Crônica do Sapiranga

Contrário tá na porteira
Milton Sapiranga Barbosa

Desde  há  várias  décadas passadas, sempre   que se aproxima  à  época junina, no  sexto mês  do ano, sou  envolvido por uma forte  dor no peito, num misto  de  tristeza  e saudade.  Tristeza, por ver que  hoje  em dia já não se  brinca  mais  quadrilha  como  antigamente. Saudade  de  quando  as  quadrilhas obedeciam  ao comando  de  um marcador, com seus  gritos de “ lá vem chuva ” , a turma ameaçava correr e ele gritava, “é mentira”: “ olha  a cobra ”, a turma pulava e ele voltava a dizer:” é mentira”, e  assim  ia comandando  seus  brincantes . Hoje as quadrilhas são estilizadas, usam  roupas  luxuosas e dançam ao  som  de músicas  ditas “bregas”(nada contra os fãs de Reginaldo Rossi).

A  saudade  se  faz mais  presente,  e  doi mais forte, é  quando me lembro  do  meu  tempo  de moleque na Favela, das  apresentações do  “ Bumba –Meu- Boi” (bailado popular cômico-dramático, com personagens humanos, animais e fantásticos, sobre a morte e ressurreição do BOI),com suas  catirinas, caçadores, vaqueiros, pajés , etc, etc…

Era bonito  ver   o  Boi do Tio Maçarico se apresentar (Tio Maçarico morava numa imensa área atrás do Glicério Marques, onde  hoje, entre outras, ficam as casas do Orlando Barbeiro e dos pais  do Adelmo Caxias e parte da av. Antonio Coelho de Carvalho).  A maior  disputa  era  entre os Bois  do Tio Maçarico   e   do Tio Julião ( policial GT que morava  na Almirante Barroso, onde  hoje fica a casa do amigo Orlando Santana. Ele era meu padrinho de fogueira). Mas  eu torcia pro Boi do Tio Maçarico vencer.

Um outro  boi  famoso daquela  época,   vinha  lá das bandas do laguinho para disputar  com  os  da Favela e era  comandado por  outro  Julião, o Mestre.

Os  duelos  entre  esses três bois eram  sensacionais, divertidos  e ansiosamente  esperados  pela  população. Cada boi  tinha  sua  leva  de  simpatizantes, que  faziam a maior festa, batiam palmas e soltavam foguetes  quando  seu  boi  preferido  entrava   no   campo da disputa para fazer a  sua exibição.
Naquele tempo (ô saudade danada que me faz chorar), a família  que quisesse  que um boi se apresentasse em frente a  sua residência, bastava garantir o café para os assistentes  e muita birita para os brincantes.  Lembro  que  por  causa da  água que passarinho não bebe, muitas das vezes, quem dançava embaixo do boi, ficava tão porre que não conseguia  ressuscitar  o “bicho”. O Pantera  foi um deles, pois fizera uma prateleira na parte interna da armação do Boi pra guardar a garrafa de Canta Galo e bebeu tanto, mas tanto , que só levantou no outro dia.  Além da  representação  da morte do boi  e a luta  do pajé  para  salvar    o animal do patrão,  o ponto alto da brincadeira, que levava  o público  ao  delírio, era  quando  começavam os desafios das  cantorias .
Ainda hoje lembro ( e não canso de agradecer a Deus  por  essa memória privilegiada) de trechos  dessas  cantorias.  Juro a vocês, até me parece  ver  nitidamente  a figura imponente do  Tio Maçarico, no  meio do  terreiro de seu  quintal,  devidamente  paramentado, cantando  em provocação  ao  boi  do Tio Julião da Favela.

Ele  entoava  assim:
Contrário tá na porteira/ Não deixa ele entrar/
Ele veio aprender toada/ Pra cantar no boi de lá

E em cima da bucha ouvia  em  resposta :
Contrário já tá entrando/ com suas próprias toadas/
Prepara logo teu boi/ pra levar umas lambadas

E a cantoria  seguia  por horas e horas, noite  a dentro,  para deleite  da grande platéia  que presenciava  o desafio, e que  ria e  batia palmas  a cada  provocação  de um  e  da resposta do outro.
Depois  que Tio Maçarico, o Tio  Julião  e  o Mestre  se foram para outro plano, as  brincadeiras dos Bois Bumbás (Bumba Meu Boi)  foram  morrendo aos poucos.

