Os poetas também fazem rir

Esta eu li numa edição da Revista Rumo de outubro de 1959

O poeta Aluízio Cunha – que era funcionário do gabinete do governador do então Território Federal do Amapá – resolveu após vários anos de cogitação, fazer uma granja no bairro do Laguinho.
Acontece que, logo no dia seguinte ao da inauguração, era sábado e seus colegas de trabalho Conceição e Marinho estavam sem dinheiro, doença que consideram das piores para quem sabe aproveitar a vida.
Marinho então, em nome dos dois, dirigiu o seguinte vale ao Aluízio:

Senhor Aluízio Cunha,
mui digno proprietário
duma granja, no Laguinho!
Está faltando dinheiro
tanto para o Conceição
como para o poeta Marinho.
Achamos, por isso mesmo,
que o senhor, que é criador
e está com a vida folgada,
poderá, perfeitamente,
num gesto nobre e louvável,
nos afastar da enrascada.
Como já disse o ditado,
“se no céu vale quem presta,
na terra vale quem tem”.
Mostre então o seu valor,
não nos deixe sem cerveja,
pois sede mata também.

Chá da tarde

A noite é só nossa
Ray Cunha

Meu bem, estou à tua espera, vibrando de alegria
Pois esperar-te é como a emoção que precede o garimpeiro
Ao encontrar a maior pepita de ouro
No morro do Salamangone, Serra Lombarda, município de Calçoene
Dez anos depois
Como a felicidade de abraçar crianças que escaparam de um barco que afundou
Ao largo do Marajó
Ver rosas nuas em toda parte
Só de te esperar!
Amor da minha vida, esta noite será eterna
Porque nesta casa
Só haverá nós dois e a noite, presente de Deus, para ti
Já arrumei tudo, as flores, o vinho e a comida, camusquim com camarão pitu
Seremos nós dois e uma infinidade de diamantes
Que só encontramos no céu de Macapá, em agosto, nos anos 1960
Ouviremos La Cumparsita, na voz de Julio Iglesias, e dançaremos
Lentamente, nossos lábios se roçando
E ouviremos Suave é a Noite, com Alcione
E Granada, com Juan Diego Florez
Então, voando nas asas de Dom Pérignon, safra de 1954
Sentirei o sabor da tua pele e do teu púbis, e beberei colostro
E será madrugada
A quem ofertarei teus gemidos, que espalharei no jardim da minha alma
Mulher amada
Vem logo
Pois a noite já chegou
Como um navio, um continente, uma galáxia,
Só nossa!

Chá da tarde

Na boca da noite
Deusa Ilário

Do alto das mangueiras descem pingos de poesia
Do céu desce uma corda de estrelas
Verdes, amarelas e vermelhas
Que fazem a noite ser muito mais bela.
Uma por vez no brilhar da ousadia
de fazer da poesia um altar,
em qualquer lugar,
na praça, na beira do rio, na livraria
ou na calçada vazia,
salão e sarau dos amantes da boemia.
A tarde borda tristonha os seus silêncios e magias,
faz cair sobre o chão sagrado
um punhado de sereno, um sorriso, um afago
e um favo onde se planta uma réstia de ternura.
A boca da noite chega suave
traz fetiches e fantasias
Na sua cesta de flores vem amarrado,
um buquê de orquídeas e de rosas escuras.
Pendurado no varal encantado,
reluz a chama e o chamado
para o agora e para um amanhã
feito de versos, rimas e melancolia.
Bem vindo à boca da noite,
traga sempre no coração o seu colar
de doces poemas!

Chá da tarde

IMPERATIVO
Manoel Bispo Corrêa

Hora de atirar
pedras no rio
e esconder as mãos.
Hora de mergulhar
no vento frio
e driblar a solidão.
Hora de nem pensar
e apenasmente saber
o que vale sonhar.
Hora de retirar
a mordaça das palavras
e deixar que o espelho
reflita a prenhez da poesia.

(Do livro “Intátil” – Macapá, 2002)

Chá da tarde

TELA
Aluízio Botelho da Cunha

O pincel fixou sombras escuras
nas sobrancelhas da moça
e deu um tom de tardes prematuras
nos olhos claros
da clara judia.
(Também já esbocei olhos e sóis,
subjugando curvas
sobre rosto oblíquo)

Dei traços de luz
em cabelos cor de noite,
e auroras nasceram
do sol ardendo,
houvesse, embora,
eclipse solar.
Se eu modelar, um dia,
novas dimensões da tua presença,
atrairá teu corpo
a lei da gravidade dos sentidos.

(Extraído da antologia Modernos Poetas do Amapa – Macapá-AP, 1960)

Chá da tarde

Rosa sangrando
Alcy Araújo

A rosa sangrava
como um poeta.
Uma rosa atropelada
por passos apressados
de operários na calçada.
A rosa sangrava
defronte do anúncio luminoso
amenizado pela luz da manhã
que nascia do mar.
Era uma rosa rubra
sangrando
sem jardim
sem mão mulher
sem os cabelos de Izaura.
Nunca mais esqueci
aquela rosa sangrando
como um poeta bêbado
despetalado na calçada.
(Do livro “Jardim Clonal”