Alma desmentida – belíssima crônica de Ruben Bemerguy

Alma desmentida
Ruben Bemerguy

No tempo em que eu era criança, a Maria, empregada lá de casa, me ensinava muito. Ensinava de um tudo. O papai e a mamãe trabalhavam de manhã e a tarde e eu passava a maior parte do dia com a Maria. Até hoje sinto saudades da Maria. Maria sempre desejou meu bem.
Era ela, a Maria, quem cuidava de meus projetos de vida. Maria se dizia adivinho do futuro. Ela acreditava nisso mesmo. Eu também acreditava. Ela se comunicava, e isso era segredo da Maria, com uma luz e essa luz contava pra Maria tudo o que estava por vir.
Ouço, como hoje fosse, que a luz da Maria contou pra Maria que eu teria duas opções profissionais: ou eu seria médico ou seria jogador de futebol. Não fui, e não sou, nenhuma coisa nem outra. Acho que me desviei um pouco da rota da luz da Maria. Esse desaviso, essa minha indisciplina, desobediência mesmo, talvez seja responsável por meus muitos momentos de tristeza e minha tristeza é, seguramente, o resultado da falta cometida com a luz da Maria.
Quando eu sentia alguma dor, uma pequena luxação muscular que fosse, Maria dizia que eu havia desmentido a parte do corpo que me doía. Eu desmenti o dedo, a perna, o joelho, o calcanhar e as costas, muitas vezes. Maria ia até sua luz e depois me benzia. Ninguém poderia saber que a Maria me benzia. Maria era enfática: “se alguém souber dá azar e tu não fica bom nunca mais”. Eu tinha pavor que essa informação vazasse. Seria meu fim.
Eu cresci e virei adulto. Não fui médico e nem jogador de futebol, mas aprendi que existem desmentidos na vida que doem muito mais do que os desmentidos do dedo, da perna, do joelho, do calcanhar e das costas.
É a dor da dor, esse desmentido que eu aprendi na vida adulta.
Na última quarta-feira eu estava em Brasília, por razões profissionais. Tive uma madrugada muito dura. Fui incapaz de dormir. Teria um julgamento muito importante no Tribunal onde eu faria sustentação oral e eu não parava quieto um só minuto.
Dormia de repente e acordava de repente. Lembrei muito da Maria. Eu sempre lembro da Maria em momentos difíceis. Se a Maria me benzesse eu teria dormido, sem dúvida nenhuma. E, como sempre, ninguém saberia que a Maria havia me benzido. Nem os juízes e nem Tribunal saberiam. Só eu a Maria. Se Maria me benzesse eu venceria a causa, fosse ela árdua ou não. Mas a Maria não estava comigo em Brasília. Portanto, eu teria que desmentir a falta de sono sozinho. Mas, sem está benzido pela Maria, não consegui. Lógico.
Foi assim que na manhã da noite que eu não dormi, recebi no quarto de hotel a dor da dor. Dessas que desmentem a alma. O meu amigo querido Romero Serrano havia morrido. Até aquele momento eu não tinha sequer ideia de que meu amigo querido estava adoentado. Andei de um lado para outro no quarto que agora só agasalhava a dor da dor. A dor que me desmentiu a alma.
Procurei pela Maria, ela precisava me benzer. Se a Maria curava meu dedo, minha perna, meu joelho, o meu calcanhar e as minhas costas desmentidas, Maria curaria a dor da dor que desmentiu minha alma naquele quarto de hotel.
Não encontrei a Maria e nem a luz da Maria. Luz que lhe contava de um tudo do futuro. Zanguei com a Maria. Tive raiva da luz da Maria. Maria traiu seu juramento. Primeiro porque não fui médico e nem jogador de futebol. Depois, Maria não adivinhou o futuro de meu amigo querido para que eu pudesse protegê-lo. Não bastasse, Maria permitiu que a vida me desmentisse a alma. Além de tudo, Maria não me benzeu no mais severo desmentido da vida: o desmentido da alma.
Sigo agora sem a Maria, sem a luz da Maria e sem meu querido amigo Romero Serrano. Sem velocidade, sigo com a dor da dor e a alma desmentida. Me desculpa Romero.

  • Os sonhos não acordam o sono e nem a memória recorta a certeza da fé. Quantas Marias atravessam caminhos penosos para sobreviver e às vezes se escondem no infinito ou no além para embalar a memória ou um sonho. Ruben, o seu entusiasmo com os sonhos de Maria, sempre vão lhe fortalecer a alma, mesmo que seja num quarto de hotel. Boa tarde.

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