Um conto de Joel Elias

O Menino e o Rio
Joel Elias

joeleliasO dia nasceu cinza naquela manhã de chuva. Quem amanheceu na orla se espremia nos bares da Beira-Rio para escapar dos pingos da chuva. Eram baldes de rios que pingavam sobre a cidade. Naquela manhã, Sol não apareceu no horizonte para anunciar aquelas estiagens costumeiras nos dias de Verão na minha querida Macapá, a capital do “Meio do Mundo”, que fica ali na esquina do rio Amazonas com a Linha do Equador.

Mas aquele era um dia atípico, pois era pleno Verão. E eu, notívago, como um bom etilocrata, estava amanhecido em um dos bares da orla acompanhado do violão e do Obdias, amigo de etilocracia, flautista de mão cheia. Era regra amanhecermos ou na Beira-Rio ou no Araxá — balneário que fica na frente da cidade — numa rodada de cerveja com os amigos. Tocar chorinho, esse gênero musical brasileiro contagiante, era nossa predileção.

— Toca o “Camundongo” aí! Pediam uns.

— Não, manda “Pedacinhos do Céu” ou “Brasileirinho”! Solicitavam outros.

— Zé, desce mais uma aqui pra nossa dupla! Se antecipavam os que não queriam que fôssemos embora depois de mais uma noite de farra.

E assim a gente varava a madrugada esperando o dia chegar para ver o Amazonas parir o Sol. Era uma paisagem única, de um horizonte menstruado pelos raios do Sol que invadiriam a cidade. Era o prenúncio de um dia muito quente lá para as bandas da latitude zero do Equador.

Aquela chuva era a diferença naquela manhã. Não era para ela estar ali, tomando conta da paisagem. E eu, absorto olhando aquele dia cinza que nascia, viajei nas gotículas difusas da chuva que embaçavam a visão das canaranas e mururés que, de bubuia, bailavam nas ondas revoltas do majestoso rio, o rio da minha infância.

Talvez por isso aquela chuva traziam à tona as reminiscências que estavam adormecidas dentro de mim. E veio à memória meu tempo de criança quando saía correndo pelo quintal toda vez que o Amazonas soprava aqueles ventos fortes acompanhados de trovões. Eles invadiam a casa como a me avisar que estavam trazendo chuvas torrenciais.

Elas eram minhas amigas. Costumava sair de mãos dadas com elas pelo quintal da casa. Eu que sempre morei na ilharga do rio, lá no bairro do Trem. Sempre me senti um privilegiado por minha casa ficar próxima ao rio, mesmo numa área urbana da cidade. Ele, traquinas, sempre me avisava quando as chuvas estavam chegando. Ele manda sempre o vento na frente.

Criança que eu era, me deleitava com cada gota de água que caía do céu para abraçar meu corpo de menino. Eu corria sem parar pelo quintal, não querendo que a chuva parasse. Era um momento mágico, só meu. Na minha imaginação, o rio fazia aquilo só para me agradar, para que eu não esquecesse dele depois que crescesse. Assim, eu me consumia naqueles dias de chuva. Naqueles dias juvenis, eu nem ligava para os reclames de minha mãe que, preocupada, não parava de gritar.

— Minino sai dessa chuva! Tu vai ficar gripado e cum febre seu muleque!

— Tu qué ficá duente, é? Nóis não tem dinheiro pra comprá remédio!

E eu lá queria saber de gripe, de febre, de doença! O que eu queria era sentir o meu corpo ser vestido por aquela água que vinha do céu mandada pelo meu rio. Queria era ouvir aquela melodia fria que o vento sussurrava nos meus ouvidos, me encantando com aquele canto que parecia de uma sereia.

Raios? Trovão? Relâmpagos? Eles nunca me assustaram. Eram também meus amigos junto com a chuva e o vento que o rio mandava para brincar comigo. E podia ser de manhã ou à tarde. Era só chegar o inverno para eu ficar à espreita na porta ou na janela esperando o aviso para correr até o quintal em mais uma brincadeira molhada. Tudo isso me vinha à memória ao contemplar aquela manhã de dezembro acinzentada pelo tempo. Mas aquela era diferente. Ela vinha como para se despedir daquela criança que não existia mais em mim. Mas, contrariando Heráclito, o meu rio nunca mudou. Ele é o mesmo que sempre desaguou no meu coração. Ele não muda.

Eu que mudei ao crescer e perder a inocência da infância. Longe da minha terra, o rio que me acompanha, hoje, é outro. Mas não com tanta intimidade. Este é mais turvo e violento. Quando irado, ele avança e afoga a cidade num protesto silencioso e macabro contra as atrocidades que sofre dos homens.

  • Chorei de saudade de Macapá, ao ler esse belo conto do meu love Joel Elias, ele tem inúmeras perola como essa, e não gosta de mostrar, eu daqui fiquei enchendo o saco para ele publicar e foi uma grata surpresa, vê -lo publicado aqui… Valeu Alcinéa!

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