Chá da tarde

Ah! Se eu pudesse…
Amaury Guimarães Farias

Se eu pudesse contar
eu contaria,
as coisas que o mundo
não contou,
porque no mundo conturbado
não se pode realizar
o que sonhou.

Se eu pudesse dizer
eu te diria,
da vida que sonhei
e não vivi
porque os anos se passaram
destruindo as coisas
que a custo construí.

Mas não desespero assim
tão simplesmente
da vida que foi dada
docilmente
por Deus, Divino e Onipotente,
porque se a vida é ruim
sem ter história,
pior é morrer
sem ter a glória
de viver a vida
sem viver.

Chá da tarde

I

“Necessário ainda
o gesto de ternura enxugando
a alma do silêncio
lídima dor de não ser trigo
quando bocas clamam pelo pão”
(Trecho do poema “Chegando”, de Alcy Araújo)

II
“Aqui está a minha mão e está o meu cântaro.

Vem comigo.
O caminho não terminou,apenas ficou mais longo.
Bebe, meu irmão.
Mata tua sede sem me agradecer
que eu não sou o bom samaritano.
Sou um simples viajor
em busca dos horizontes do Pai”
(Trecho do Poema do Viajor, de Alcy Araújo)

III
“Uma dama caridosa da sociedade
entendeu muito bem
o que dizia o santo homem.
Mas o menino órfão
que só dois anos incompletos tinha
chorava com fome sem entender nada”
(Trecho do poema Quadro, de Alcy Araújo)

IV
“Meus Deus
olha essas dores por aí.
Sensibilidade de Deus
olha o poeta sofrendo a noite de todas as noites
quando são perdidas todas as esperanças
e o poema é apenas um modo de sofrer”
(Trecho do poema Reversando, de Alcy Araújo)

Chá da tarde

Segredo
Neth Brazão

Aquele amor…
Que não era meu,
Ainda assim me pertencia.
Um amor nascido em abril,
Insaciável, louco, devorador…
Escondido em uma caixinha
De segredos proibidos.
Um amor tão forte,
Que se expandiu se mostrou…
Seria ele nosso segredo,
Nosso campo de fuga,
Fonte de vida,
Que de tanto amar
Perdeu-se no caminho.

(Poema extraído da coletânea “Poetas na Linha Imaginária”- Editora Scortecci, 2013)

O poeta Arthur Nery Marinho

“Meu coração é público, senhores!
É como o botequim dali da esquina.
À turba não ilude.
Sempre há de ter lugar aos sofredores,
pois, sendo núcleo da mais triste sina,
tem calma e tem virtude.”

Poeta, músico, jornalista e desportista, Arthur Nery Marinho nasceu em Chaves (PA) mas aos 23 anos de idade veio para o Amapá e nunca mais saiu daqui. Cantou, tocou e escreveu as coisas desta terra como se fosse a sua terra natal.

“Que saibam pois, meus filhos, sem sigilo,
que fui isto, fui isso e fui aquilo,
porque não tive o dom de ser lacaio”

Compadre de meus pais, Arthur Nery Marinho frequentava muito nossa casa. Lembro-me que quando eu era criança eu ficava boaquiaberta ouvido-o declamar suas poesias para minha vó Elvira Araújo.
Nossa casa tinha uma grande varanda, onde minha vó, paralítica, passava a maior parte do dia em sua cadeira de rodas rezando, cerzindo, lendo, fazendo crochê… o poeta chegava, cumprimentava-a e começava a declamar (outro que costumava fazer isso era o Cordeiro Gomes, mas em outro post eu conto). Eu corria para ouvi-lo e a poesia que eu mais gostava era Auto-Retrato, que está publicada no livro Sermão de Mágoas. Ele dava tanta vida ao poema que eu, na inocência da infância, jurava que ele tinha o corpo todo marcado de cicatrizes.
Uma das imagens que ficou gravada é o poeta levantando a barra da calça ao dizer o verso “E por toda parte a perna cortada.” Eu arregalava os olhos na tentaviva de ver os golpes em sua perna e morria de pena dele. “Isso deve doer muito”, eu pensava.
Só na adolescência fui entender o Auto-Retrato do poeta.

