As festas de São João

“Era festa da alegria  São João
tinha tanta poesia São João
tinha mais animação
mais amor, mais emoção
eu não sei se eu mudei
ou mudou o São João”
(Zé  Dantas e Luiz Gonzaga)

Junho é mês de passar fogueira, comer canjica e pé-de-moleque, beber aluá, quebrar o pote, subir no pau de sebo, ver o boi e o pássaro, testemunhar casamento na roça… Não, não. Não é mais assim. A cidade cresceu e a tradição foi se perdendo. As quadrilhas já não são as mesmas,  já não se grita “anarri-ê”, nem “lá vem a chuva”, “olha o toco”… As meninas que dançam quadrilha já não usam vestidos de chita e os meninos deixaram de usar calças remendadas e bigodes desenhados com carvão. Hoje o figurino é outro e a coreografia também. As modernas quadrilhas mais parecem comissão de frente de escola de samba. E o Chico Tripa pegou o beco.

Lembro do meu pai fazendo pé-de-moleque, da minha mãe fazendo aluá, de toda gente da minha rua fazendo fogueira, munguzá, cocadinha. Lembro das festas no terreiro. Em algumas casas era uma festança… no quintal, que se chamava terreiro, todo enfeitado com bandeirinhas feitas com  papel de pão e de revistas, principalmente revistas de fotonovelas.

Lembro do Rouxinol, na esquina da Leopoldo Machado com a Almirante Barroso. Era uma mercearia, mas como tinha um grande quintal o proprietário, Sr. Luís, realizava ali as mais famosas festas juninas da cidade. E chamava quadrilhas, bois e pássaros para se apresentarem. Depois começava o arrasta-pé. E no chão batido as damas da alta sociedade dançavam de salto Luís XV com seus cavalheiros impecavelmente vestidos. A molecada ficava na cerca olhando. Os melhores bois e pássaros se apresentavam lá. Um dos pássaros era do Cutião, o mesmo homem que fazia a boneca da banda. Era uma festa ver o pássaro do Cutião passar, imagine vê-lo se apresentar.

Outra festa inesquecível era numa casa na Avenida Padre Júlio, entre a Leopoldo Machado e a Jovino Dinoá. Lá tinha pau de sebo e quebra-pote.

Até aqui falei no bairro da Favela. Mas o bairro do Trem também era pura alegria. Era de lá a quadrilha mais famosa da cidade. Organizada, ensaiada e marcada pelo “chefe Biroba”.
E ninguém marcava tão bem e com tanta animação quanto ele.

O convívio com Munhoz – Por Otávio Viana

Meu convívio com o professor Munhoz
Otávio Viana

Professor Munhoz, em meus momentos de devaneio, após a notícia da tua partida, relembro meu convívio contigo.
Desde quando me lembro eras amigo de meus pais e fostes meu professor, de meus irmãos, de alguns sobrinhos no Colégio Amapaense. Ao longo do tempo, continuastes a conviver com todos nós.
Durante muitos anos viajei pelo mundo, através de tuas narrativas e memórias fotográficas. Fui apresentado, por ti, a tantos escritores, cujas obras me fizeram melhor observar e avaliar a vida, a mim e a humanidade.
Durante décadas, aos domingos e festas tradicionais, na casa dos meus pais (enquanto vivos), como sempre dizias, teu lugar a mesa lá estava e “longas conversas” eram travadas e nas quais eu sempre aprendia.
Nos momentos de celebração de alguma data importante, para nós da família, obrigatoriamente, estavas presente.
Nesse momento, como se fosse um filme, volta a memória a cena de minha filha, a época, em seus dez anos e tu, em teus oitenta e quatro anos, conversando como se não houvesse qualquer conflito de geração. Esse dom, dado por Deus, iluminará, pela eternidade a tua alma. Permanecerás nas mentes e nos corações de toda a minha família.
Obrigado “Mumuca” (assim te chamava carinhosamente) pelas décadas, que me lembro, de convívio, de amizade e de ter sido, junto com o saudoso Professor Edésio, “Meu Grande Mestre” e, acima de tudo, um “Grande Amigo”.
QUE SEJAS MAIS UMA ESTRELA A ILUMINAR O FIRMAMENTO.

Há 25 anos

Contratado para o cargo de técnico do Ypiranga Clube, Dario chega em Macapá em maio de 1992, mais precisamente no dia 14. João Silva e eu estivemos no aeroporto para entrevistá-lo. Eu fiz a entrevista para o Estadão e o João para o Amapá Estado.
Depois da entrevista uma pose para as lentes do fotógrafo Kitt Nascimento

Lembras?

O velho Trapiche Eliezer Levy, de muitas histórias, causos e lendas. Nele atracavam embarcações de bandeiras de vários países e os gringos aproveitavam para tomar um sorvete, servido em taça de inox pelo famoso garçom Inácio, no Macapá Hotel.

