Crônica do Sapiranga

Rala- rala ou raspa- raspa? Tanto faz
Milton Sapiranga Barbosa

No  dia 05/12/2010, um domingo no mundo, o Geraldo Galvão, “o Galo”, completou 60 anos de vida e,   para comemorar a data, convidou vários

Geraldo, o Galo

amigos de infância da Favela e outros conquistados em  seu ambiente de trabalho e pela vida afora, tendo  a feliz  idéia  de  solicitar de presente dois  quilos de alimentos não perecíveis, para doar para famílias carentes, que por ele  e sua esposa foram previamente  selecionadas.
Entre os convidados da Favela compareceram, além deste cronista, os amigos, Alcione Cavalcante e esposa, Carlos e Cláudio Brito, Moacir Simões Tavares e outros tantos.
Papo  corria  solto, regado a cerveja, feijoada e churrasco, logicamente versando sobre nossas peripécias de  moleques e  adolescentes muito danados.
De repente a esposa  do Geraldo me  chamou à parte e mostrou uns litros contendo sucos de taperebá, coco e cupuaçu. Não  entendi o porque ela ter me chamado para ver os litros com  sucos, até  que ela levantou um guardanapo que estava sobre uma  pedra (barra) de gelo  e  me entregou um  ralador dizendo: “faz uns copos  de rala–rala pra nós”. Vocês não imaginam  a intensidade  da   minha emoção e a da minha saudade naquele momento. Tive que fazer muito esforço para não chorar. Me pareceu  ver o Seu Nélson, o Seu Jarino, o Seu Biló, empurrando seus carrinhos e vendendo rala-rala, que por alguns era chamado de raspa- raspa. Mas seja lá qual for o nome, era gostoso pra  “dedéu” e,  moleques, jovens e adultos se  deliciavam com os  sucos que eles ofertavam com gelo ralado, ou seria raspado, na hora?
Ao ver  aqueles produtos fiz uma  viagem no tempo,  lembrando das guloseimas  que os meninos  do meu  tempo podiam apreciar.  Vi claramente e lembrei com saudade do  Tio Adelino (o Marvado), descendo   ou  subindo a Mendonça Furtado tocando um  triângulo, com um grande cilindro nas costas  cheio de cascalho (umas folhas finas de uma massa  adocicada e crocante,  que nós adorávamos). A molecada torcia pelas  folgas do Tio Adelino  do  seu plantão na Guarda  Territorial a fim de poder comer  cascalho. Me pareceu também ver  o Arinaldo  segurando   um cabo de vassoura   com  uma tábua cheia de furos  presa  em   uma das extremidades   e os  furos  repletos de deliciosos “pirulitos”, talvez 20 ou 30, geralmente de maracujá. Tão logo à tabua ficava vazia  ele se juntava aos  demais moleques no bate bola no campinho onde hoje está  a Escola Guanabara, que  era reservado para  turma da Favela e  do Centro (Já o campinho da frente do cemitério era dos garotos do Bairro Alto e da baixa da Olaria). Lembrei  dos  homens  que carregavam um cavalete nas mãos  e um  tabuleiro na cabeça,  de zinco ou de madeira, que percorriam a velha Macapá vendendo  “quebra  queixo”, que  era  cortado em porções generosas  com  uma  espátula. E os  mingaus de milho verde, banana, milho branco e farinha de tapioca que  o seu Andrade (pai do meu amigo Vicente Rocha, vendia no canto do Mercado Central, próximo ao Bar Du Pedro?  Se  misturados  os  quatro sabores na  cuia,  então  era  um manjar  dos deuses. O seu Nélson e um outro  senhor alto, magro e moreno (sempre vestido impecavelmente de branco e um quepe na cabeça) cujo nome não me veio à mente, também vendiam deliciosos mingaus  em  frente ao frigorífico municipal. Ir  ao Mercado Central  e não tomar uma  cuia de mingau, em qualquer dos pontos citados, nem pensar! Recordei da Garapeira do Brotinho, onde adorava tomar garapa  com  donzela sempre que ia  ao Elesbão comprar caranguejo!   Deu água na boca ao lembrar como era bom tomar um  Flip Guaraná  com pão  doce  após um jogo de bola! Lembrei  dos  potes   com mel  que  se comprava na  Doca da Fortaleza  pra  comer  com farinha ou com pão quentinho da padaria do seu Osvaldo  ou da padaria do Sandó.  Após essas  doces  e gostosas lembranças, veio a tristeza  e o lamento, por saber   que meus   filhos  e netos não  puderam e nunca poderão apreciar  as  guloseimas listadas  acima (com exceção da garapa, donzela e pão doce, que ainda se encontra por aí).

