Nos anos de chumbo

Amaury Farias era um dos donos e redator-chefe do combativo jornal Folha do Povo, nos anos 60.
Na primeira segunda-feira após o golpe de 1964, ao chegar a redação do jornal Amaury deu de cara com o delegado de polícia José Alves, que foi logo informando:
Estou aqui por ordem do governador para fazer intervenção no jornal e na empresa porque aqui funciona uma célula comunista.
Ao que Amaury disse:
Senhor delegado, aqui funciona única e exclusivamente a Folha do Povo, órgão que faz oposição aberta ao sistema dinástico dos Nunes (ex-governador do Amapá Janary Nunes) e seus asseclas e se ser contra esse sistema é ser comunista…
A Polícia não encontrou nada que provasse que ali era um aparelho comunista, mesmo assim levou Amaury preso.

Fundado em 1963 por Elfredo Távora e Amaury Farias, entre outros jornalistas, a Folha do Povo era um jornal semanal de oposição ao governo. Por causa disso seus jornalistas foram presos várias vezes.
Funcionava na avenida Mário Cruz. A foto registra uma das interdições do jornal, após o golpe de 1964. Um policial na porta principal impede a entrada e saída de qualquer pessoa.

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Meu amigo Aloísio Cantuária, que há alguns anos deixou Macapá e radicou-se em Belém, me contou o seguinte:

“Enquanto o Amaury Farias e outros iam presos, “alojados” na celas da Fortaleza de São José (até pra isso foi usada), naquele momento, entrando na adolescência, nem tínhamos idéia do que estava acontecendo.
Em 64 estava concluindo o antigo curso primário lá no G.E. Coaracy Nunes. Em 65 (“Tinha eu 14 anos”, emprestando os versos do Paulinho da Viola) entrei no Colégio Amapaense e aí comecei a ouvir falar na tal “revolução”. Pra começar, estudava à noite (pra acompanhar a minha irmã; depois passei para o turno da manhã). E um dia, a “dona” Caty, secretária do CA e também professora de religião, veio avisar à turma que no domingo haveria uma missa pela manhã, no antigo Cinema João XXIII, em homenagem à … “Revolução”. Isso mesmo, até missa pelo primeiro aniversário do que hoje chamamos de golpe militar. Mas não é só isso. Em 66 (acho que foi em 66) também houve desfile estudantil no dia 31 de março em homenagem à “revolução”. Lembro bem porque, da mesma forma que na missa de aniversário, essa participação era obrigatória.
Ainda em 65, na turma da noite, conhecí o Antonio Montoril, que, simpatizante de Marx, havia sido “hospedado” na Fortaleza e costumava comentar sobre sua estadia forçada. Dizia que, devido à umidade nas celas, sua perna inchou e teria até rasgado a perna da calça.
Outra lembrança que tenho é da visita do presidente Castelo Branco, em 1966. Os estudantes ficaram perfilados (como se fossem soldados) ao longo da av. FAB, enquanto ele passava no carro com o governador (na época, o general Luís Mendes da Silva). Os alunos do CA ficaram naquele trecho onde hoje é o Colégio Gabriel Almeida Café (CCA); na época era só um terrenão.
Antes que eu esqueça: afirmava-se (isso ouví falar) que os acusados de serem comunistas, foram recolhidos (parece-me que ao quartel do BIS) para não representarem perigo ao presidente visitante. Não sei se o senhor Amaury Farias estava no meio dos recolhidos. Esse recolhimento teria acontecido também por ocasião da visita do sucessor de Castelo Branco, o marechal Costa e Silva. Tem também 68, mas isso já é outra história.”

Um registro especial pela passagem luminosa e musical de Hernani Vitor Guedes pela terra, e por Macapá

Um registro especial pela passagem luminosa e musical de Hernani Vitor Guedes pela terra, e por Macapá
Alcilene Cavalcante

Faleceu ontem aos 98 anos o “seu Hernani da Farmácia”. O Hernani Vitor Guedes, uma das criaturas mais doces, serenas e acolhedoras que conheci. E que bom que pude conhecê-lo.

Violinista, (e tocava outros instrumentos também), empresário do ramos farmacêutico (Farmácia Ernani e Farmácia Cristo Rei) e empreendedor Cultural. Foi ele que gravou o primeiro LP no Amapá. Nos anos 70, isso foi um grande feito. E o maior feito desse disco: Juntar no Lado A, a nascente MPA – Música Popular Amapaense, e no Lado B, o Marabaixo, então uma manifestação cultural só executada em seus berços.

Sua casa era musical, cheia de resenhas e de muita fé também. E era aberta aos amigos e aos amigos dos filhos.

Sua passagem foi luminosa por este plano. Luminosa, musical, gentil, inteligente, culta e alegre.

