87 anos do nascimento do poeta Alcy Araújo

MINHA POESIA
Alcy Araújo

A minha poesia, senhor, é a poesia desmembrada
dos homens que olharam o mundo
pela primeira vez;
dos homens que ouviram o rumor do mundo pela primeira vez.
É a poesia das mãos sem trato
na ânsia do progresso.
Ídolos, crenças, tabus, por que?
Se os homens choram suor na construção do mundo
e bocas se comprimem em massa
clamando pelo pão?
A minha poesia tem o ritmo gritante da sinfonia dos porões e dos guindastes,
do grito do estivador vitimado
sob a lingada que se desprendeu,
do desespero sem nome
da prostituta pobre e mãe, do suor meloso da gafieira
do meu bairro sem bangalôs
onde todo mundo diz nomes feios,
bebe cachaça, briga e ama
sem fiscal de salão. – Já viu, senhor, os peitos amolecidos
da empregada da fábrica
que gosta do soldado da polícia? Pois aqueles seios amamentaram
a caboclinha suja e descalça
que vai com a cuia de açaí
no meio da rua poeirenta.

Cuidado, senhor, para o seu automóvel
não atropelar a menina!…


Alcy Araújo – o  poeta do cais, dos anjos, das borboletas, do jardim clonal, dos marinheiros e de tudo que merece ser amado – nasceu no distrito de Peixe Boi (PA), no dia 7 de janeiro de 1924.
Criança ainda transferiu-se com a família para Belém, vivendo depois em pequenas cidades da região norte para onde seu pai, Nicolau Cavalcante, era destacado para implantar os serviços de Correios e Telégrafos.
De retorno a Belém, Alcy cursou a Escola Industrial tornando-se mestre marceneiro e de outras especialidades relacionados ao ofício, que exerceu por algum tempo.

Na redação do jornal “Folha do Norte”, em Belém

No entanto o talento literário, a vocação pelo jornalismo e um precoce desenvolvimento intelectual levaram Alcy a trocar a bancada da oficina pela escrivaninha do jornal, em 1941, com 17 anos de idade. Por mais de uma década trabalhou nos principais jornais do Pará como repórter,articulista,  redator e chefe de reportagem, entre eles a Folha do Norte, O Estado do Pará e O Liberal.
Veio para o Amapá na década de 50, trazido pelo poeta e amigo Álvaro da Cunha. Aqui exerceu importantes cargos, assessorou vários governadores, dirigiu jornais, lutou pela emancipação política e administrativa desta região, combateu a exploração dos recursos naturais, fez importantes trabalhos de pesquisa sobre rizicultura, erosão dos solos, pesca no litoral, entre outros. Contudo, acredito que a maior contribuição dele ao Amapá deve ser aferida pela sua imensa e constante participação na vida intelectual e artística – tanto através da imprensa, como nos demais instrumentos e instâncias da cultura amapaense.
Amante das artes, foi ele que lutou, ao lado de R.Peixe, pela criação da Escola de Artes Cândido Portinari e do Teatro das Bacabeiras.

“Aqui estão as minhas mãos, falando palavras feitas de pássaros e de ausências e cantando canções sonhadas em segredo.” (Alcy Araújo)

Junto com Álvaro da Cunha, Ivo Torres, Arthur Nery Marinho e Aluízio da Cunha, movimentou o segmento cultural amapaense criando clubes de arte, promovendo noites lítero-musicais, apoiando artistas plásticos,  fundando e dirigindo revistas culturais difundindo a cultura do Amapá por este Brasilsão, entre mais tantas coisas que deixariam imenso este texto se fossem listadas aqui.

“Ele foi um dos mais macapaenses de todos os paraenses que ajudaram a desenvolver o Amapá”, escreveu certa vez o jornalista Hélio Penafort.

Foi editor, noticiarista, diretor, colunista, articulista e editorialista de vários jornais amapaenses. Jornalista emérito, arguto analista dos problemas dos problemas sócio-econômicos do Amapá, foi na poesia que Alcy Araújo universalizou mais profundamente seu talento. É o único poeta do Norte a figurar na “Grande Enciclopédia Brasileira Portuguesa”, editada em Lisboa. Está também na enciclopédia “Brasil e Brasileiros de Hoje” e em tantas outras obras como “Introdução à Literatura”, “Poesia do Grão Pará”, Antologia Internacional Del Secchi, Coletânea Amapaense de Poesia e Crônica, Antologia Modernos Poetas do Amapá e coletânea “Contistas do Meio do Mundo”.
Em 1965, pela Editora Rumo, foi lançado seu primeiro livro: Autogeografia (poemas e crônicas). Em 1983, comemorando os 40 anos de Alcy dedicados à poesia,  a Editora do MEC lançou no Rio de Janeiro seu livro “Poemas do Homem do Cais” e em 1997 foi lançado pela Associação Amapaense de Escritores o livro “Jardim Clonal”.

