Artigo dominical

Serapione
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Serapione foi um dos antigos Padres do deserto. Contam que ele, certo dia, ao encontrar um pobre totalmente despido pelas ruas de Alexandria do Egito, deu-lhe todas as suas roupas e acabou  ficando nu, despojado de tudo, menos de uma cópia do Evangelho que levava sempre consigo. Continuando no seu caminho, cruzou com outro homem que havia sido preso porque não podia pagar uma dívida. Então Serapione vendeu o livro, pagou a dívida dele e libertou o pobre homem. Quando chegou à cela onde morava, um irmão, assustado ao vê-lo daquele jeito, perguntou:

– Pai, onde ficaram as suas roupas?

Respondeu Serapione: – Dei-as ao Cristo nu.

E o discípulo novamente: – Onde ficou o seu pequeno Evangelho?

– Vendi o livro que me dizia: “vende os teus bens e dá o dinheiro aos pobres”, respondeu Serapione.

Quando ouvimos essa história, parece-nos impossível que tenha acontecido, tão grande foi a generosidade e o desprendimento do Padre do Deserto. Contudo nos faz bem acreditar que o que parece fora do alcance humano foi – e ainda é – uma busca de vida para os discípulos de Jesus. De outra forma, deveríamos admitir que o próprio Senhor estaria nos pedindo o impossível. Assim a proposta dele seria somente um sonho irrealizável, ou uma utopia que, como a palavra diz, não existe em lugar nenhum. Neste caso seríamos dispensados das tentativas de viver a Palavra dele.

O Evangelho deste domingo nos lembra o grande mandamento do amor a Deus e ao próximo, sem tantas discussões e conflitos imaginários. Não tem outro caminho para amar a Deus a não ser aquele do amor ao próximo e, do outro lado, devemos amar ao próximo, porque nele reconhecemos a presença do Senhor. O amor e a fé têm estes dois compromissos: Deus e o próximo. Se faltar um dos dois a vida cristã fica capenga.

Aproveito para falar um pouco das chamadas obras de misericórdia em tempos nos quais não faltam campanhas de solidariedade. Refletimos muito sobre o voluntariado e todos somos convidados a fazer algo de bom, superando a insegurança, a violência e a corrupção. Devemos reconhecer que avançamos muito. Hoje, algumas dessas obras se tornaram direitos. Os governos – por meio do dinheiro dos impostos – devem assegurar o bem-estar dos cidadãos no campo da saúde, da educação e da previdência social, só para fazer alguns exemplos. Também assistimos ao proliferar de organizações não governamentais com as mais variadas finalidades sociais cuidando dos mais diferentes segmentos da sociedade: crianças, idosos, pessoas com deficiências, dependentes químicos, tantas categorias sociais excluídas que assim conseguem fazer ouvir a sua voz. Já existe ONG para defender o planeta, espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção. Se acreditamos nas boas intenções das pessoas devemos reconhecer que hoje não faltam oportunidades para fazer o bem. Há chance para todos. Têm grupos de engajamento para todos os gostos e para todas as ideologias. O tempo em que hospitais e escolas foram monopólio de religiosos e religiosas já acabou. De fato, a filantropia sempre foi aberta a todos. Fazer o bem aos necessitados, graças a Deus, nunca foi e nem será obrigação exclusiva de alguns. Quanto mais sensível e mais humana ficar a convivência social melhor será para todos nós. Ninguém pode dizer que somente ele ou ela faz o bem. Todos, de forma organizada, ou não, podem fazer alguma coisa boa em prol do nosso próximo. Quem julgará, um dia, será o Senhor separando os justos dos injustos. E com surpresas!

Com isso, vamos aposentar a caridade cristã? De jeito nenhum. Os cristãos têm algumas razões a mais para praticar o amor ao próximo. A primeira e fundamental é justamente o amor a Deus. Para fazer o bem, em geral, não precisa a fé. Mais uma vez, podemos cair no equívoco de acreditar que, nós mesmos, somos capazes de resolver todas as questões que dificultam a convivência humana. Afinal falta somente organização e boa vontade. Para nós cristãos o amor a Ele e ao próximo é um dom do próprio Deus. É Ele mesmo presente com a força do Espírito Santo em nossas vidas. Para nós cristãos amar ao próximo é o caminho para aprender a doar toda a nossa vida. Sucesso e conquistas, decepções e fracassos nas boas obras, tudo se torna relativo. O importante não é dar tempo, dinheiro ou competência. O importante é fazer da nossa vida um dom, como fez Jesus. Por isso, amar é mais do que fazer o bem. É experimentar um pouco da realidade de Deus que é amor. Para os cristãos fé e amor andam e crescem juntos. A fé inabalável motiva o amor permanente – até aos inimigos – e a caridade radical torna visível a fé desinteressada. Evangelizar quem não conhece Jesus é também uma grande obra de caridade, não vamos esquecer.  Serapione já sabia disso quando nada segurou. Despojou-se de tudo, até do livro. A Palavra anunciada foi vivida.                       

  • Nestas dias difíceis de relacionamento e convivência humana, não é tão fácil seguir ao segundo mais importante mandamento, “Amar ao próximo como a sí mesmo”. Como Serapione, compreendi melhor o significado desta ação, quando li a história de São Francisco de Assis, dedicação total a Deus, ao próximo e à natureza.

  • Obrigada pela mensagem, Bispo. Alcinéa, já estou escrevendo poemas para o Natal, quero apresentá-los na Boca da Noite, mais próximo ao Natal, ok, estou me preparando, e me convidando, um abraço.

  • O exemplo de Serapione deveria ser seguido pelo Papa. Os cofres do Vaticano possuem tesouros imensuráveis. Não seria o caso de vendê-los para distribuir o que for arrecadado aos pobres? Compradores não faltarão para as obras de arte, por exemplo.

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