Cresci, fiquei adulta,  meus pais se separaram, morreram e meu contato com o poeta foi rareando. Mas nas poucas vezes que nos encontramos após a morte de meu pai sentia o enorme carinho que ele tinha por mim e isso me fazia muito feliz.

“Se alguém me pergunta onde é que moro,
prego mentira e de vergonha coro,
pois não moro nem dentro de mim mesmo”

Poucas vezes estive na casa dele. Era uma casinha tão aconchegante, na rua mais tranquila do bairro Jacaré-acanga, bem na frente de uma pracinha. Pensava com meus botões: todo poeta deveria morar num lugar assim, onde há paz, verde, crianças jogando bola, gente enamorada e canto de passarinhos. Uma das vezes que estive lá foi para convidá-lo a sair na escola de samba Unidos do Buritizal, em 1992, cujo enredo era “Alcy Araújo – o poeta do cais”. Fazia pouco tempo que Arthur tinha passado por uma delicada cirurgia na cabeça. Mas mesmo assim ele topou. Enfrentou o desafio de ir para a avenida, sambar em homenagem ao compadre, na comissão de frente da escola que estreava no carnaval. E estreou em alto estilo: foi a vice-campeã.

Outras vezes encontrei-o à sombra da “mangueira da Sead”. Ele costumava dar uma paradinha ali quando ia falar com os secretários de Estado em busca de apoio para a publicação do livro “Sermão de Mágoa”. E foi ali, embaixo daquela mangueira, numa manhã de sol bochechudo e céu azulzinho de 1993, que ele me deu a boa notícia: finalmente Sermão de Mágoa ia ser publicado. Já estava no prelo. Vibrei. E foi também embaixo da mangueira que ele me deu um exemplar do livro tão logo saiu da gráfica, antes do lançamento.

“Quero sonhar que vou pelos caminhos
jogando rosas, destruindo espinhos,
deixando luz em cada escuridão”

O poeta Arthur Nery Marinho faz parte da primeira geração dos modernos poetas do Amapá.
Nascido em Chaves (PA), em 27 de setembro de 1923, veio para o Amapá em 1946. Ao lado de Alcy Araújo Cavalcante, Álvaro da Cunha, Aluízio Cunha e Ivo Torres, Arthur desenvolveu importantes projetos culturais.
Está na Antologia Modernos Poetas do Amapá, na enciclopédia Brasil e Brasileiros de Hoje, na Grande Enciclopédia da Amazônia e na Coletânea Amapaense de Poesia e Crônica.
Foi vice-presidente da Sociedade Artística de Macapá, diretor do Jornal Amapá, presidente da Federação Amapaense de Desportos (hoje FAF) e sócio-fundador da Sociedade Esportiva e Recreativa São José e do Grêmio Literário e Cívico Ruy Barbosa.

Arthur e o presidente da Associação Amapaense de Escritores, Paulo Tarso

Em 1993 publicou o livro de poesias “Sermão de Mágoa”. Morreu em 24 de março de 2003 e alguns meses após sua morte a Associação Amapaense de Escritores fez o lançamento do livro de poemas e trovas “Cantigas do Meu Retiro”.

Arthur Marinho tocou no coreto da antiga Praça da Matriz. Num de seus poemas relembra assim:
“Da igreja o velho coreto
eu avisto, neste ensejo.
Do mestre Oscar vejo a banda
e lá na banda eu me vejo.”

Chá da tarde

INFÂNCIA
Raquel Braga

Quando eu era pequenina
No início do entendimento
Sonhava ser bailarina
E dançar sem pensar no tempo.

E o tempo passou tão depressa
Que transformou completamente
A menina dos meus sonhos, tão liberta
Na mulher que hoje vês na tua frente.