Numa noite de sábado, 29 de abril de 1989, Alcy Araújo partiu para o cais definitivo levado pelas mãos do seu Anjo da Guarda. Partiu deixando inéditos, prontinhos para publicação, os livros “Ave Ternura”, “Histórias Tranquilas”, “Cartas pro Anjo”, “Mundo Partido”, “Terra Molhada”, “Tempo de Esperança”, “Poemas pro Anjo do Natal”, entre outros, que a família tem esperança de um dia vê-los publicados e sonha com a publicação da “Poesia Completa”, deste que foi o maior poeta do Amapá.
Alcy Araújo Cavalcante, meu pai, tinha a alma pura,  de criança que acredita no Natal e na Esperança e assim cheio de esperança colocou sua poesia a favor da luta por um sociedade melhor, livre das desigualdades e das injustiças.

Participação
Alcy Araújo

Estou convosco.
Participo dos vossos anseios coletivos.
Vim unir meu grito de protesto
ao suor dos que suaram
nos campos e nas fábricas.

Aqui estou
para juntar minha boca
às vossas bocas no clamor pelo pão
sancionar com este rumor que vai crescendo
a petição de liberdade.

Estou convosco.
Para unir meu sangue ao sangue
dos que tombaram
na luta contra a fome e a injustiça
foram vilipendiados em sua glória
de mártires
de heróis.

Vim de longe
percorrendo desesperos.
Das docas agitadas de Hamburgo
das plantações de banana da Guatemala
dos seringais quentes do Haiti.
Vim do cais angustiado de Belém
dos poços de petróleo do Kuwait
das minas de salitre do Chile
Passei fome nos arrozais da China
nos canaviais de Cuba
entre as vacas sagradas da Índia
ouvindo música de jazz no Harlem.
Afundei nas geladas estepes russas.
morri ontem no Canal da Mancha
e hoje no de Suez.
Tombei nas margens do Reno
e nas areias do Saara
lutando pela vossa liberdade
pelo vosso direito de dizer
e de amar.

Estou convosco.
Voluntariamente aumento o efetivo
dos que não se conformam
em viver de joelhos
morrendo sufocando lágrimas
nas frentes de batalha
nas prisões
para dar à criança recém-parida
o riso negado aos vossos pais
o pão que falta em vossas mesas.

Meu filho
e o filho do meu filho
saberão que o meu poema não se omitiu
quando vossas vozes fenderem o silêncio
e ecoarem inutilmente nos ouvidos de Deus.

(Do livro Poemas do Homem do Cais, do poeta Alcy Araújo Cavalcante,lançado no Rio de Janeiro em 1983)

Alcy não se separava da sua máquina de escrever – uma olivetti portátil – nem quando precisava ficar internado para cuidar da saúde. Na foto, o poeta internado no Hospital São Camilo, recebendo a visita do padre Jorge Basile e escrevendo

POR ISTO HOUVE SILÊNCIO
Alcy Araújo

O homem havia sido feito assim: bom, humilde, terno para viver dentro de um mundo cheio de revolta. E o mundo foi angustiando o homem, rasurando a sua ternura, arranhando a sua bondade. Por isto que o homem, vítima de muitos desencantos, começou a fazer o que não devia, a andar de cabelos ao vento, telefonar, freqüentar o cais.

A cada sofrimento, o homem fazia mais uma tolice e magoava o seu Anjo. E o Anjo, pobre Anjo aflito, chorava lágrimas imensas, que cresciam em seus olhos como pássaros de luz.

Daí então o Anjo não pôde ter mais um minuto de distração. Mal ele se distraía e lá ia o homem por aí, pés descalços, braços nus em direção ao seu desconhecido, pisando espinhos que nasciam das rosas vermelhas.

Mesmo assim o homem sabia que não estava só, como naquele começo de tarde em que teve vontade de comprar uma bicicleta azul e um cavaquinho. Sabia também que não estava só como naquele poema em que o amor morria por falta de azul e os pássaros brancos deixaram de nascer.

E por ser assim o homem falou ao Anjo que a felicidade existia. Apenas estava além das lágrimas contemporâneas, colocada depois da dor, na continuidade da espera, na renovação de todas as esperanças.

E falou isto quando as estrelas gotejavam silêncio dentro da noite. A música se enovelava no coração e o poema era uma oração nascente.

