Falar de música. Falar de poesia

Li no site  Educação Pública , achei interessante, gostei, copiei e colei

“Falar de música. Falar de poesia
Raquel Menezes

Mesa se chama mesa, mesmo se usada como cadeira, ou melhor, assento. Assim como um tanque de lavar roupa continua sendo chamado tanque de lavar roupa, mesmo que funcione como uma pia de lavar louça. Sei que a analogia pode parecer estranha, mas sempre me pergunto: por que uma letra de música precisa ser chamada de poema para tornar-se meritória? Não discuto as semelhanças vistas de imediato no que diz respeito à forma, mas é inegável que o espaço de funcionamento de cada uma é diferente.

Uma letra de música é composta para ser “encaixada” em uma melodia. Por isso, uma letra de música só possui sentido (seja lá o que isso significar) se acompanha do canto, da música, da melodia. Sendo assim, estou de mão dada com Marcelo Gargaglione e Luis Maffei, músicos e compositores do CD na mesma situação de blake (2005), que em seu site da Internet afirmam:

    Letras veem-se enquanto se ouve sua música, ou na medida em que se ouve sua música, passo a passo se cantam as palavras. Letras, logo, não se leem, pois a música cantada faz de seu texto algo residente, algo sem autonomia. Pedimos ao ouvinte, portanto, que ouvinte seja, que olhe estas letras na audição desta música, e só quando da audição desta música, nunca antes,  talvez  retrospectivamente, ou depois, bem depois, mas nunca antes.

A propósito disso, vale levantar outro tema de discussão: a diferença entre poesia e poemas. Efetivamente, existe distinção entre poesia e poema, pois este, segundo vários autores, é uma obra em verso com características poéticas. E aquela poderia ser identificada com a própria arte, a poiesis, dando sentido mais amplo ao termo grego. Ou seja, enquanto o poema é um objeto literário com existência material concreta, a poesia tem caráter imaterial e transcendente.

De volta à discussão anterior, o nódulo da questão parece estar em algo talvez genuíno e quase certamente ingênuo: ao tratar uma letra de música como sendo um poema, o agente está a elogiá-la, como se o fato de uma letra de música ser um poema a tornasse mais brilhante e relevante para o mundo, visto que entraria para o nicho da arte literária. Do mesmo modo, chamar um compositor de poeta é exaltá-lo. Pergunto: ser poeta aos olhos do mundo é mais importante do que ser compositor? Se sim, por que os professores adotam letras de música e não poemas? Talvez por que elas teriam atingido estatuto de poemas?

Muitos podem argumentar que um poema pode ser musicado. É verdade, pode. Entretanto, quando isso ocorre deixa de ser um poema e torna-se uma canção. Afinal, um poema “funciona” autonomamente numa folha de papel, mas, quando passa a ter uma melodia que o acompanhe, ele, em certa medida, torna-se dependente dela. Do mesmo modo que um romance, se for filmado, como tantos já foram, deixa de ser um romance e passa a ser um filme. Outro argumento que costuma vir à tona como justificativa da aproximação entre poemas e letras de música é a época trovadoresca; entretanto, é necessário pensar que nosso objeto de estudo como matéria literária que corresponde à lírica medieval foi registrado em cancioneiros, vocábulo que, afinal, possui o mesmo radical que canção.

Ao pensar na relação letra de música vs poema, acabo por lembrar que, há pouco mais de um ano, estava eu naII Feira do Livro de Sergipe, onde ocorreu uma mesa-redonda intitulada “Liras e Letras”, com a participação de professores universitários, de professores de ensino médio, de poetas e de músicos. O debate girava em torno não só da diferença entre esses dois gêneros mas também entre o uso de letras de música em sala de aula ao invés de poemas. Isso, além de desprestigiar autores da nossa literatura como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, distancia a possibilidade de um aluno do segundo segmento do ensino fundamental, antigo ginásio, ou mesmo do ensino médio, entrar em contato com a literatura e a poesia.

Boa parte dos professores de Literatura (das escolas secundaristas e do ensino médio) poderá afirmar que o uso de letras de música no lugar de poemas é feito com o intuito de despertar o interesse dos alunos nas aulas, pois a canção, por fazer parte do cotidiano dos alunos, seria mais acessível para o aluno, e, por isso, mais atraente para seus olhos e ouvidos. Entretanto, de volta à analogia cinematográfica, esses mesmos professores não sugerirão aos seus alunos assistirem a minisséries e/ou filmes ao invés de lerem o romance.

Em suma, faz-se importante ressaltar que, por mais que a letra de música e a poesia (no sentido mais restrito) se encontrem, estando às vezes uma citada na outra – diga-se de passagem –, ou então que poetas sejam compositores e vice-versa, esses dois gêneros artísticos são diferentes. Por outro lado, apesar das diferenças, ambos são expressões artísticas, o que me permite dizer que não é necessário que uma letra de música seja um poema para ter qualidade. Menos ainda que um compositor precise ser chamado de poeta para ser um artista. Quem bem entendeu isso foi Vinícius de Moraes, que compunha letras de música e não as publicava como sendo poemas nem o contrário.”

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