OLHA A DROGA AÍ, GENTE
Ruben Bemerguy
Ao meu jeito, sofro com a dor do outro. Sempre foi assim. É outra imperfeição que cultuo. Só com olhos inclinados a dor do outro anoto minha existência. No duro, no duro, conhecendo como me conheço, se a dor do outro não me fosse própria eu já teria me devorado. Para mim, não há vida sem ver a dor do outro. Estranho esse meu jeito.
Sendo assim, vou contar uma pequena historinha que a ver com meu jeito. É que há algum tempo atrás conheci uma pessoa que se aproximou por convicção religiosa. Diz ser judeu e é de nacionalidade portuguesa. Quando o conheci, esse homem tinha trabalho e trabalhava, embora deficiente visual em elevado grau. Do trabalho tirava seu sustento. Nunca fomos próximos, mas sempre nos víamos nas orações de Shabat. De repente percebi que dificuldades pungentes se abateram e o homem não alcançava mais nem mesmo básico alimento para viver.
Senti a dor do homem transpor a barreira do meu silencio. Como de costume, assimilei essa dor que também já era minha. Nunca perguntei as razões que o levaram a tamanha penúria. Não era o que me importava. Eu queria diminuir a dor dele que, sem que ele soubesse, repartia comigo. Ofereci ao homem uma refeição diária. Eu providenciaria o alimento e o transporte diário até seu canto de habitação. Ele aceitou. Então, contratei um moto taxista que conheço há muito para apanhar em minha casa a mesma comida que a mim seria servida diariamente em almoço e também levar ao homem.
Funciona assim: O moto taxista passava na minha casa entre o meio dia e uma da tarde. Apanhava uma marmita que ia embalada em um saco plástico para permitir o transporte em motocicleta e a levava até o homem que, ao que sei, só dispõe dessa refeição diária. Soube que o meu amigo moto taxista sensibilizou-se com o homem também e sempre que possível o oferta um sanduiche no período da noite.
Outro dia, acho que na última, acordei com um desesperado telefonema do homem. A polícia havia acabado de cumprir um mandado de busca e apreensão em sua casa a procura de drogas. Fui até lá. Na casa encontrei outro farnel de dor. Um cenário dantesco. Tudo atirado ao chão, inclusive o homem. Fiquei atônito também. Tive dúvidas quanto a tudo. Seria o homem um traficante e eu ali envolvido sem imaginar a possibilidade?
Fiz o que faria qualquer um. Fui a delegacia. Propriamente ao inquérito policial. Os indícios do crime estariam lá. Estupefato, deparei-me com o crime.
Diz o processo mais ou menos assim: A polícia recebeu uma denúncia anônima de que um moto taxista frequentava a casa do homem todos os dias em um mesmo horário, entre meio dia e uma da tarde. O moto taxista entregava ao homem uma sacola e o homem voltava para dentro da casa quase imediatamente. O moto taxista também costumava ir a casa do homem por volta das dez da noite e também lhe repassava outro pacote, algo muito estranho, segundo o inquérito. Pronto. A polícia investigou e constatou que era isso mesmo.
O delegado pediu ao juiz busca e apreensão na casa do homem e o juiz autorizou. Antes das seis da manhã, homens fortemente armados, encapados como ninja, derrubaram a porta da casa do homem. O homem acordou cercado pelas armas. A casa foi minuciosamente vasculhada, inclusive o forro. Não havia nada, a exceção de uma perigosa faca de mesa.
A polícia saiu como entrou. Nada levou porque não havia nada. A polícia, entretanto, deixou um cadáver moral. O homem, além de rara visão, passou também a levitar na incompreensão dos fatos. O inquérito foi ao arquivo. O homem arquiva-se de pejo.
Como fácil concluir, a droga era o prato de comida que entrego ao homem até hoje. Tudo bem que o alimento não é produzido por nenhum Chefe. É a Denise, nossa secretaria há mais de 8 anos, quem faz. Mas dai a trata-la como droga já é demais. Coitada da Denise. O moto taxista, ou o mula, como diz o inquérito, é aquele a quem pago R$ 5,00 por dia pelo percurso de entrega. Pronto. É tudo.
É claro que agora ajudo o homem a recompor seu patrimônio moral a partir de ações judiciais cujos valores receberá, se a sorte contribuir, daqui a 10 anos ou mais. Isso, entretanto, não é o mais importante. Importante é perceber o nível de precisão de investigações, a inconsequência de um pedido de busca e apreensão e as provas juntadas a esse pedido para alcançar um deferimento liminar de um juiz de direito. O Amapá não vai bem não.