Então o Anjo pegou o homem pela mão e caminharam em direção ao mar. Foi quando Deus sorriu e achou que o que tinha feito era bom. E descansou, porque era chegado o sétimo dia e na distância Anjo e homem se integravam no azul do mar. Por isto houve um grande silêncio no coração das coisas…

  • Certa vez, num concurso de poesia em Macapa para alunos do ginasial, fiz uma pequena poesia sem nenhuma pretensao, mais ou menos assim:

    “O cravo brigou com a rosa
    e a Rosa brigou com o Cravo.
    Mas porque tanto orgulho,
    se hoje eh dia dos namorados.

    Um dos membros da mesa julgadora era o nosso querido Alcir Araujo, que a aprovou com meritos. Fiquei super orgulhoso (e pasmo). Quanta sensibilidade! So ele poderia ver ali algo poetico no que escrevi. Inesquecivel Alcir.

  • Nossa, como é lindo a forma de vc se expressar, mostrar(fotos) de seu pai, nao o conheci, somente alguns poemas, mas ouço e procuro saber…precisamos de outro poeta Alcy…É emocionante;
    Parabens por TUDO!aprecio vc!fique cm Deus!

  • Vejam a que ponto chega a ignorância. Nasci num berço altamente repressor, onde tudo era pecado. Para vocês terem uma ideia, só depois de muitos anos constatei que a gata não tinha filhos pela boca, como me ensinaram. E dentro desta educação ortodoxa, aprendi que os vícios eram coisas do diabo (com “d” minúsculo proposital). Fumar, por exemplo, dentro do meu contexto familiar, era coisa do demônio. Aí passei a notar o quanto o padre Jorge fumava e passei a não vê-lo com bons olhos porque achava que ele, por ser padre, foi enviado pelo capeta para convencer pessoas a fumar e levá-las para o inferno. Hoje me dou conta de que nem o diabo nem o inferno existem. Mesmo assim, acho que não ficava bem para um padre fumar daquele jeito.

  • Gosto de ver o tratamento especial a pessoas tão queridas, e você é um exemplo , A Professora Delzuite e o Poeta Alcy permanecem vivos.

  • É emocionante o carinho com que você fala do seu pai. Também tinha admiração e um carinho muito grande pelo meu, pela sua honestidade, liderança e bondade. Infelizmente seu convívio foi cortado de forma precoce, quando eu tinha 17 anos.

  • Os poemas de Alcy Araújo são desejos de liberdade. São profundos e belos, falam da dor, da dureza da vida de forma envolvente. Penso que o novo Secretário de Cultura terá o prazer de poder contribuir com a publicação das obras desse grande mestre, que de tão belas devem ser patrimônio público.

  • O Amapá precisa de outros homens marcantes como Alcy Araújo e Basille.
    Penso que a melhor maneira que para homenagearmos perenemente Alcy e Basille é garantindo e possibiitando educação de qualidade às novas gerações. Alcy e Basille são “imortais”.

  • Luiz Nery diz:Tive a felicidade de contactar com o poeta Alcy Araújo,foi quando a Rádio Educadora,voltou sob o comando do Zelito,o radialista José Maria Coelho,apresentava o programa sabado quente e tinha uma sequência de nome analisando um sucesso,eu era responsável para fazer as gravações com o Alcy,Antonio Munhoz,Fernando Medeiros.Aprendi muito!

  • Justa homenagem, primeiramente pelo orgulho de ser apenas filha.Pelo valor dos gestos e palavras do grande homem que foi. Adorei conhecer um pouco mais da pessoa que fez história na região amazonida. Orgulho de conhecer e viver ao lado do poeta é consequência da tua homenagem ao seu PAI.
    Linda homenagem.

  • Existem pessoas,e o POETA Alcy era uma delas que,como o horizonte,não deveriam sumir nunca do nosso olhar.Mas a vida sempre foi assim e sempre será,até chegar o dia em que,para cá,não tenhamos mais que voltar.Aproveito para pedir à todos que façam as homenagens para estes seres iluminados em vida.Portanto,quando encontrarem o “seu Sapiranga” nas ruas,curvem-se,educadamente e digam;”Seu Sapiranga”,como o “Seu Alcy” e mais tantos outros eu lhe agradeço por existir,muito obrigado mesmo!E a ti Alcinea,parabens pelas lindas lembranças que compartilhas conosco.

    • parabéns pelas palavras. Já faço isso com o Milton, a quem chamo, com reverência, de mestre. É com essas pessoas que devemos aprender. Colhi muita coisa com o nosso poeta Alcy, quando com ele trabalhei. Vida longa, Néa.

  • Belíssimo post contando a história do Sr. Alcy. Com certeza, um homem que passou e deixou marcas com sua vida.
    Parabéns pelo pai e pela família que tens.
    Forte abraço.

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