Artigo dominical

O que vou fazer com esta mão?

Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Foi durante a primeira guerra mundial. A pequena cidade no meio das montanhas ficou de baixo do fogo cruzado das artilharias. Os dois lados não poupavam bombas. Os soldados inimigos conseguiram invadir o povoado e prenderam, entre outros, o pároco. Antes de ser levado embora, arrastado pelos militares, ele conseguiu chamar um dos coroinhas que só tinha sete anos: Almiro. O Padre disse ao menino: “Pense em Jesus, Almiro. Abra a portinha do sacrário e distribua a comunhão às pessoas. E Deus o abençoe”.

Os olhos da criança brilharam. Era o dia 18 de novembro. Aos poucos, o pessoal  chegou à igreja. O menino vestiu a roupa de coroinha, aproximou-se do altar, subiu num tamborete, abriu o sacrário, tirou a âmbula  com as hóstias e, tremendo todo, distribuiu a Comunhão a todos, começando por sua mãe. Fora da igreja ainda trovejavam os canhões. Mais tarde, em casa, o menino disse à mãe: “E agora o que vou fazer com esta minha mão?” – Era a mão com a qual havia distribuído a Comunhão. “Reze para que nunca faça o mal e somente faça o bem” – respondeu a mãe comovida. Dezessete anos depois, em 1932, no mesmo altar Almiro celebrava a sua Primeira Missa. Beijando-lhe a mão consagrada pelo crisma  no dia da ordenação, a mãe lhe disse: “Este era o destino da sua mão”.

Fatos do passado, que nos parecem tão longe do mundo de hoje e quase irreais. Quantas crianças conversam ainda com as suas mães para lhes perguntar sobre o destino das próprias mãos?  As crianças de hoje, tão pequenas, já viram quase tudo, ao vivo ou pela televisão. Parecem tão sabidas que correm o perigo de não encantar-se de mais nada. Navegam pela internet e esquecem as cores do por-do-sol. Andam de avião para visitar o pai ou a mãe, porque este ou aquela mora numa outra cidade, com outra mulher, ou outro homem. Lá conhecerão, provavelmente, meios irmãos. Carregam na mochila, que parece um ursinho, o celular tocando MP 10 no seu fone de ouvido. Olhando-se ao espelho da cabeleireira, decidem, sem titubear, como deve ser o corte do s seus cabelos. Crianças superiores e supermodernas ou vítimas da tecnologia e do consumo?

Nesses domingos, Jesus nos fala muito das crianças. Domingo passado colocava uma delas no meio de todos e nos dizia que, ao acolhê-la, estaríamos acolhendo a ele mesmo e ao Pai. No outro, abençoando e abraçando as crianças, convida-nos a nos tornarmos como elas para poder entrar no Reino de Deus.

Neste domingo, porém, Jesus nos espanta. “Quem escandalizar um destes pequenos que crêem” – ele nos diz –  “seria melhor que fosse jogado no mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço”. Entre os pequenos de quem fala Jesus estão, sem dúvida alguma, as crianças. Aquelas respeitadas, amadas e acolhidas que confiam totalmente nos seus pais e em todos os adultos que lhes sabem dar atenção e carinho, abrem-se à vida com a certeza de não serem enganadas.

Mais que ter fé em Deus, que ainda não conhecem bem, elas têm fé na vida, nos grandes que as carregam nos ombros, no colo, no carrinho de passeio. A confiança em Deus das crianças será a lógica conseqüência de quem experimentou a alegria de ser amado, ou amada, por alguém com coração de pai e de mãe. De verdade, sem interesses, sem falsidades, sem outras intenções a não ser aquelas de vê-las crescerem bem, alegres, generosas, sorridentes, felizes por descobrir sempre algo de novo, manifestando assim as suas capacidades, os seus talentos.

Infelizmente temos que lamentar hoje a praga da pedofilia. Adultos aproveitando-se de crianças para os seus prazeres vergonhosos. Adultos violentando a inocência dos pequenos. Adultos interesseiros deixando marcas indeléveis na vida daquelas crianças, excluídas para sempre da singeleza da infância.

Para o Almiro da Primeira Guerra Mundial as palavras do pároco foram um desafio a fazer o bem. Para muitas, demais, crianças de hoje, a violência crescente significará ter cortadas para sempre as asas de seus sonhos.

Talvez seja preciso travar uma nova guerra mundial, diferente das outras, claro, para o resgate e o respeito da inocência pura das crianças. Depois elas, livres e felizes, porque amadas, conscientes e confiantes, porque respeitadas, saberão o que fazer com as suas mãos e com as suas vidas. Talvez seja mais fácil que façam o bem, que entreguem as suas vidas a uma causa grande e justa. Nunca para fazer o mal.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *