Uma crônica de Paulo Rodarte

Quero de volta
Paulo Rodarte*

Alcinéa Cavalcante começou e terminou assim: “Quero de volta a paisagem antiga da minha rua, com suas casinhas brancas, cobertas de palha, gamela no jirau, fogão de barro na cozinha e passarinhos no quintal. Quero de volta aquela paisagem antiga, com a casa avarandada do Mané Pedro e a casa sem pátio da Maria Banha. Os meninos de pés descalços jogando bola na rua sem asfalto e as meninas de sapatinho branco brincando de roda. Quero de volta a paisagem antiga da minha rua com minha casa de venezianas cor-de-rosa, minha mãe no alpendre bordando flores nos lençóis, e minha avó rezando o terço. Quero de volta a paisagem antiga da minha rua só pra sonhar de novo os sonhos que sonhei na infância cheia de fadas, princesas, cirandas e varinhas de condão”.

Quando passei os olhos pelo livro lindo, nomeado Paisagem Antiga, com que ímpeto o folheei!

Eram dezenas de inspirados versos, num e noutro fui viajando, andando lento, correndo apressado, até me deparar nesse que abre meu texto.

Quantas e quantas vezes quis de volta o meu passado. Quantas e quantas vezes, perdido no presente, indagando a mim mesmo, onde estaria eu?, de calças curtas, cabelos fartos, nos idos anos de um mil e pouco mais de novecentos e cinquenta, vindo de pouco de Boa Esperança, esperançoso de ficar como sou?

Quero de volta aquela calça escura. Feita com mimo por uma costureira caprichosa, que o tempo levou.

Quero de volta a bicicletinha de rodinha de aro niquelado que se transformou nessa bike forte que atura as minhas pedaladas vigorosas.

Quero de volta aquele calçãozinho até os joelhos que ficou reduzido a uma sunga que encurtou.

Quero de volta as melenas topetudas que o tempo cuidou de deixar cair, nem o travesseiro segurou.

Quero tanto de volta os anos que sumiram na folhinha do calendário, que hoje mudou de forma, e, assentado no tampo da mesa perto de onde escrevo diz: “Como o tempo mudou”.

Quero de novo a companhia de tanta gente boa, que não por ter morrido deixou a bondade escondida na prateleira do olvido.

Quero de volta o patinete de ferro batido, que nem existe mais o modelo, foi esquecido na prancheta do skate que o moleque atrevido faz malabarismos nas rampas de raros aclives e descidas íngremes.

Quero de volta o colo que minha mãe, sua mãe, me ofereciam com tanto carinho, eu em seus colos me recostava, sonhava com passarinhos, soltava-os da gaiola de arame azul, os deixava voar, apenas em sonhos coloridos.

Quero de volta os anos passados. Não os desenganos sofridos.

Quero de retorno as idas e vindas da missa das seis da tarde dos domingos, que, em outros janeiros se tornaram domingos de agora. Sem contudo o mesmo sabor de doce de saudade vencida.

Quero de volta as pernas da primeira namoradinha, que, se não foi a primeira, tornou-se a titular do meio de campo de um time que faz parte das melhores recordações que não tive.

Quero de volta a companhia dos meus avôs. Um deles, sério, compenetrado, era ministro da eucaristia. Já o outro, por parte de mãe, era tabelião de um cartório onde está registrado, pela linda caligrafia da minha mãe, a data do meu nascimento.

Quero de volta a volta que dei, quando, na mesma bicicletinha sem as rodinhas, de tantas voltas que dei, acabei ficando tonto, e vomitei, goela afora, as reminiscências que tanto me fazem bem.

Quero de volta, agradeço à poeta maiúscula Alcinéa Cavalcante, que apenas conheci pelo lindo livro miúdo que se debruça a minha frente, tudo dito antes, muito mais.

Só não quero de volta a inspiração que não tinha. Naqueles idos anos que o vento assoprou, e não consegue trazer de volta, jamais.

*Paulo Rodarte é conceituado médico e escritor com mais de dez livros publicados. É membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Para saber mais sobre ele, seu trabalho como médico e escritor e adquirir suas obras  clique aqui

  • Fico feliz que outros artistas te descubram, Embaixadora. Assim, nosso Amapá deixa de ser notícia triste.

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