Parece que o Bloco “A Banda”, saiu neste dia diferente, fora do carnaval, para saudar a despedida de seu Hernani. A sua tradicional casa na rua Candido Mendes era um ponto de encontro para as filhos, netos, amigos, se prepararem com as melhores e mais engraçadas produções para “A Banda”.

Seu Hernani é pai dos amigos Nonato, Fátima Lúcia (Popoca), Nivito, Lourdes Maria e Kiara. E esposo da querida Dona Marly. A todos meus sinceros sentimentos e agradecimento por dividirem seu Hernani com uma cidade inteira que o admira.

(Extraído do blog www.alcilenecavalcante.com.br)

Minha avó

Ela era linda, negrinha, magra, os cabelos pareciam talas de tão lisos. Conta-se que ninguém engomava uma roupa melhor que ela. Naquele tempo que os homens tinham que usar calças de linho e camisas brancas de mangas compridas, tudo muito bem engomado, ela – usando ferro a carvão – engomava com perfeição as roupas do meu pai e os meus vestidinhos de organdi. A goma ela mesma fazia com tapioca. Acho que era a mesma goma que se toma no tacacá e que meu irmão usava  para colar seus papagaios de papel de seda.

Dizia-se também que não havia feijoada mais gostosa que a que ela fazia. Gostava de cozinhar no quintal. Fazia o fogo com lenha, que comida boa tinha que ser cozida na lenha.

Criava galinhas no quintal, que alimentava todas as manhãs e no fim da tarde, com milho. Lembro bem quando ela descia a escadinha da cozinha com uma bacia de alumínio cheia de milho. Ao vê-la as galinhas se aproximavam e ela ia jogando os punhados de milho.

Tinha também uma horta, onde plantava cebolinha, cheiro verde, coentro, pimentão, tomate e outras coisinhas. A horta era cercada com uma tela de arame.

Não gostava de cama. Nem tinha cama. Só deitava em rede. Perto da rede, uma mesinha com uma bilha de água, lamparina (para o caso de faltar energia), um caneco de esmalte, uma caixa de fósforos, o cachimbo, um pedaço de tabaco  e outras coisas que não lembro mais. Para curar tosse fazia uma mistura de pimenta do reino com açúcar e deixava numa tigelinha naquela mesa. De vez em quando comia um pouquinho. Eu achava essa mistura tão gostosa que sempre tossia perto dela só pra ganhar um pouco.

Seu quarto era simples: a rede, a mesinha, um armário e uma maleta de madeira, daquelas bem antigas. Duas janelas dando para o quintal e duas portas: uma para a cozinha e a outra para o quarto dos netos. Nunca vi aquelas portas fechadas.

Dos netos o preferido era o mais velho. Tudo que ela comia guardava a metade pra ele. Se fritava um ovo, a metade ela guardava naquela mesinha num prato esmaltado, coberto com um paninho, pra quando ele chegasse da escola.

Não lembro de ter visto alguma vez  uma revista ou livro em suas mãos, mas lembro muito bem  do jeito encantador como ela me contava  historinhas que sempre começavam com “era uma vez…”.

Um dia ela adoeceu. Apareceu nela um tal de “cobreiro” na barriga. Era uma coceira. Desde aí ela foi ficando cada dia mais tempo na rede, sentia dor e acho que sentia muita fraqueza, pois passado um tempo não saía mais da rede. Lembro que os médicos iam em casa, receitavam remédios, mas não sei que diagnóstico deram. Cada vez ela ficava mais fraquinha e como já não me contava histórias eu retribuía lendo para ela revistas de fotonovelas. Acho que ela nem prestava atenção. Uma noite  enquanto eu lia baixinho para ela e para a vizinha Zefa, que toda noite ia visitá-la, Zefa pegou no seu pulso, me olhou assustada  e mandou que eu chamasse correndo meu pai, que estava na sala,  pois minha avozinha Jacinta Alves Carvalho, mãe da minha mãe, acabara de morrer.
Eu tinha 10 anos apenas. E quando minhas colegas me perguntavam do que minha amada avozinha tinha morrido, eu, com os olhos cheios de lágrimas, respondia: “de cobreiro”.
Hoje quando alguém me faz essa pergunta – o que é muito raro – eu digo: “Parece que foi de cobreiro” e tento explicar o que é isso, mas o que eu gosto mesmo é de contar que ela era tão bonita, negrinha de cabelos lisos, magrinha, nascida no interior do Pará e que casou-se  com um português de olhos azuis, vindo de Lisboa, dono de comércios em Belém, e com ele teve uma única filha: minha adorável mãe.

Minha outra avó também era linda, branca de bochechas rosadas, fazia crochê como ninguém e também nos encantava contando histórias… bom, mas sobre ela eu vou falar em outro post qualquer dia desses.

