Cronistas do blog

Um sonho perfeito                                  
Cléo Farias de Araújo

 Certa vez, cheguei em casa, depois de um estafante dia de trabalho. Tomei banho e fiz um lanche bem leve, pois o cansaço não permitiria que eu ingerisse outro tipo de alimento. Coloquei a cadeira no terreiro para escutar rádio, como faço ritualisticamente, máxime nas noites de verão. Ali no terreiro, pegando aquela brisa-prenúncio de maré enchendo, rapidamente adormeci. O sono foi seguindo suas etapas, a ponto de me conduzir a um sonho.

O estado mental, comandado pela mente inconsciente, me levou a um lugar onde as casas, bem feitas e pintadas em cores harmoniosas, obedeciam ao limite de cada terreno, sem puxadinhas, sem invasões ao passeio público;

Cada morador se esmerava em fazer sua cerquinha mais bem elaborada que a do vizinho, sem, contudo, ser uma competição—apenas pelo prazer de bem-fazer;

Havia calçadas, estas, com árvores, muitas delas frutíferas, proporcionando um agradável clima; o vento circulava alegremente, pois as cercas não alcançavam mais que um metro e meio de altura;

As ruas eram bem pavimentadas, havendo lugar para pedestres e ciclistas; as luminárias eram bem dispostas no espaço reservado a elas;

Enquanto casais de namorados faziam juras de eterno amor, o riso das crianças era sentido, secundando cada etapa das brincadeiras;

Os guardas noturnos e demais policiais faziam sua ronda e se dispunham a ajudar elegantemente quem precisasse de seu auxílio;

Embora não existisse o bolsa-família, não havia evasão escolar, pois os pais orientavam os filhos para a certeza da vitória pessoal, através do estudo. Crianças na rua? Só se fosse por conta do ir-vir da escola, fazendo um mandado para os pais ou pra ir à missa ou mesmo a um divertimento, mas consentido e monitorado pelos pais.

As maiores autoridade do lugar eram: o delegado, o padre, a professora, o médico e a enfermeira.

O lazer era sadio, composto de bailes nos clubes, esportes e brincadeiras diversas.

Nos clubes locais, cada plantel possuía um gênio e vários craques.

Rios e igarapés, sem qualquer poluição, dispunham diversão e ganha-pão aos moradores e os pássaros faziam sua maravilhosa sinfonia, passeando de um galho para outro, nas abundantes árvores daquele local;

Era possível ouvir o piu-í do trenzinho, que passava britanicamente, transportando realidades e sonhos da cidade para a colônia e vice-versa. Tudo era perfeito!

Acordei com a canção do John Lennon, tocando no rádio, justamente na parte em que ele diz: “posso ser um sonhador, mas não sou o único”.

Fiquei, então, pensando: esta cidade é…

Cronistas do blog

Seja criança quando ainda se pode …
Lilian Monteiro

A melhor fase da vida talvez seja quando somos crianças, muitas pessoas alegam sem dúvida alguma, sentirem falta das brincadeiras, da falta de responsabilidade que a idade infantil proporciona, dos sonhos nascidos através de uma imagem, voz, onde tudo se descobre e  tudo se pode, inclusive ser sincero demais é permitido quando se é criança.

A minha infância foi regada a brincadeiras de roda, a famosa pira pega, pira esconde, pular elástico então nem se fala, subir nas mangueiras, nas goiabeiras, nas ameixeiras tudo com muita vontade de aproveitar o máximo a infância.

Sou jornalista e essa profissão que escolhi foi devido a admiração que nutria e ainda tenho pelo meu tio Jackson Barbosa.  Eu era pequena, tinha nove para dez anos, e escutava as  histórias que ele contava quando vinha passar férias em Macapá.

Muito aprendi com o tio Jack, como histórias de lutas, de idéias libertadoras, de um mundo melhor por meio de sua atuação revolucionária de ver o mundo e não se acomodar com o que é imposto para nós. Naquele momento em que eu ouvia seus relatos, algo de novo nascia em mim, até hoje não sei o que de fato, mas alguma coisa me fez ver as coisas de vários ângulos.

Os anos  passaram, eu cresci, fiz a trajetória normal do curso da vida, mesmo em ordens inversas, brinquei, estudei para ser jornalista, tive filho e depois casei, mas me uni com o pai da minha filha, treze anos juntos, que felicidade é para mim.

Confesso que não sou uma jornalista que se cria na noite amapaense, mas minhas raízes estão aqui nessa cidade, sou filha da terra, gosto daqui. Nasci no bairro Santa Rita, trabalho no Santa Rita e moro no Buritizal. Para chegar em casa sempre depois das seis, passo todos os dias pela rua Claudomiro de Moraes e sempre me deparo com crianças , adolescentes e jovens se prostituindo, elas tem a idade que eu tinha quando comecei a sonhar.

Essas crianças mulheres afirmam que são donas do seu próprio corpo, e que os seus corpos são seu ganha pão e não tem nenhuma outra alternativa para se sustentarem. Eu fico impactada toda vez que passo pela Claudomiro e vejo a  cena se repetir todos os dias. Mas é só isso, cadê a minha vontade de mudar o mundo, onde estão meus ideais? O fato é que eu também não faço nada. E até quando?