Era desse trapiche que saiam os navios com destino a Belém. No final das férias iam lotados de universitários que voltavam para as faculdades (não havia ensino superior no Amapá).

Nas tardes de domingo o velho trapiche era a passarela da juventude. Depois da sessão da tarde nos cines João XXIII e Macapá os jovens iam como em procissão passear ali. Era um passeio obrigatório.

À noite era comum ver na ponta do trapiche um pescador solitário. Um pescador de peixes, ou de estrelas, ou de poesia ou de raios da lua.

A foto é do tempo em que ainda existia a tão cantada em verso e prosa “Pedra do Guindaste” de muitas lendas. Uns diziam que meia noite a pedra transformava-se num navio de ouro maciço enfeitado com diamantes e esmeraldas. Outros contavam que era uma princesa encantada e tinha gente que jurava ter visto “com esses olhos que a terra há de comer” a pedra se transformar em princesa quando o relógio marcava meia-noite.

Um dia colocaram a imagem de São José, padroeiro de Macapá, em cima da pedra. Pouco tempo depois um navio chocou-se com ela e praticamente nada restou dela. No lugar foi construído um pedestal de concreto para São José.
O santo padroeiro fica de costas para a cidade, mas abençoando todos que aqui chegam pelo majestoso rio Amazonas.

Mãe Luzia, mãe preta!

Francisca Luzia da Silva, a Mãe Luzia, a Mãe Negra , faleceu em 24 de setembro de 1954 em Macapá, com mais de 100 anos.
Além de parteira, Mãe Luzia era excelente lavadeira. Quem a conheceu conta que ela só lavava roupa seminua, ou seja, sem blusa e sutiã. Mesmo sem nunca ter sentado num banco de escola, foi considerada “o primeiro doutor da região”. Era a parteira mais famosa destas paragens. Não se tem notícia de que algum bebê que ela tenha “aparado” e cuidado tenha morrido.
Cuidava das grávidas com rezas e  ervas e dava-lhes amor e segurança como uma mãe dá para uma filha. A qualquer hora do dia largava a bacia de roupa para fazer um parto. A qualquer hora que fosse chamada à noite levantava e corria para “aparar” mais uma criança, para mostrar-lhe o mundo pela primeira vez.
Seu trabalho não terminava com o parto. Ela cuidava da criança e da mãe por vários dias, fazendo visitas diárias, dando-lhes banhos, fazendo curativos e rezas.
Mãe Luzia está na poesia dos poetas amapaenses, no altar do nosso samba, no carnaval  (foi enredo de Maracatu da Favela)  e num magistral samba de Alcy Araújo e Nonato Leal.

Mãe Luzia
Álvaro da Cunha

Velha, enrugada, cabelos d’algodão,
fim de existência atribulada, cuja
apoteose é um rol de roupa suja
e a aspereza das barras de sabão.

Mãe Luzia! Mãe Preta! Um coração
que através dos milagres de ternura
da mais rudimentar puericultura
foi o primeiro doutor da região.

Quantas vezes, à luz da lamparina,
na pobreza do catre ou da esteira,
os braços rebentando de canseira
Mãe Luzia era toda a medicina.

Na quietude humílima do rosto
sulcado de veredas tortuosas,
há um clamor profundo de desgosto
e o silêncio das vidas dolorosas.

Oh, brônzea estátua da maternidade:
ao te encontrar curvada e seminua,
vejo o folclore antigo da cidade
na paisagem ancestral da minha rua.

Nos tempos da ditadura – As prisões de jornalistas e líderes sindicais no Amapá

Jornalistas Ernani Marinho, José Maria de Barros, Paulo Conrado e Agostinho Souza com o embaixador Lincoln Gordon, dos EEUU, o articulador do golpe militar.

Esse texto é de ontem, mas como ontem não atualizei o blog vai hoje. É muito interessante.

Recordar sempre é bom e preciso. Até prisões, desde que não nos envergonhem
Por Ernani Marinho

Tomei um susto hoje cedo ao perceber que o calendário me dizia ser 05 de abril. Aí imediatamente me transportei para o ano de 1964, quando num fim de tarde de domingo fui preso ao chegar para a primeira sessão do Cine João XXIII; as prisões, nesse período, eram ato normal e assustador. Uma prestação de serviço do Golpe Militar.

Terêncio Porto ainda no posto de governador nomeado por João Goulart, sob o indicação de Janary Nunes, viveu as primeiras horas do Golpe fiel a Jango, mas ao perceber que a sua deposição era irreversível, aderiu aos militares e passou a mostrar serviço, determinando prisões.

