Andorinhas de porcelana

Andorinhas de Porcelana
Conto de Fernando Canto*

Em casa havia muitos bibelôs nas paredes da sala. Eram gatinhos e cãezinhos de porcelana que meu pai trazia sabe lá de onde e pedia para minha mãe enfeitar a casa, pois era moda em casa de rico, dizia ele, sempre sorrindo. Minha mãe procurava os melhores lugares das paredes. Eu gostava mais das três andorinhas azuis e brancas de asas abertas e olhos faiscantes que se sobressaíam quando acendia a comprida lâmpada fluorescente da sala. Eram de três tamanhos diferentes e ficavam em posição vertical, como se realmente voassem. E eu acreditava nisso, porque às vezes, antes de escurecer, jacintas e borboletas noturnas entravam pela janela e se danavam a batucar o vidro da lâmpada incitando as andorinhas a ganhar vida e voar circulando no vazio do ambiente. Elas voltavam a seus lugares na parede quando minha irmã de criação surgia com uma vassoura e com os olhos arregalados para expulsar os insetos, alegando que traziam má sorte.

Lá fora, nos meus passeios dominicais, me diziam que as tesourinhas eram uma espécie de andorinhas que voavam perto das águas do trapiche da cidade sempre em círculos, planando sob o sol da tarde com seus fraques preto e branco. Porém, certa vez vi uma nuvem estranha no céu límpido do equador: era um bando de andorinhas a bailar confronte ao poente em coreografias rápidas, imitando formas geométricas, sombreando parte do bairro central. Bailavam, bailavam e depois, sob a batuta de um minúsculo maestro voador se acomodavam nas árvores e fios elétricos da beira do rio conversando entre elas, como se comentassem o sucesso desse show da natureza. Era um lindo espetáculo. Mas eu não sabia de onde vinham, pensei que eram da floresta do outro lado do rio. E ninguém me explicava sua origem. Éramos todos uns ignorantes ecológicos.

As danças tinham muita beleza. Dizer de formas geométricas era pouco para descrevê-las no céu crepuscular do verão. Mas a prefeitura e alguns comerciantes que viam nelas uma atração turística quando chegaram, passaram a desprezá-las devido a quantidade de esterco que produziam pelo comércio e sob as mangueiras centenárias. De tudo fizeram para espantá-las para que fossem embora: soltavam foguetes, eletrificaram as árvores e as assustavam com barulhos de trios elétricos durante a madrugada. Havia, porém, a resistência dos amigos dos passarinhos e dos poetas. Eles compravam centenas de penicos de plásticos e os arrumavam sob os fios elétricos e mangueiras na vã tentativa de aplacar a fúria dos comerciantes e da prefeitura, que mentiam, dizendo no rádio e na TV que a porcaria das andorinhas estava prejudicando as vendas do comércio. Iludiam a opinião pública, embora os poetas, músicos e trupes de artistas circenses percorressem a área todos os dias desde o amanhecer ao crepúsculo, espalhando alegria para a população circulante que por ali andava livre porque nenhum carro estacionava nas redondezas.

Mesmo com os protestos as andorinhas foram se reduzindo e não se viam mais os bailados sombreando o rio e a frente da cidade. Diminuíram em quantidade e em encanto, até que a última delas pegou o rumo do rio e desapareceu entre pequenas nuvens que vinham se avolumando desde o oceano. Já se sentia a mudança do clima. O tempo de chuva se aproximava.

Certo ano, antes de deixar a cidade para estudar fora, pedi à minha mãe o trio de andorinhas de porcelana. Elas ficaram por um bom tempo comigo enfeitando minha parede, até que um dia cheguei em casa e as vi saindo pela janela para riscar o céu em desenhos estranhos, mas belos como os que marcaram minha adolescência. Passei dias e noites esperando a volta delas olhando fixamente através da vidraça. Desde então minha vida é pautada em um constante regime de espera. E eu espero como Jó. Como um monge tibetano leio o tempo que cai pelas formas das nuvens, com um olho no horizonte e outro no meu interior, na sensação esquisita da volta do festivo bando migratório que agora parece vir do Norte, atravessando o Atlântico em busca do calor do sol. Espero, sim, assim como todos os poetas e artistas que também sonham em enfeitar nosso planeta com seus inquebráveis voos de andorinhas de porcelana.

*Fernando Canto é sociólogo, mestre em Desenvolvimento Regional doutor em Sociologia, escritor, músico e presidente da Academia Amapaense de Letras

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