Essa pergunta tem sido feita, dia após dia, pela minha consciência e minhas mãos estão atadas perante  essa sociedade que sabe julgar como ninguém, e que mostra apenas os caminhos onde se pode ir, sem oferecer uma ajuda coerente para as meninas que vendem seus corpos por R$ 20.

A minha covardia de fazer algo pelas jovens da Claudomiro foi superada pela coragem, que aprendi quando era criança, quando sonhei quando criança. E tenho fé, que essa situação pode ser mudada, mesmo que muitos digam que o problema social no Brasil é um arcabouço sem fim.

Cronistas do blog

O Pássaro cativo   
Cléo Farias de Araújo

Batendo papo com João Uvilon, um cabôco que mora acima da Serra do Navio, sempre colho a sabedoria brejeira. Há alguns dias atrás, num desses bate-papos, ele me revelou:

— Olha, meu amigo, eu me considero muito feliz. Moro neste paraíso, como do bom e do melhor, sou saudável e tudo mais. Mas tava lembrando que, num mesmo dia, com diferença de minutos, eu chorei duas vezes, pelo mesmo motivo.

— Explique-se melhor.— Propus e ele atendeu.

—Eu e meu irmão mais velho gostávamos de criar passarinhos. Possuíamos toda a parafernália para capturá-los e criá-los: gaiolas, alçapões, visgos, etc.

No início de 1964, na hora da sesta, escutei Vovó declamar o poema “O Pássaro Cativo”, de Olavo Bilac.
Parei pra escutar aquilo e vi que a parte mais cruel, foi quando o poeta proclama:

 “…Solta-me. Não quero o teu alpiste!
            Gosto mais do alimento que procuro
            Na mata livre em que a voar me viste;
            Tenho água fresca num recanto escuro
            Da selva em que nasci;
            Da mata entre os verdores,
            Tenho frutos e flores,
            Sem precisar de ti!”

E prossegue:
“…Não quero a tua esplêndida gaiola!
            Pois nenhuma riqueza me consola
            De haver perdido aquilo que perdi”.

“…Com que direito à escravidão me obrigas?”.

Mais à frente, arremata:

“Deus me deu por gaiola a imensidade:
Não me roubes a minha liberdade …
Quero voar! voar! … “

Estas coisas o pássaro diria,
             Se pudesse falar.
E a tua alma, criança, tremeria, vendo tanta aflição:
E a tua mão tremendo, lhe abriria a porta da prisão…”.

Isso me fez sair correndo e chorando pra dentro de casa, por ter, por algum tempo, cometido a barbaridade de aprisionar vários inocentes. Em seguida, libertei todos os passarinhos que criávamos e ainda quebrei as gaiolas e demais tralhas.

Falei ao cabôco da serra: —Êpa! Tu disseste que choraste duas vezes no mesmo dia, pelo mesmo fato. Onde está o outro choro?

—Foi meu irmão mais velho! Ao chegar da escola, não encontrando os passarinhos e vendo um monte de gaiolas quebradas, me encheu de tapas. Só depois é que mamãe explicou a ele. Mas aí não tinha mais como consertar. É como dizem os mais sábios:

“Palavras ditas
e pancadas dadas…
Ninguém retira”!

Cronistas do blog

A Imprescindível
Cléo Farias de Araújo

Mês de dezembro é assim:
Mais dinheiro pra receber,
mais compromissos a saldar.
Muita coisa pra fazer,
Tanta coisa pra comprar.
Brinquedos pra adquirir,
Roupas para nos vestir:
Será que o dinheiro dá?

Depois de tudo, quando sobra alguma coisa, lembramos daquela reforma que espera pacientemente pra ser feita em nossa casa.

Aproveitando o ensejo, depois de contar o dinheiro que sobrou, contratei um pedreiro para fazer um muro bem alto, pois o que temos serve apenas para os atletas do alheio treinarem para as olimpíadas do crime.
Expliquei o serviço, acertamos o preço e, após as negociações, combinamos que o pedreiro e os ajudantes fariam as refeições no local da obra.
E assim foi. Considerando que a Dona Raimunda, minha secretária, faz quitutes maravilhosos, não seria de estranhar que o pedreiro e seu pessoal gostassem do contrato: Era café, almoço e merenda da tarde.
Numa terça-feira, às vésperas de um feriado, tendo chegado o final do expediente da minha secretária do lar, nos despedimos:

— Tchau, D. Raimunda. Até quinta!
Ela me olhou da cabeça aos pés, várias vezes e disse:
— O senhor vai viajar?
Respondi que não. Apenas que o dia seguinte seria feriado e não havia motivos para ela vir me “perturbar”.

Foi aí que ala revelou todo o seu bom coração, ao explicar sua preocupação com seus semelhantes, principalmente com o pedreiro e seus ajudantes. E saiu com esta:
— Mas meu patrão, se eu não vier amanhã, o que é que os homens vão comer?