Mas, embora este corpo não aparente
Minha alma continua uma criança
Que te vê ao lado meu, eternamente,
Na vontade de esvair-se numa dança.

(Poema extraído da coletânea “Poetas na Linha Imaginária”- Editora Scortecci, 2013)

O poeta Isnard Lima

“Nasci sob a forma de um peixe
e depois me alimentei de algas”

O poeta e meu compadre Isnard Lima, publicou dois livros: Rosas para a Madrugada (poemas, 1968) e Malabar Azul (crônicas, 1995).

“Estes poemas não tem idade
nem sexo
nem luz.
Nasceram por acaso
sem razão”

Filho da pianista e professora de música Walkíria Lima e do mágico Isnard Brandão Lima, Isnard nasceu em 1 de novembro de 1941 e morreu em 11 de julho de 2002 deixando inacabado um livro de memórias e pronta para a publicação a coletânea poética Seiva da Energia Radiante.

“Meu caro, se vir Maria
pelos caminhos da noite
pelos roteiros do dia
diga a ela que me fui”

Sobre “Rosas para a Madrugada“, lançado quando o poeta tinha 27 anos de idade, Alcy Araújo disse que “é um livro de um moço que procura os itinerários da vida, dentro de um mundo pleno de angústias e que se extasia diante do Milagre de Deus”.

“Queria te mandar um presente bem lindo
mas os anjos estacionaram lá fora
com medo de entrar em casa”

“Malabar Azul” é um livro de crônicas e o poeta dizia que escrever crônica é ofício difícil de exercer com arte. Nele deixa claro que não escrevia para as elites, mas para distrair o leitor inteligente contando suas “andanças e inconveniências, nem sempre em estado de graça.”.

“Caminhei dentro de mim mesmo, pacientemente.
Tropecei várias vezes, mas não caí, nunca.
E posso, agora, te dizer: Estou novamente livre. Liberto.
Vivo uma ânsia imensa e incrível de usar a própria liberdade!”

Há um outro livro, o Poemas de um Amor Cigano, apreendido pela Polícia Federal. Era época da ditadura. Naquele tempo um livro só poderia ser publicado após liberaçao da censura. Rebelde, Isnard não submeteu os originais à censura. Mandou imprimir o livro na gráfica do amigo conhecido por Periquito.

Tudo foi feito distante dos olhos da PF.

Convites não foram distribuídos e o lançamento não foi anunciado com antecendência.

Na véspera do lançamento, Isnard nos chamou para sua casa (nessa época estava casado com Carmozina e morava nos altos da Casa Ribamar, na rua Cândido Mendes). Atendemos ao chamado dele e fomos pra lá, eu e outros jovens poetas.

Isnard espalhou pelo chão da sala folhas de cartolina e pincéis atômicos. Deitados no chão, fazíamos  nas cartolinas o chamado para o lançamento. Cada um escrevia o que lhe vinha à cabeça ou saía do coração. Na manhã seguinte, a tarefa era espalhar os cartazes. E fizemos isso. O lançamento seria a noite.
No final da tarde a Polícia Federal invadiu a gráfica do Periquito e apreendeu todos os livros e nunca mais devolveu. Mais tarde justificou que o livro não poderia ser liberado porque num dos poemas Isnard falava de prostituição.

“Rua do Canal, ex do meretrício,
ainda tens matizes de prostituição”.

Foi por causa desse trecho que a PF censurou o livro todo.

Isnard vivia poesia, respirava poesia, pouco se dedicou à advocacia. Participou ativamente dos movimentos culturais numa época em que fazer cultura era coisa de gente que não amava o Brasil (lembram-se do “Brasil, ame-o ou deixe-o”?), coisa de subversivo que merecia estar na prisão. E, por combater com seus versos, o regime ditatorial Isnard foi várias presos na Fortaleza de São José de Macapá e no quartel do Exército.

“Meu poema é teu, irmão.
Está à tua disposição em qualquer lugar.
Meu berro de guerra não se perderá no ar!
Encontrará resposta em outras esquinas.
Subirá às praças, derrubando mitos.”