De imediato mandou prender os nossos líderes sindicais mais expressivos, justamente por serem os sindicatos a grande trincheira de Jango, recolhendo na Fortaleza de São José de Macapá os dirigentes sindicais Jorge Padeiro, Periquito e Chaguinha, além dos líderes estudantis Luiz Messias Tavares, José Ribeiro da Conceição, Hermínio Gurgel Medeiros e Antônio Montoril Sobrinho, militantes de esquerda identificados com as causas sindicais.

Mas as prisões não pararam, com ela alcançando outros segmentos, onde existissem adversários de Terêncio​, o que veio a atingir militantes da Imprensa , casos específicos de Elfredo Távora, Amaury Farias e José Araguarino, do jornal Folha do Povo, e eu, vinculado à A Voz Católica.

Preso num fim de tarde de domingo, fiquei recolhido numa grande área descoberta, ligando a ala administrativa das delegacias, na frente, às celas, atrás, no antigo prédio da polícia na Presidente Vargas, em frente à praça. Fiquei lá até perto de meia noite, quando me conduziram para o antigo prédio localizado em área da atual biblioteca Elcy Lacerda. Lá funcionavam a Chefia de Polícia, principais delegacias e sediava a tomada de depoimentos dos presos.

Fui ouvido exatamente da meia noite até às seis da manhã, cansado, com sono, com sede, com fome, e porque não dizer, com muito medo.

Só no correr do interrogatório fiquei sabendo o que pesava sobre mim. Além da atuação n’A Voz Católica, cobravam-me ter participado de reuniões na residência de Pauhiny Pinto para a constituição de Grupos dos11, inspiração de Leonel Brizola; participação ativa na greve do Colégio Amapaense, em protesto à demissão do prof Manoel Nogueira da direção do estabelecimento; atuação como secretário geral da UECSA, em dois mandatos de Haroldo Franco e um de Luiz Messias Tavares, na presidência; participado da organização de seminário nacional de estudantes, patrocinado pela UBES, com a presença de líderes estudantis cubanos, além do que, mais lamentável, ter sido alvo de deduragem de um dirigente de entidade estudantil, ao denunciar em depoimento “como influenciados ou doutrinados pelos cubanos os estudantes Luiz Messias Tavares, Hermínio Gurgel Medeiros, Marcílio Pena, Isnard Brandão de Lima Filho, José Ribeiro da Conceição, Ernani Marinho, Agenor Chermont, Paulo Pereira Cunha, Antônio Montoril Sobrinho, Gil de Oliveira Reis, João Eudes e Lucas Vale, os quais conferenciavam constantemente com os cubanos”.

Encerrado o depoimento fui levado de volta para o prédio onde ficavam às celas, às seis da manhã. Debaixo de uma mangueira que ficava em frente à Prelazia, estavam esperando que passasse por ali, após o depoimento, o meu irmão Horácio Marinho e o meu amigo Babá, o Aldony Araújo, o que de fato aconteceu.

Como entre os três policiais que me escoltavam na volta um deles era o Adonias Trajano, companheiro do tempo da natação, pedi-lhe que me permitisse falar com o meu irmão e o amigo. Concordou, recomendando: fala sem parar, andando, com eles caminhando ao teu lado, não muito próximos. Deu para pedir ao Horácio que levasse o Aldony lá em casa, para identificar e tirar tudo o que pudesse me
comprometer.

E foi o que me salvou, pois horas depois quando a polícia foi em casa para uma geral, nada foi encontrado que me comprometesse.

Após alguns dias depois fui solto.

Entrevista com o cérebro do Golpe

Meses depois, em setembro de 1964, participei de uma entrevista, juntamente com os jornalistas Paulo Conrado, José Maria de Barros e Agostinho Souza com o embaixador Lincoln Gordon, dos EEUU, o grande articulador do golpe militar.

O Paulo Conrado fez a primeira pergunta, levantando a bola para que o embaixador elogiasse a ICOMI e o governo militar.

A segunda pergunta, de José Maria de Barros, que indagava sobre seu empenho junto aos militares para evitar a cassação de Janary Nunes, já desagradou.

Fiz a terceira pergunta indagando se ele havia participado das articulações do golpe militar no Brasil como simples cidadão ou se representava os interesses dos EEUU, seu país. Foi o suficiente para cochichar com o dr Augusto Antunes, ao seu lado, e este dar por encerrada a entrevista, alegando que o curso que a mesma estava tomando consumiria muito tempo não suportável pela agenda.

Aí o embaixador Lincoln Gordon fez este teatro mostrado pela imagem (imagem postada na abertura do post), escrevendo uma mensagem aos amapaenses.

