O poeta e a filha do poeta

O poeta e a filha do poeta
Ray Cunha

rayVi apenas quatro vezes o poeta Alcy Araújo. Certamente o vi muito mais vezes, mas não foram tão importantes quanto essas quatro. Certa vez, no Cine Territorial, ele apresentava um programa de auditório da Rádio Difusora de Macapá, e a melhor parte do programa foi a apresentação da filha do poeta, que interpretou uma gravação de Roberto Carlos. A Lolita povoou o imaginário de muitos da minha geração. Eu tinha 13 anos quando escrevi meu primeiro poema, em transe, inspirado na filha do poeta. Não me lembro mais que fim levou, mas se transmutou em perfume e, desde sempre, exala romance, aventura, cheiro de jasmim em noites sufocantes de agosto.

A ninfeta, filha do poeta, era um botão, mas já tinha voz aveludada, olhos doces, cabelos de mel e pele de marfim. O poeta Rodrigues de Souza, o Galego, espalhou que estava namorando a filha do poeta e que provaria o que andava dizendo. Disse-nos que namoravam na Praça Barão do Rio Branco, no fim da tarde. Checamos. De fato, ele se encontrava com ela no banco da praça, o que nos deixou mortificados de ciúme. Mas havia alguma coisa estranha. Eles não se beijavam, nem se abraçavam, e sequer pegavam as mãos um do outro. Ele explicou para nós que o namoro era mais intelectual do que sensual.

Alguém resolveu checar de novo e inquiriu a filha do poeta. Ela desmentiu o namoro. Meu querido amigo Galego tinha inventado tudo. Vivia o que escrevia. Como a filha do poeta saía da Rádio Difusora no fim da tarde e passava pelo banco da Praça Barão do Rio Branco, Galego ficava a postos para abordar a Lolita.

E assim passavam os dias. Naquela época, eu começara a frequentar a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário Cruz, e Alcy Araújo, da tribo das madrugadas, povoava minha imaginação. Eu devia ter, então, 14 anos. Eram os idos de 1968. Mais ou menos nessa época o pintor Olivar Cunha estava expondo na antiga Associação Comercial de Macapá quando, uma noite, Alcy Araújo apareceu, com um cigarro apagado nos lábios. Dirigiu-se a uma senhora negra, elegante, que apreciava as telas de O. Cunha.

– Nega, tu tens fogo? – perguntou-lhe, com intimidade.

– Não, senhor! – ela respondeu, sempre elegante e na mesma intimidade. Não se conheciam. Era o charme do poeta que lhe dava aquela intimidade. Alguém acendeu o cigarro dele. Ficou um pouco. Foi-se antes de terminar o cigarro.

O poeta fora retratado por R. Peixe, que o pintara com os indefectíveis óculos fundo de garrafa. Esse óleo fala. Ouvimos a voz gutural, profunda, rica em tonalidades, do poeta. Seus olhos são um mergulho a um mundo mágico. Era desse mundo que ele trazia o perfume dos seus poemas e crônicas, e também lágrimas. O poeta vivia intensamente. Curtia tudo o que a vida lhe proporcionava. E agradecia ao éter com rosas para a madrugada.

Um dia, tive a honra de trocar algumas palavras com o poeta. Ele, e um colega seu de rádio, não me lembro quem – pois estive todo o tempo hipnotizado pela cartola do poeta -, estavam no Picolé Amigo, um bar que o jornalista Hélio Pennafort frequentava, em constantes escapadelas da Rádio Educadora São José de Macapá. Creio que eu estava na companhia de Joy Edson e alguém, talvez O. Cunha, nos chamou para sentarmos à mesa do poeta. Xarda Misturada, um livrinho de poemas de Joy Edson, José Montoril e meus (poemas adolescentes), fora publicado. Era dezembro de 1971. Como dissera Isnard Lima Filho, eu tivera meu batismo de fogo e, agora, estava numa mesa de bar em companhia do poeta. As circunstância não me permitiram permanecer ali por muito tempo. Mas o curto tempo que pude me demorar à mesa curti-o como quem degusta um expresso curto. Foi mágico. Com sua voz profunda, o poeta – jornalista por sobrevivência – lidava com as palavras como um cirurgião talentoso maneja o bisturi. Um simples papo de botequim com ele era como cavalgar besouros furta-cores.

Na intimidade da mesa de trabalho, papel e caneta à mão, ou à máquina de datilografia, o poeta lidava com as palavras como quem manuseia uma fêmea e extrai dela sons que só ouvimos nos olhos das mulheres mais apaixonadas. Seus poemas e poemas em prosa são um jorro de sensações. Por isso, querida, teu pai está vivo, pois ele, quando o lemos, faz nosso coração pulsar rapidamente.

Há mais mistério entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia, disse Shakespeare. É verdade. Nós, artistas – e tu sabes disso, querida -, nos comunicamos com os espíritos. Para nós, não há mortos, nem tempo cronológico. Só há vida. Por isso, encerro estas memórias, querida Alcinéa, caminhando no arco-íris do teu poema Entardecer.

Te prometo, Poeta,
que no próximo entardecer
vou pintar um arco-íris
para deixar tua tardezinha
menos triste.

Hás de sentir que o entardecer
pode ser tão belo
quanto o alvorecer
que ilumina teu rosto
e abre sorrisos no teu olhar

Presta atenção, Poeta,
essa hora que entristece a tua alma
é o momento solene
no qual Deus apaga o sol
para acender a lua e as estrelas

Principalmente aquela estrela
que tanto te encanta
quando estás
tecendo sonhos
e versos na madrugada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *