A poesia de Alcy

MINHA POESIA
Alcy Araújo

A minha poesia, senhor, é a poesia desmembrada
dos homens que olharam o mundo
pela primeira vez;
dos homens que ouviram o rumor do mundo
pela primeira vez.
É a poesia das mãos sem trato
na ânsia do progresso.
Ídolos, crenças, tabus, por que?
Se os homens choram suor
na construção do mundo
e bocas se comprimem em massa
clamando pelo pão?
A minha poesia tem o ritmo gritante
da sinfonia dos porões e dos guindastes,
do grito do estivador vitimado
sob a lingada que se desprendeu,
do desespero sem nome
da prostituta pobre e mãe,
do suor meloso da gafieira
do meu bairro sem bangalôs
onde todo mundo diz nomes feios,
bebe cachaça, briga e ama
sem fiscal de salão.
– Já viu, senhor, os peitos amolecidos
da empregada da fábrica
que gosta do soldado da polícia?
Pois aqueles seios amamentaram
a caboclinha suja e descalça
que vai com a cuia de açaí
no meio da rua poeirenta.
Cuidado, senhor, para o seu automóvel
não atropelar a menina!…

Chá da tarde

Chá da tarde

Amar e ser amado
Castro Alves

Amar e ser amado! Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desvelo!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
Em teus olhos mirar meu pensamento,
Sentir em mim tu’alma, ter só vida
P’ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderem-se no oceano —,
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundido também, amante — amado —
Como um anjo feliz… que pensamento!

Chá da tarde

Vermelho e branco
JG de Araujo Jorge

O sangue vermelho

do homem branco,
do homem preto,
do homem amarelo,
o sangue é vermelho,
é um sangue só.
O leite branco
da mulher branca,
da mulher preta,
da mulher amarela,
o leite é branco,
é um leite só.
Deus pôs por dentro de homens
e mulheres
de aparências tão diferentes,
uma humanidade só:
o mesmo anseio, a mesma fome,
o mesmo sonho, o mesmo pó;
o mesmo sangue vermelho,
da cor da vida, da cor
do amor,
e mais:
o mesmo leite branco,
da cor da paz.

Tá valendo

Prazer, sou Maria
Alcinéa Cavalcante

Dá licença, seu moço,
que eu agora vou me apresentar:
Sou Maria,
mulher guerreira,
não puxo briga
mas não corro de bicho-papão
nem tenho medo de coroné metido em fardão.


Sou Maria,
mulher simples e humilde
mas tenho alguns tesouros.
Não sou dona do mar
mas conheço os segredos da floresta
e marimbondo de fogo não vai me ferrar.


Sou Maria,
mulher poeta e jornalista.
De noite escrevo versos,
de dia escrevo notícia.
Minha caneta é liberdade
a consciência o meu guia.
Sou doce, mas valente,
nem tente me calar
pois não tenho medo da sua gente.


Me ajoelho só pra Deus.
Santo e poeta eu olho com o coração
e político da tua laia
eu olho de cima pro chão.


Pra quem é do bem
eu digo: “Vem comigo, amor”
Pra quem é do mal
eu só sei dizer “Xô”.


Encerro minha apresentação
te fazendo um pedido:
Fica lá no teu quadrado
deixa em paz o povo tucuju
ou eu viro Maria mal-educada
e te mando…

(Do meu livro “Paisagem Antiga” – Ed. Scortecci – São Paulo, 2012)

Chá da tarde

Razão de ser
Paulo Leminski

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

Via Láctea – Olavo Bilac

Via Láctea
(Olavo Bilac)

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Carta para São Pedro

Carta para São Pedro
– Por Inocêncio Carrapato, o poeta do mato –

Meu Sum Pedro Pescadô,
nunca mais eu lé iscrivi
pra falá das disavença
do meu sufrido Brasi.
O gapó tá tão imenso,
meu santinho, qui só penso
im vortá pro Cajari!

Dispois da úrtima carta
qu’eu iscrivi pro Sinhô,
numa piscada dé zólho
munta cuisa aqui mudô:
arrumaro um prisidente
ladrão, gorpista, indecente,
mintiruso e inrabadô!

E tudo isso foi feito
pra acabá a corrupção!
E o cafajeste inda ri
rodeado dé ladrão
que dão as carta im Brasilha,
na mais pió das quadrilha
qui já pisô niste chão!

E o puvo, fumado e ordêro,
parece inté calhambeque
qui só pega no impurrão!…
Pra vivê ele fais breque,
sarta pra tudo qué lado
pra acabá arrebentado
qui nem istrepa-muleque!

Agora diga, meu Santo,
si eu num posso mé zangá
dé vê qui o Brasi parece
panela dé mungunzá
onde tudos mete as mão!…
Tamanha isculhambação
fais quarqué um sé isquentá.

Qui Deus naceu no Brasi
eu iscuito munta gente
dizê mas num aquerdito
nessa históra imprucedente:
sé Deus cesse brasilêro,
num dexava ixe imbustêro
sé passá pur prisidente!

Tô perdeno as isperança
e a vuntade dé vivê…
Tem fartano inspiração
e inté paper pra iscrevê…
Cum a crise sé agravano
eu já ando inté pensano
im morá cum Vosmicê.

Meu bom portêro do Céu,
peça pra Nosso Sinhô,
ulhá pela nossa gente
mandando vento a favô.
E num sisqueça, meu Santo
dé guardá, no céu, um canto
pr’este pobre trovadô.