uma porrada deles.

Os velhos malucos não se resumem a cuidar de netos, jogar xadrez ou cartas com outros velhotes encarangados. Não. Eles frequentam os bares das esquinas, falam besteira, tocam, dançam, namoram, bebem… Ou seja, vivem!

Os velhos malucos fazem de tudo por uma vida menos ordinária. Ou o que pelo menos resta dela. Entre as coisas das quais me gabo, está o fato de ser amigo de músicos, escritores, poetas e artistas em geral. Vários deles, coroas doidaços que curtem a vida como aos 20.

Falos de todos que estão acima dos 65 e ainda possuem o espírito inquieto e se recusam a ficarem mergulhados no tédio. Alguns são somente porretas, outros são paid’éguas, loucos varridos. E não pensem que falo somente de quem ainda curte a noite ou toma cachaça.

Admiro os que vão ao cinema no meio da semana, que viajam quando dá na telha, que sabem que já contribuíram bastante para suas famílias e sociedade para agora se dedicarem a viver tudo que quiserem.

Quem sou eu para dar conselhos a senhores que sabem muito mais da vida. Mas ser um velhote maluco deve ser bem mais feliz que viver numa cama, no fundo de uma rede, num sofá ou em uma cadeira de balanço à espera do “único mal irremediável”. Principalmente quando o senhor ou senhora vive na solidão.

Claro que meus velhos companheiros doidões não abdicam de seus afazeres corriqueiros, mas também não colocam tanto peso em cima de algo tedioso que não lhes dá prazer. E acho isso o máximo!

Os velhos malucos não estão mais atrás de sonhos impossíveis ou de tesouros. O que eles querem é viver bem com o que possuem e em paz com os seres humanos que se tornaram. Suas experiências e histórias rendem bons causos e conselhos. A gente se diverte com tanta prosa poética.

Falo de exemplos como o de Carter Chambers (Morgan Freeman) e Edward Cole (Jack Nicholson), no filme “Antes de partir”. Se meu pai estivesse vivo hoje, faria 70 anos e tenho certeza que o saudoso Zé Penha seria um velho maluco.

Tomara que eu, se me tornar um velho gordo de barbas e cabelos brancos, seja um coroa maluco e saiba aproveitar o número de anos vividos da melhor forma possível. Que como hoje, tenha muito mais alegrias que tristezas. Que também tenha desenvoltura para bater papo e entrevistar outros velhotes doidões ou jovens com corações ávidos por aventura, ambos sedentos de vida.

Eu queria mesmo é que a velhice não impedisse ninguém de ser feliz. É isso!

“Os velhos malucos são mais malucos que os jovens” – Duque de La Rochefoucauld ( François Poitou).

Meus secretos amigos – A gente não faz amigos, reconhece-os

Meus secretos amigos
Crônica de Paulo Sant’Ana, que muita gente na Internet atribui a Vinicius de Moraes

Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.

A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o objeto dela se divida  em outros afetos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade. E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas  enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende  de suas existências…

A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida. Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.

Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na  sagrada relação de meus amigos. Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure. E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como  são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente,  construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.

Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado. Se todos eles morrerem, eu desabo! Por isso é  que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles.   E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez,  fruto do meu egoísmo.

Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles. Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de  mim, compartilhando daquele prazer…

Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os  meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus  amigos!

A gente não faz amigos, reconhece-os.

Paulo Sant’Ana (1939-2017) era escritor, comentarista esportivo e colunista do jornal Zero Hora. Esta crônica está publicada no seu livro “O gênio idiota, o melhor de Paulo Sant’Ana”, que é uma coletânea das melhores crônicas dele publicadas no Zero Hora. Esta coletânea foi lançada em 1992.

Felicidade

Felicidade
Alcy Araujo (1924-1989)

O poeta hoje está feliz. Está feliz e tem um belo assunto para você. É que neste dia está aniversariando Alcinéa Maria. Não sei se você conhece alguma coisa da minha vida particular e sabe que eu amo Alcinéa Maria. A que tem cabelos cor de mel e olhos grandes e castanhos, que também me ama, que sente uma necessidade inevitável da minha presença, do meu amor e do meu carinho. Que vai até as lágrimas se eu lhe causo qualquer desgosto, mesmo involuntário.

Alcinéa Maria, a que me espera de braços abertos, tendo nos lábios o mais belo sorriso que eu conheço, cada vez que volto para o seu amor, a que vem feliz ao meu encontro, a que pede carinhosamente para que eu não parta, para que eu não a deixe ficar.

Hoje a bem amada está fazendo aniversário e o poeta está imensamente feliz. Confesso que hoje beijei sua face linda, acariciei seus cabelos cor de mel, sob a luz difusa da aurora e recebi em troca o seu carinho. Confesso que quase não tive forças para deixá-la. Porém, logo mais estarei ao seu lado. Digo mais que só me afastarei para vê-la mais feliz do que nunca assistir a minha volta. Você que ama sabe o que é a dor do afastamento e a suprema alegria da volta. Nada é mais belo do que a volta para a Bem-Amada.

Outra confissão que faço a você, aos que não conhecem certos detalhes da minha vida, é que minha esposa sabe que amo Alcinéa Maria e não tem ciúmes, e fica feliz sabendo que minha Bem-Amada é feliz ao meu lado.

Como hoje a Bem-Amada está fazendo aniversário, a minha esposa vive comigo os mesmos momentos de felicidade e de alegria.

Um dia magnífico, o de hoje. Alcinéa Maria, a de cabelos cor de mel, olhos grandes e castanhos, completa quatro anos dentro da sua inocência de anjo.

Deus te abençoe, minha filha.

(Crônica publicada em fevereiro de 1956 em jornal. Está também no livro Autogeografia lançado em 1965)