Laguinho do samba e do amor

Laguinho do samba e do amor*
Por João Silva

No tempo em que não havia Câmara Municipal, políticos vaidosos e assessores ruins,daqueles que não assessoram coisa alguma, o macapaense mesmo ia usando a imaginação para dizer onde morava, onde trabalhava, onde se divertia, onde ficava isso, onde ficava aquilo.
Ruas, becos, animal de estimação, praças, bairros, morros, salão de festa, mangueira, baixada, esquina, bar e até baiúca, nada escapava da língua do povo que ia dando nome a cada pedacinho de Macapá, quase sempre homenageando moradores antigos ou figuras populares…Baixada da Maria Mucura, Burro do Pitaíca, Beco do Abieiro, Mangueira do João Assis, Igarapé das Mulheres, Bar do Barrigudo, Bairro Alto, Morro do Sapo, só para lembrar.
Alcy Araújo falava muito no Laguinho do samba e do amor. Uma noite de boemia tinha que começar no Berro d´Água, bar que ficava no canto do antigo INPS, em uma das portas de entrada do bairro, digamos. O Poeta do Cais tinha uma queda pelo Laguinho, achava o nome original, o povo alegre e amigo – ainda bem que Laguinho permaneceu Laguinho, mas depois que o poeta descansou chegou a ser ameaçado pelos reformistas de araque.
Falar em gente inspirada, sambista de respeito, meu amigo Carlos Piru teve a ideia, em ano de Copa do Mundo na Africa do Sul, de reunir os menestréis da Nação Negra para lembrar a decisão governamental que transferiu famílias de negros descendentes de escravos para a área que compreende hoje o bairro moreno da cidade.
As famílias moravam em casas toscas que ficavam na parte alta da margem do Rio Amazonas, numa Macapá paupérrima, cujas águas avançavam dentro da área urbana, já que não havia muro de arrimo. Janary Nunes queria o espaço para começar a construção de uma capital moderna, como sempre dizia.
Daí é que construiu o Grupo Escolar e a Praça Barão do Rio Branco, o Forum, o Posto de Puericultura, o prédio dos Correios, a residência oficial e casas de alvenaria para hospedar membros do primeiro escalão do governo, como João Telles, secretário-geral, e Uadih Charone, chefe da Divisão de Segurança e Guarda, a qual era subordinada a lendária Banda da Guarda Territorial.
A decisão do primeiro governador do Amapá não foi tão simples assim como pode parecer. Ao descobrirem que as casas construídas por Nunes não seriam para pobres como eles, mas sim para abrigar gente graúda, os negros protestaram cantando Aonde Tu vais rapaz/Neste caminho sozinho/ Vou fazer minha morada lá nos campos do Laguinho!
Definitivo é que desde que essas famílias se juntaram para esculpir a historia e a face da Nação Negra onde permanecem até hoje, lá se foram sessenta e cinco anos muito bem lembrados pelo Carlos Piru, que nasceu laguinense, e mora no coração do Laguinho.
Difícil lembrar todo mundo, mas entre vivos, mortos, me atreveria a dizer que o Bairro é a cara do Sacaca, do Mestre Julião, do Lourenço Tavares, do Falconiery, do João de Paula, e da Tia Macica; lembra o suingue da sambista Marivanda, a alegria da poetisa Neca Machado, o grito de guerra do Macunaíma, o Bum-Bum e o jeito manso do compositor Francisco Lino, a fidalguia do artista plástico e poeta Manoel Bispo e a cidadania do João Anastácio, honestíssimo secretário de finanças da PMM por muitos anos, levando na ponta dos dedos o fusquinha branco comprado no Teixeirinha – para lembrar antigos moradores como os Ramos, os Del Castilo, os Pontes, os Farias e os Távora.