Hoje – 123 anos do nascimento do escritor e jornalista Ernest Hemingway

“Somos todos aprendizes de uma arte na qual ninguém é mestre” (Ernest Hemingway)

Há exatos 123 nascia em Oak Park, nas proximidades de Chicago, nos Estados Unidos, o escritor e jornalista norte-americano. Um dos mais famosos escritores do mundo.
Ernest Heminguay cometeu suicídio no dia 2 de julho de1961, em Ketchum, Idaho, EUA.

Já contei várias vezes pra vocês que sou apaixonada por Hemingway. E conto de novo republicando isto que escrevi e publiquei aqui numa tarde de janeiro de 2013.

Saudades do velho Hem

Nesta tarde quieta e de céu cinzento em Macapá, sinto saudade dele.
Folheio um velho bloco de anotações que me diz que em 28 de outubro de 1954 Ernest Hemingway recebia o Nobel da Literatura por seu livro “O Velho e o Mar”, publicado dois anos antes.

Olho o “Velho e o Mar”, aqui diante de mim, na estante onde estão também “Por quem os sinos dobram”, “O sol também se levanta”, “Adeus às armas” (este foi o primeiro livro dele que li e daí começou minha paixão), “Paris é uma festa”, entre outros. Já li toda sua obra e tenho quase todos seus livros. Gosto do seu estilo, com frases curtas, parágrafos breves que nos dão a sensação de fotografias em movimento.

Fixo o olhar numa foto dele que guardo com todo carinho. Hem, sentado à beira de um rio, faz anotações à lápis num moleskine (eu também adoro fazer anotações em moleskine), e pergunto-lhe:

Meu velho e querido Hem, há quanto tempo não conversamos? Mais de um ano talvez. Que tal voltarmos a conversar hoje?

Conto-lhe que sexta-feira, tomando chandon no meu pátio, eu, Cláudia e Charles Chelala falamos sobre ele e suas obras.

hem3E numa outra foto Hem abre um  sorriso para mim.

Então peço-lhe que me fale, mais uma vez, da relação do homem com o mar. Me encante, de novo, com a história daquele velho pescador, corajoso como ele só, que passou meses no mar, com seus sonhos, esperanças e persistência, lutando pela sobrevivência, falando sozinho, e sem perder, em momento algum, a confiança na vida. Preciso, mais uma vez, Hem, daquela mensagem de confiança na grandeza interior do ser humano.

Ernest Hemingway, como sempre, aceita meu convite. Então, retiro da estante, com o cuidado de quem colhe uma rosa, o livro O Velho e o Mar, e começo a reler, ou melhor a conversar com Hem e com o velho pescador Santiago.”

Macapá era assim

Quem diria que o bairro Central de Macapá já foi assim? Pois é. A ponte – onde essas figuras estão fazendo pose – ficava na avenida Mendonça Furtado entre as ruas Jovino Dinoá e Odilardo Silva, antigo bairro da Favela, que meu pai chamava de “Favela dos meus amores”.

Aí havia um igapó onde a molecada ia pegar peixinhos em vidros de soro . Naquela época os frascos de soro eram de vidro e a criançada usava-os como aquário. Eu mesma peguei muitos peixinhos ali.

Aquele prédio de madeira lá atrás era o comércio da Dona Júlia, depois funcionou ali a Agência Zola – onde a gente comprava baratinho revistas sem capa.

Saudade de ti, mamãe

20 de julho é Dia do Amigo e há exatos 36 anos minha mãe, professora Delzuite Maria Carvalho Cavalcante, pioneira do magistério amapaense, partiu ao encontro do maior e melhor amigo: Deus.
A saudade é imensa. E ainda dói.
Paraense, Delzuite Cavalcante veio para o Amapá ainda muito jovem, a convite de Janary Nunes, tão logo foi criado o Território Federal do Amapá. Lecionou em diversas regiões do interior, às margens de rios e estradas, desenvolvendo seu trabalho no Araguari, Aporema, Cajari e Campina Grande. Sob a luz de lamparinas preparou uma geração de jovens.
Em Macapá, lecionou no Alexandre Vaz Tavares. Fez parte do primeiro quadro de professores das escolas Coaracy Nunes e José de Anchieta. Trabalhou também com educação de adultos no Centro de Ensino Emílio Médici.
Poetisa, amante da cultura e da educação, ao deixar a sala de aula continuou seu trabalho em outros setores de formação da juventude, como a Divisão de Assistência ao Estudante e o Departamento de Assuntos Culturais (hoje Secult).
Delzuite Cavalcante era filha de um português, Domingos Pereira de Carvalho, com Jacinta Alves Carvalho.
Casou-se  com o poeta e jornalista Alcy Araújo Cavalcante com quem teve quatro filhos: Alcione, Alcinéa, Alcilene e Alcy Filho. Teve duas filhas adotivas: Genassuema e Adélia.
Mãe, na saudade dos que te amam descansa na paz de Deus.

