Artigo dominical

OS PREGOS NOS SAPATOS

Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá

Um jovem de nobre origem foi ter um dia com um santo abade pedindo para entrar a fazer parte da sua Ordem. O abade quis conhecer os costumes e o caráter do jovem. O candidato levantou a cabeça com orgulho e disse: – Eu visto sempre de preto, bebo somente água e durante o frio inverno tiro a roupa e me rolo na neve. Para penitenciar-me mais ainda coloquei pregos nos meus sapatos e ordenei ao meu servo de açoitar-me quarenta vezes ao dia…-  Justamente naquele instante, apareceu um cavalo preto; o animal bebeu numa poça de água e depois rolou-se na neve por brincadeira. – Estás vendo? – disse o abade ao jovem – esta criatura também é totalmente escura, bebe somente água, se rola na neve, tem pregos que atormentam os seus pés e apanha bem mais de quarenta acoites num só dia. Contudo ela não passa de um cava lo. –

Este pequeno anedota nos convida a refletir sobre o sentido da penitência, das mortificações ou mesmo das renúncias que, às vezes, nos impomos, convencidos de forjar melhor a nossa personalidade. Sem dúvida a disciplina e o controle de nós mesmos são  virtudes preciosas. Quando nos falta força de vontade, nos tornamos fracos, sem compromisso, sem perseverança, levados pelos caprichos da hora. No entanto não devemos pensar que todo este sacrifício corresponda àquele “esforço” que Jesus convida a fazer, no evangelho deste domingo, para entrar pela porta estreita, que conduz ao Reino de Deus.

Com efeito, qualquer acerto na vida exige aplicação e a relativa renúncia a outras coisas. Numa pesquisa com pessoas de sucesso como esportistas, atores, músicos, cientistas, eles e elas falaram que, além dos talentos naturais e da motivação séria, a pessoa deve treinar muito. Disseram que, no mínimo, precisam 10.000 horas de aplicação para sobressair de verdade em alguma disciplina. Fazendo as contas, treinando somente uma hora por dia precisariam quase trinta anos de tempo, porém se queremos acelerar o processo e treinamos três horas por dia com dez anos temos chance, talvez, de chegar a sermos campeões. Haja força de vontade!  Mas é isso mesmo; todos os entrevistados confirmaram que precisa tomar a sério o compromisso. Se isso vale para as disciplinas humanas o que pensar da santidade? Também precisará de esforço e aplicação.

Contudo, sempre no evangelho deste domingo, é fácil perceber que, no final, a decisão para entrar, ou não, dependerá de ser conhecidos, ou não, pelo Senhor. E mais, seremos reconhecidos se tivermos praticado a justiça. Ter comido e bebido com ele, não vai servir. Nem ser da mesma terra onde ele ensinou e nem o pertencer ao povo dele serão levados em conta. Somente, repito, terá valor o ter praticado a justiça. Na linguagem dos evangelhos entendemos que esta justiça tem muito pouco a ver com aquela exercida pelos juízes humanos. A justiça da qual Jesus fala é aquela dos homens e das mulheres de boa vontade, os “justos”, isto é: aqueles que recusam o mal, que conseguem transformar em ações de vida o amor que cultivam nos seus corações. Portanto o grande e constante esforço para entrar pela porta estrei ta e sentar à mesa no Reino consiste em praticar esta justiça, em praticar atos de amor fraterno.

Não cabe a nós saber ou decidir quantos ou quais serão os justos que se salvam. O que devemos fazer é encontrar o caminho da justiça e do bem. A porta do Reino está aberta e à mesa tem vaga para todos, sem exclusões, não têm cadeiras cativas ou reservadas. Qualquer um pode ganhar ou perder o lugar, depende da justiça e do amor que praticou. Quem se achava o primeiro da fila para entrar, talvez fique por último e quem pensava em ter alguma vaga garantida, terá que merecê-la. Pode até ser deixado de fora e bater inutilmente. Sem conversa e sem chance para quem praticou a injustiça!

Precisamos reavivar a nossa motivação para treinar muito mais na aprendizagem a praticar o bem. Não é fácil, porque quando o bem é verdadeiro sempre nos custa. Exige tempo, dedicação, esforço, renúncia, carinho. Pede que sejamos sinceros, honestos, leais e fiéis. Não tem lugar para mentiras, fingimentos, interesses escusos. Podemos enganar os outros, mas não o dono da casa quando se levantar para fechar a porta. Devemos escolher de praticar a caridade livre, consciente e humildemente, sem orgulho ou barganhas. Somente este é o esforço que vale ser feito para entrar e garantir-nos um lugar à mesa do Reino.

Nesta altura quem quiser colocar pregos nos seus sapatos pode colocá-los. Não os coloques, porém, nos sapatos dos outros, por favor. Isto se quiser praticar a justiça e o amor.

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