O Laguinho quer dizer também Crioulo Branco, Altair Lemos, José Domingos (Palito), João de Deus, Rosendo, Meton Jucá, Sílvio Leopoldo, Edi Prado, Euclides Moraes, Maxico, Tupinambá, Bibi, João Costa, Edvar Mota, Piturisco, Psiu, Munjoca, Chefe Humberto, Milton Correia, Biluca, Perigoso, Sabazão, Neck e Waldir; ainda poderia se chamar Piedade, a eterna musa, Fernando Canto, Grupo Pilão, Julio Pereira, Tia Lucy, Guita Preta, Venina, da Trindade, Pedro Monteiro, Ubiratan Silva, Amujacy, Darciman, Leonai Garcia, Heraldo Almeida,Vicente Cruz…Vive nos mimos do poeta Osmar Junior, na música do Ilan, nos versos do Ladislau, na generosidade de Mãe Luzia, nas lembranças do Paulino e do Pavão.
O Laguinho é a cruviana que sopra os amantes nas madrugadas do Bar do Tio Duca, o papo que rola no Banco da Amizade, a força que se renova nas “Raízes do Bolão”, no canto do Negro de Nós e do Sambarte; brilha no talento do Nena Silva refinando sons tribais que chegaram aqui nos porões dos navios negreiros.
Raíz é raiz! Todos os anos, em noite de luar ou não, os afro-descendentes de toda parte do estado se juntam no coração do Laguinho para exaltar as tradições da nossa gente no Encontro dos Tambores, na festa da decente negritude de um povo! Claro que o lugar perdeu a inocência dos banheiros públicos, dos mercadinhos, das peladas no campinho do Lélio Silva, dos salões de festa, mas fazer o quê?
Espaço invadido por supermercados, cinema, boates, postos de gasolina, escolas, comércio, praças, prédios de apartamentos, pelas mazelas da cidade grande, mas o Laguinho resiste, vai se adaptando como nicho da cultura, dos amores, da boêmia; não arrefeceu o espírito festeiro que curte o batuque, o marabaixo, que se embriaga de gengibirra em louvor ao Divino, ao carnaval e futebol; não vive sem reza e torcida para a Universidade, para o São José e São Benedito.
Foi assim, cantando, dançando, esperançando, se conscientizando que o povo transformou a UNA na fortaleza do Laguinho, onde cruzam as lutas do negro do Amapá contra o preconceito e a injustiça; lá a Nação Negra se fortalece, o negro liberto se vê, cresce, exige uma sociedade livre de todo tipo de escravidão, para lembrar que infelizmente as arcas de dinheiro de José Sarney impediram que uma negra do Amapá (Cristina Almeida) chegasse ao Senado da República.
Antes de me apaixonar pelas cores da Sociedade Esportiva e Recreativa São José, na minha juventude, havia um Laguinho encantado, um quase descampado onde havia umas mulheres passando da sede do Boêmio e do seu eterno porteiro Bolão, além do campo do América! Um Laguinho que se espreguiçava na direção das matas onde surgiram as casas do Pacoval e os bairros da Zona Norte. No sábado, a pé, pouco dinheiro no bolso, eu vinha do centro para “mariscar” uma noite de amor na festa de aparelhagem do Rally-Gally, bem na esquina da Rua General Rondon com a Avenida Nações Unidas…
Parabéns Laguinho, negro plural e democrático, altar e passarela de todos os carnavais, de todos os credos, dos pardos, dos mulatos e dos brancos citados nesta exaltação, gente que te admira como se negro fosse, caso de um “alemão” que é papa chibé, tem nome de gringo (Walker), e te ama de paixão!
Eu não nasci em ti como o sambista Carlos Piru, não desfilo na tua escola querida, não vou às domingueiras no salão de festa da Universidade, mas eu te amo tanto quanto teus poetas, teus escritores, teus compositores, quanto teus moradores mais antigos e filhos mais ilustres…

*Crônica escrita em 2010 para homenagear os 65 anos do Bairro do Laguinho

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