Um Oleiro, que  morava na maloca (área de terra existente na Mendonça Júnior, entre Jovino  e Odilardo), chamado de Mestre Júlio,   por  alguns  anos, talvez quatro no máximo,   com  seus  próprios recursos e a ajuda de seu filho Zé Oleiro, ainda tentou  manter  viva a tradição do Bumba Meu Boi em Macapá, mas sem apoio  dos poderes públicos e sem concorrência, teve  que  entregar os  pontos
E aí  sim, o Boi morreu,.
E não teve pajelança que  o fizesse  ressuscitar.
Uma pena

  • Olá Milton,
    E o boi do seu Raimundo, pai do Arigó, e o cordão do Uirapuru, realmente uma cultura que se perdeu no tempo e como o passado, jamais voltará.
    Sds,

  • Milton, é uma pena que parte do nosso folclore esteja noribundo.Aqui em Brasília tem o Boi do Sr. Teodoro, que é tradição, e que Brasília tem 50 anos de vida. Milton, você lembra do leite da Caritas (vulgo leite pei pei, será que o mestre tem alguma coisa no seu baú cultural!!

  • Tive o privilégio de participar da primeira (senão a única) vaca-bumbá da cidade. Foi inventada pelo Nelquesi e fez muito sucesso à época. Apresentamo-nos, inclusive, para o finado Gurgel, no tempo do programa “Pai Velho, Pai d’Égua”. Por onde andará a Cupicica?

  • Mestre Milton, circula nas bocas, uma estória assim: Depois da vergonha que o boi causou, ao não ressuscitar (pela cana que o boizeiro tomou), o dono do terreiro ficou sem saber o que fazer, pois seu boi era afamado e mais luxuoso que o outro.
    Ao ver aquela presepada, o dono do boi pobre, querendo tripudiar em terreiro alheio, saiu-se com esta:
    “Alevanta Frô da Esperança
    Alevanta qui tu vais apanhá
    Té Du uma purrada pur cima da pá
    Purquê teu peito num é dé metá”.

  • Não sou dessa época, mas sou do bairro do laguinho, e anda dançei quadrinhas nesses ritmos, era maravilhoso, são valores que infelizmente não se tem mas, passo oas meus filhos nas lembranças gostosa de minha infância,hj trabalho os Valores do marabaixo com os meus filhos poes nossas raizes,pra que também não seja ESQUECIDO.

  • Olá Alcinéia, bom dia! Não sou dessa época, porém sou daquelas redondezas…
    Sou da época da quadrilha da professora Lucinha que até hoje reside na Av.Henrique Galúcio.Sou da época do “anarriê” , “balanciê” com seu par e sinto saudades da quadrilha de época, da roupa do pano de chita, saudade da minha infância e das minhas raízes do bairro central/trem. Bjão :* e fica com DEUS!!!!!

  • Caro Cangalha, tem uma boa historia do boi do Júlio, durante apresentação na casa do entao governador Lisboa Freire, um bom pinguço e festeiro. O Mamede (não é o do PV) era o tripa, e resolveu dançar “debaixo do boi” com uma garrafa de cana na cintura. O boi morreu, e enquanto era feita a pajelança para ressuscitar, o Mamede tomou toda a cana, ficou porre e dormiu. Aí não teve médico e nem pajé que fizesse o boi levantar. Aporrinhado e envergonhado, mestre Júlio soltou o berro: “Ei meu boi culhudo, sacode os bagos e vem”. E nada. Levantaram a capa do boi e o Mamede (tripa) dormia sob o efeito da mardita.

  • Ai ai… que saudades, era sssim mesmo, e quem era muito bom para comandar uma quadrilha era o 90,espetacular, e não precisava de tanato luxo, bastava uns remendos na roupa e já estava. E o boi?? nem me fala, eu era moleca e morava na rua São José no laguinho, e eu até ensaiei fazer um boi com paneiros…rssss só que estava a espera que minha mãe me ajudasse a fazer a cabeça do boi, pq sozinha não conseguia, com a demora, a gente ensaiva com o boi sem a cabeça, e muitos moleques me aporrihavam diziam vamos ver o ensaio do boi sem cabeça… mesmo assim, era muito divertido… que saudades, Macapá tem muita cultura, mas tem pouquíssima memoria!

  • Mestre Milton, pena que muitas tradições sucumbiram à modernidade. Descendente de paraenses e nordestinos, o povo amapaense cultivava, além do boi bumbá, os cordões de pássaros e danças vindas do baixo amazonas. E, naquele tempo, não havia verba do Governo para bancar. Mas as festas eram realizadas com muito gosto. Hoje, infelizmente, o povo não vê mais as festas populares, como REALMENTE deveriam. Até as quadrilhas agem diferente. Parabéns pela lembrança.

  • Bela narrativa! No entanto, para mim como criança, a coisa parecia séria, pois os índios, eram homens que tinham feições de índio, que sob o efeito da “birita”, pareciam brabos, me parecendo tudo muito real. Para cá, na Pedro Baiões, um dos grandes patrocinadores, era o Seu Lerino. É como digo: “cultura é tudo aquilo que é construído”, cabendo a nós preservar nossos costumes!

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