Para não esquecer R.Peixe

Doce rebelde
João Silva*
Enfim presto minha homenagem a Raimundo Braga de Almeida, o R. Peixe, decano dos artistas plásticos do Amapá, que saiu de cena como grande guerreiro, inspirando depoimentos apaixonados sobre ele e sua obra traduzida em mais de meio século de carreira, ao longo do qual aprofundou o entendimento sobre sua arte.
Fiel às suas convicções, guerreiro, polêmico, irreverente, sim, e daí? Na sua juventude – e mesmo maduro, a inquietação saltava aos olhos como traço da sua personalidade. Em plena
Macapá dos anos 60 desafiou o Laguinho e o seu passista histórico, o Falconery, quando o Laguinho era reduto do samba no meio do mundo.
Provou no asfalto (e no pé!) que “samba nasce em qualquer lugar, que samba não é privilégio de ninguém”. Mesmíssimo Peixe que botou jaca na Avenida FAB para “homenagear” a mediocridade instalada no corpo de jurados do desfile das escolas de samba.
Peixe operou uma geral na face do carnaval, retocou para sempre a imagem opaca, sem brilho e criatividade que vinha desde o primeiro desfile das escolas de samba do Amapá com o enredo “Lendas e Mitos da Amazônia”, criado por ele para o desfile de l969, traçando um divisor de águas em se tratando do carnaval das escolas de samba no Amapá.
Eu mesmo experimentei essa emoção saindo na escola entre dezenas de botos, sacis e cobra grande serpenteando a passarela sob delírio do grande público; foi ali que o povo viu adereços de mão, fantasias sofisticadas e grandes carros alegóricos que propiciaram outro status ao nosso carnaval.
Para feito de registro, é bom dizer que antes desses avanços, Peixe brincou nos cordões, saiu de máscara nas batalhas de confete do Macapá Hotel, do Serrano, e Barrigudo; mais adiante ajudou a fundar pelo menos duas grandes escolas de samba do nosso carnaval: Piratas da Batucada e Embaixada de Samba Cidade de Macapá.
Dentre os vários R. Peixe que conheci, o que cursou a Escola de Belas Artes me impressionava mais que os outros, todavia não podemos esquecer o caboclo boêmio e dançarino, o atleta, o professor, todos também apreciados pelo grande círculo de amizade.
No futebol, foi goleiro apenas razoável do Trem, São José e Juventus; no salão de festa, não: foi rei, grande pé de valsa que sabia cortejar uma dama! Gostava tanto que construiu o “Somarisco”, restaurante e dançará que transformou no “point” da boêmia de Macapá no final da Hamilton Silva, no meado da década 70.
Mas a praia do R. Peixe foi mesmo a das artes plásticas, do impressionismo, como se poderia imaginar, sendo ele filho dos rios, dos igarapés, das matas do Pará. Estimulante, neste particular, vê-lo unido ao amigo e poeta Alcy Araújo, no primeiro governo Barcellos, em “guerra santa” pela construção da Escola de Arte “Cândido Portinari”, uma das suas paixões…
Deu certo, mas sendo artista de vanguarda Raimundo Braga Peixe queria mais: então “gerou” outro filho, a escola de pintura “Fantástica”, com suas linhas curvas e cores fortes da natureza nos trópicos, mas não parou por aí.
Ainda pode se atribuir à inquietude do Peixe a idéia do Movimento Artístico Popular-Moap, criado para comercializar na praça pública a produção cultural do Amapá e estimular o surgimento de novos talentos nas artes plásticas, no teatro, na literatura, na escultura, na música, no artesanato e na poesia.
Assim que aqui chegou, nos primórdios do Território do Amapá, proveniente de São Caetano de Odivelas, onde nasceu no dia 10 de julho de 1931, foi morar no Bairro Alto; ali instalou seu primeiro ateliê; apaixonou-se pela cidade e criou uma das suas obras mais importante, “O Fumante”.
Chamado “Peixe”, apelido herdado do pai, o artista viu Macapá provinciana, caboclinha mirrada trajando o “vestido de chita” dos versos da poetisa e mestra Aracy; então, decide traduzir em óleo sobre tela, em quadros e painéis todo seu encantamento por nós, pela nossa mistura de raça, pelo lugar bucólico e o seu casario primitivo sempre de janelas abertas.
Assim, transportou para seus quadros paisagens e gente do Amapá que sua arte preciosa fez viajar pelo Brasil e o mundo! Retratou Mãe Luzia, Julião Ramos, Pires da Costa, A Banda, o marabaixo, a Doca (entulhada de canoas à vela), o Marco Zero do Equador, a Fortaleza, a Igreja, o arraial de São José, a Festa de São Tiago, a floresta, o rio Amazonas, a pororoca e a Baixada da “Maria Mucura”.
Embora tenha ido para não mais voltar, o acervo gerado pelo talento prodigioso de R. Peixe, em sua grande parte, ficou nas mãos do poder público, portanto, imagina-se, preservado como patrimônio artístico e cultural do povo amapaense.
São obras que traduzem toda dedicação, o trabalho intelectual do artista, o seu interesse pelo registro histórico e a preservação da memória. Cuidar desse legado precioso é imortalizar o olhar de R. Peixe sobre nós e sua gratidão à terra que o acolheu na vida e na morte.
*João Silva é jornalista e cronista

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