Hoje relembrando Isnard me bate uma tristeza danada ao perceber, mais uma vez, que os grandes poetas, escritores, artistas  que lutaram pela valorização da nossa cultura, que produziram desafiando todos os obstáculos, enfrentaram a ditadura e aplainaram o caminho para os que vieram depois estão relegados ao esquecimento. Não são lembrados pelos órgãos de cultura, quer estadual ou municipal, pelos professores de literatura (com raríssimas exceções) e por neo-artistas que acham que eles é que estão começando a história cultural do Amapá (santa ignorância!). A esses eu recomendo a leitura de um parecer do Conselho de Cultura, dado há cerca de 20 anos, que diz que “Isnard Lima é um marco importante na cidade, como a Catedral, a Fortaleza de São José, o Colégio Amapaense…”

“Minha lira de poeta
já não vale nada
Perdi meu sangue de esteta
no orvalho da madrugada”

Da Antologia Modernos Poetas do Amapá

Poema com destino à Noruega
Alcy Araújo

Eu ando com a cabeça baixa e dolorida
tateando na sombra dos guindastes
o corpo flácido das mulheres das docas
dentro das noites do cais.
Por que passam por mim tantos
marinheiros, navios, ondas balouçantes?
Se eu pudesse
descansaria a cabeça dolorida
num saco, num fardo, numa caixa,
depois escreveria um poema simples
e montava-o na onda com destino à Noruega.
E a moça loira
que o lesse ao sol da meia-noite
não saberia que sou negro
funo liamba
e tenho as mãos revoltadas e calosas.

Não me peças, Maria
Aluízio da Cunha

Não me peças, Maria,
um poema de amor,
profundamente musicado pelas rimas.
Não me peças, Maria,
um poema de amor.
Olha, Maria,
os jatos perturbaram
a melodia nascente
da primeira canção deste poeta.

Poema III
Arthur Neri Marinho

Não mais no quadro negro
o tempo de criança.
A escola isolada
desapareceu.
As meninas casaram
ou ficaram no mundo,
os meninos viraram homens,
uns de pés descalços,
uns de mãos vazias.
Minha mestra, onde anda?
Que problema difícil
de solucionar.

Muro
Ivo Torres

Olhos que buscam uma paisagem
no ninho árido da primeira saudade.
Mãos que se chocam
no frio vazio
de um antigo calor.
Sombras alienadas que se desesperam
à procura do corpo inaugural.
Flores à cata de perfume.
Palavras querendo uma voz.
Enquanto a vida sorri,
lá fora,
milionária de saúde.

Ciúme
Álvaro da Cunha

não sabe a flor
das varzéas da Indonésia
a frustração
do meu olfato ocidental.

Chá da tarde

Guerreira
Izaías Cunha

Se só li de ti te amei
O que serei se conviver contigo?
Teu brilho
Tua graça
Tua arte na praça
E o mais que tu tenhas.

Teu olhar de guerreira
Tua voz de roufenha
Invadiu meu espaço sem senha

E o que mais que eu quero
Se pra o mal és martelo
Que esmiuça a pedra na penha.

(Izaias José Cruz Cunha é paraense, mas há anos mora no Amapá. É carteiro em Porto Grande. Poeta dos bons, lírico, sensibilidade a flor da pele. Em 2011 publicou o livro de poemas “Destinados a mim – O carteiro é o poeta”. Um livro que leio, releio e recomendo sempre.  O poema “Guerreira” Izaias fez para mim. E isso me orgulha muito)

Criança feliz

ziraldo2Essas crianças brincam, correm, pula, estudam e fazem poesia. São os “poetinhas” do Movimento Poesia na Boca da Noite. A foto é do ano passado na Bienal Internacional do Livro de São Paulo onde eles lançaram uma coletânea de poemas, declamaram e conversaram com seus ídolos, como o Ziraldo- de quem receberam o maior carinho.