Reencontro argilomolhado – uma crônica de Alcy Araújo para o poeta Juraci Siqueira

Reencontro argilomolhado
Alcy Araújo (1924-1989)
Estou só. Com meus comigos. Nem sequer penteei os cabelos. O primeiro cigarro tem gosto de merda e argila. Não ligo a TV para as primeiras notícias e ignoro o triiim do telefone.
Um quadro de Frank Asley e outro de Áldeno me espiam da parede. Minha estante, meus cinzeiros, minha bengala estão imóveis. A “Remington 33” é azul e os meus óculos bifocais brilham de pernas abertas, prostituídos pelos meus olhos cansados de ver.
Eu estou só. Um poema clonal transita na manhã que estremunha meu acordar. Além do mais, minhas soledades reincidentes.
Eis que adentra Antonio Juraci Siqueira. Encadernado na “Piracema de Sonhos”. É um reencontro. Revejo o poeta de avental e sandálias, no açougue onde, bem ao lado no botequim do João do Roque, eu frequentava mesas despidas de encanto e vestidas de pensamentos alcoolados.
Discutíamos meteorologia, quando os barômetros estavam em nós, nos pressionando… É o mesmo Juraci. Acontece que mais cheio de verdes, que ele gapuiou sabe Deus em que brenhas existenciais. Os seus versos agora têm lonjuras amazônicas, se multiplicam em reinos mágicos, em terra molhada, em lianas gotejantes.
Isto posto, me inundo e choro, porque descubro que me perdi nas enseadas, no cais de Belém, na foz do Cajari, após o parto de catedrais no ventre da selva inchada de cantos.
E todos os peixes, todos os igapós, todos os barrancos, cipós, sonhos, botos, boiunas me envolvem, me carnivoram, me enlunecem.
“Piracema de Sonhos” não é apenas um reencontro – livro úmido, ecossistemático, cromático, vivo como um peixe ovado que sobe o rio – é o milagre de me fazer um pouquinho menos só e um pouco mais poeta.
Fico indeciso entre duas garrafas (pinga e vodka) e tomo uma talagada de cachaça, pois o momento tinha cheiro de paxiúba acabada de cortar.
Foi aí que lembrei que um dia houve uma cabocla de pele macia como penugens, que me amou, sem falar de “espelhos ou de punhais” Então rezei um verso e escrevi esta crônica para voltar aos meus comigos.
Obrigado, Juraci. Vou contar dos teus sonhos para o poeta Álvaro da Cunha. As iaras sabem que tu existes, na lâmina prateada do Cajari. O Paes Loureiro, também. E eu, pô.
(Crônica de Alcy Araújo  publicada no jornal “Combate”, no dia 16 de maio de 1987, em Macapá, após receber, das mãos do poeta Juraci Siqueira, um exemplar autografado do livro “Piracema de Sonhos”, vencedor do I Concurso Literário de Temática Regional, gênero poesia, promovido pela Secretaria de Estado de Cultura, Desportos e Turismo, em 1985. Na crônica Alcy  lembra de quando  frequentava o bar do João do Roque ao lado do açougue onde Juraci trabalhava e quando diz: “discutíamos meteorologia” é porque, na época, Juraci estudava para fazer vestibular em Meteorologia).

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