Anti-muro

Em 1969 foi realizado o I Festival Amapaense da Canção. A canção vencedora foi “Anti-Muro” (Letra de Alcy Araújo e música de Nonato Leal) interpretada por Célia Mont’Alverne.
Eis a letra:
“Vamos quebrar com o nosso canto
o desencanto e o muro da dor .
Levemos pássaros e uma flor
o amor e as mãos cheias de esperança
e também o riso de criança.
Derrubemos o muro duro
e as amargas proibições
e nos corações compomos as canções
e o sol que apague este escuro
Vestiremos azul ternura
para encontrar a paz negada
feita de sal
de sol
de sul azul
azul loucura azul ternura pura
Depois do muro está o sol
está o caminho do amor
amor sem dor
e a flor rosa da madrugada
Minha canção protesta com razão.”

(A Comissão julgadora era composta por Antonio Munhoz Lopes, Walkyria Lima, Elza Khóler Cunha, João de Oliveira Cortes,e Sillas Assis)

A República do Cunani

De vez em quando fico  folheando minha modesta coleção de revistas antigas. Gosto muito de fazer isso e gosto também de compartilhar. Então hoje divido com vocês a capa e o editorial  da edição número 8 Revista do Amapá, de novembro de 1948.
A revista era uma publicação do governo do então Território Federal do Amapá e nesta edição trazia como matéria de capa a história da vila de Cunani, que chegou a ser, por um curto período , um país independente.
Moedas da República do Cunani ficaram por muitos anos expostas no Museu Histórico-Científico Joaquim Caetano da Silva, em Macapá. De lá foram roubadas. (Sim. No Amapá se rouba tudo)
Uma das grandes atrações da vila eram os sinos da capelinha, feitos na França. Verdadeiras obras de arte.

Cunani fica a cerca de 300km de Macapá.

Neste editorial a revista diz que a história do Amapá clama por estudiosos. Passados quase 70 anos podemos dizer que a nossa história ainda clama por eles.
O Amapá é carente de historiadores, é carente de obras sobre sua rica história.
Dito isto, vamos ao editorial:

 

O sino do Cunani

A história do Amapá clama por estudiosos. Aqui e ali encontram-se referências ligeiras a um passado cheio de aventuras, de lutas e de sonhos. Mas os episódios desenrolados na imaginação dos que caminharam pelos seus rios e estradas interiores, correndo atrás de pepitas, carregando a bateia, descendo nas ravinas das montanhas para, turvando os igarapés, buscar no seu leito a pinta do ouro, ainda não tiveram o seu escritor. É mina que está por explorar.
Nossa capa constitui um exemplo vivo. Ali está o sino do Cunani, da sua capela pequenina, porém rica de tradição. Foi fundido na França, com o melhor bronze, especialmente para a Nossa Senhora do Cunani. Obra de arte perfeita, construída com carinho exemplar.
Cunani tem sua lenda no mundo. No fim do século passado e no princípio do presente serviu de motivo para comentários internacionais.

Quando o Amapá atraía milhares de aventureiros à busca de filões auríferos, assistiu lindas festas e alimentou grandes ambições.
Duas vezes tentaram transformar esse lugarzinho em país independente. A primeira foi em 1886, durante a visita do célebre naturalista Henri Coudreau. Os franceses ali residentes elegeram-no Supremo Magistrado da Nação do Cunani. Conta Elisée Reclus que Paris em peso desabou às gargalhadas com esta idéia da eleição do sábio de Vauves para a presidência de um país sem súditos!… O caso é que logo após S. Excia. cercava-se de uma comitiva respeitável e seleta: foi fundada a ordem nacional Étoile de Cunani, mas esta instituição continha mais comendadores, cavaleiros e titulares do que habitantes havia em Cunani… Um belo dia o Ministro das Colônias da França, diante dos protestos do Governo brasileiro, com a penada eficaz de um decreto, fazia riscar do mapa a República de Cunani … (Alfredo Gonçalves).
A segunda ocorreu em 1903. O francês Adolfo Brezet proclamou a República do Cunani, abrangendo todo o território ex-contestado. Mas os seus áulicos tiveram sua ilusão desfeita pela Polícia de Belém.
Cunani teve também a sua moeda, cunhada na França, como possuía cerâmica original.
Hoje apenas a capela guarda a lembrança do passado glorioso. As telhas da cobertura e os tijolos do piso vieram de Marselha. Encontram-se no altar lindos castiçais e crucifixos.
Atrás da povoação acham-se os restos da linha de tiro, onde os soldados franceses faziam exercícios. Existem cafeeiros plantados no século findo que dão frutos.
Fala-se também que debaixo da capela há um subterrâneo. Alguns afirmam que ele é longo de vários quilômetros e vai até à serra do Cunani.
Aí fica um breve roteiro para os faiscadores da história amapaense. Cunani é um filão à espera de quem o descubra de novo.”