Um pouco sobre Pauxy Nunes, o ex-governador do Amapá que morreu há 42 anos

Pauxy Nunes e sua esposa Maria Emília Andrade Nunes

Há 42 anos morria no Rio de Janeiro o ex-governador do Amapá, Pauxy Gentil Nunes, conhecido como “Caudilho do Norte”.
Homem culto, grande desportista, Pauxy incentivou muito os movimentos culturais, o esporte e escreveu artigos e livros sobre o Amapá. Seu livro mais conhecido é “Mosaicos da Realidade Amapaense”, publicado em 1963. Criou colônias agrícolas e fazendas-modelo no interior.
Governou o Amapá de 14 de fevereiro de 1958 a fevereiro de 1961. Foi em seu governo que as ruas de Macapá receberam asfalto pela primeira vez.

O que pouca gente sabe é que Pauxy foi o grande responsável pela eleição de João Havelange para a presidência da CBD (Confederação Brasileira de Desportos). A eleição ocorreu em Macapá durante congresso nacional das federações de desporto.

Certa vez quando eu adoeci muito o Pauxy e o meu pai estavam brigados. Com a minha doença os dois fizeram as pazes. Mamãe contava que Pauxy gostava muito de mim e quando adoeci ele chegou em casa com uma bandeja de maçãs, uvas e peras (frutas que não existiam em Macapá e que vinham do Rio de Janeiro para o governador).
Quando ele morreu escrevi um artigo e nele dizia que aquele escrito era a homenagem não da jornalista Alcinéa, mas da garotinha que ganhou dele uma bandeja de frutas.
Por causa desse artigo, a família de Pauxy me mandou uma cartinha tão carinhosa, tão cheia de gratidão e ternura, que guardo até hoje.

Memória – Sapiranga no Marabaixo

Marabaixo na Favela e a Festa dos Inocentes*
Milton Sapiranga Barbosa

Durante o ciclo  do Marabaixo, que no meu tempo de criança era realizado na casa da  dona Gertrudes, um  dia  era reservado para a garotada se divertir  denominado de  festa dos inocentes, realizada no segundo domingo de maio, Dia das Mães. Naquela  época, de muito respeito,  criança não se metia na dança  dos adultos, como hoje é tão comum. A meninada podia ficar piruando, mas bem sentadinha nos bancos que  circundavam  o salão da casa da Tia Gertrudes com tio Caba Branca, seu esposo.

A Festa dos Inocentes tinha  três  acontecimentos  ansiosamente esperados e festejados  pelos garotos e garotas do  bairro: o  primeiro, era quando os batuqueiros aceleravam  os toques nas caixas, sinal   para se jogar capoeira, sem técnica nenhuma, é claro, mas era tanta pernada e rabo de arraia, que era bonito de  se ver.  Quando um moleque ia ao chão, era vaiado  e o  que aplicara o golpe, era muito festejado, principalmente pelos pais. Os campeões  na virada  das caixas, até por  herança genética, eram: Venturoso ( filho do seu Vadoca  com dona Natalina)  e o Raimundo Calango Sêco ( filho do sr. Zeca Costa  com  Dona Mundica), é mole. O segundo e melhor  momento da festa era o almoço, servido  sempre que  o relógio marcava 12 horas. Ninguém ficava sem comer. Era tanta comida, que sobrava, e a dona Gertrudes  dava para as mães levarem para suas casas. A terceira parte, a mais engraçada,  ocorria durante uma representação teatral, feita por  um menino e uma menina escolhidos dias antes da festa do Marabaixo começar. Numa dessas apresentações, o Arideu, filho da dona Margarida fez uma encenação com a Isabel, filha caçula de dona Gertrudes; o Arideu, todo pomposo chegava  e dizia para Isabel, sua pretendida na peça: “ bela minhá menina, o que tu me achas?”  e a Isabel, para gargalhada geral dos presentes respondia: “Olha a cara dele, até parece uma bolacha”. Meu amigo e vizinho Arideu sofreu muito nas mãos dos moleques da Favela, mas daquele dia em diante, quando chegava outro ano e o Ciclo do Marabaixo iria começar, ele  passava longe da casa da Tia Gertrudes, temendo ser outra vez  escolhido como ator principal da peça.
O Marabaixo e  a Festa dos Inocentes são   boas  lembranças da minha infância feliz vivida no meu querido bairro da Favela.

*Texto publicado originalmente neste blog em 16 de abril de 2010