Não posso excluir dessas lembranças as  doceiras da época, em  especial a minha querida e saudosa vizinha  Dona Margarida Lino Dias, que  fazia  como ninguém sonhos, pastéis, queijadinhas, beijos de moça  e  cocadas (estas preparadas  com  sobra de calda  do  Flip Guaraná, que  seu irmão, Tio Casemiro, trazia da fábrica).
Aliás  que ao lembrar da minha querida vizinha, também  lembrei de  seu  filho Arideu, que  nas  datas  festivas era meu parceiro na venda  dos doces  e salgados que sua mãe fazia. Uma vez, num  dia 13 de Setembro, fomos  vender doces  na Fortaleza  de Macapá, no tempo  que aquele baluarte  tinha em seu interior um mini  zoológico, onde viviam  onças, porcos  do mato, quatis, urubus rei, gavião real, araras  e macacos, muitos  macacos, que   soltos, faziam mil travessuras com os  freqüentadores do local.
O  Arideu  com seu tabuleiro na cabeça, cheio  de doces e salgados até à boca,   achou  de passar embaixo dos  galhos  de um pé de “mutamba” (assim chamávamos a árvore que fornece uma frutinha doce e que ainda hoje tem um pé na área do Barão Do Rio Branco),   e aí deu-se a desgraça. Um macaco prego  atrevido, sentindo  o aroma daquelas delícias, não se fez de rogado e  pulou sobre  o tabuleiro do  Arideu. Foi  pastel, queijadinha, cocada, beijos de moça e sonho pra  tudo  quanto é lado. A  macacada  fez a festa. Coitado do meu  amigo, que com medo da bronca da Tia Margarida, sentou-se à sombra da grande árvore  e chorou. Depois que terminei minha venda, voltamos para a Favela   e ele veio chorando  até chegar em  sua casa.   Só não  rodou no galho de cuieira, devido  ao   meu  testemunho, afirmando a Tia Margarida  que ele não  tivera  culpa do acontecido.

Eu e ele, voltamos muitas vezes  a vender doces na Fortaleza, mas o “Dedeu” (como era chamado por sua avó, Dona Juliana),  queria  distância das árvores ali existentes.

Parei! Desculpem, mas não posso continuar. Estou chorando de saudades da minha infância feliz  na  Favela da Macapá de antigamente,  com  suas guloseimas deliciosas.

  • Moro em Salvador-Bahia, sou cunhada do Arideu ,fui comunicada dessa crônica e relembrei que muitas vezes comi sonhos e beijos de moça feitos por D.Margarida, e outras vezes os sonhos eram feitos por Dedeu, realmente até hoje nunca vi outros tão saborosos . Boas lembranças

  • Oi gente, sou o Matheus, neto do ARIDEU (vô Dedeu). Gostei muito de saber dessas histórias e, pra quem não sabe, ele está morando aqui em Macapá.

  • Caro sr.Milton, adorei ler sua cronica. Não sou de Macapá , mas considero-me macapaense pois já estou aqui desde 1993. O que fez-me rir bastante foi suas lembranças de infancia. Sou de Belém e a infancia das crianças daqui não era diferente da nossa lá. Comiamos também pirulitos vendidos numa tábua cheia de furos,quebra- queixo, mingau, cascalho…enfim, isso é muito bom de lembrar. Por alguns instantes o senhor me deu boas lembranças.Boa Noite.

  • Grande Cagalha Menor, isso já está merecendo um livro. Já sei que você teve filho (radiobrinho)e plantou uma arvore, mas ainda não escreveu um livro. Manda ver.

  • Oi pessoal aqui quem ta falando é o neto do Arideu eu acabei de ler a história e to morrendo de rir!:-)

  • Boas lembranças da cidade. Até quando os moleques brigavam era só murro e chute, não valia baladeira

  • Me tire uma dúvida, Milton:
    O Arideu ao qual você se refere é o irmão do Duca (Manoel Dias)?
    O Arideu (irmão do Duca) foi colega de turma no curso de Economia da UFPA nos anos 70 (inclusive fez da colação de grau de minha turma em 1980). Nunca mais o vi, mas acredito que ele ainda esteja em Belém.

    • Oi Aloisio! É, o Arideu é irmão do Duca, que na escala familiar é o quarto filho da Tia Margarida( não temos parentesco, mas era assim que tratávamos os mais velhos. O Arideu atualmente está morando em com a Família. Se quiser encontrar com ele é só ir à tardinha na Vitaminosa que fica na esquina da treze de setembro com odilardo silva. Continue mandando.

  • Lá vem você com mais uma bela lembrança. Só que essa crônica me fez lembrar de uma senhorinha que vendia doces, amor-em-pedaços,crocretes,casquinho de muçuan (no casco do quelônio), sucos diversos, quase congelados e flip guaraná. Sua primeira parada era na calçada da escola Barão. Depois de fazer a festa com os estudantes no recreio, seguia para a calçada do Banco do Brasil, ao lado da residência oficial. Ela era a D. Maria, minha querida avó. E seu ajudante era o primo Agapito. Doces e inesquecíveis lembranças vc me trouxe, viu? Bjs no coração Sapiranga!!

  • Sr. Sapiranga, fiquei curioso. Por acaso mutamba é uma frutinha redonda, marrom, com a casca recoberta com uma espécie de pelos, feito um kiwi? Se for, naquela parte externa da fortaleza existia uma árvore, onde a molecada da minha época fazia a festa.

  • Adoro suas crônicas,viajo no passado, em cada cantinho que você descreve, meu pai Sr. jarino, realmente fazia como ninguém o melhor rala -rala.

  • Olá, Milton.
    Mais uma vez ficas remexendo com essas lembranças que estão adormecidas, mas de vez em quando vem à tona.
    Minhas lembranças do pirulito com suas bandeirinhas estão muito ligadas aos meus tempos de aluno do G.E. Alexandre Vaz Tavares, assim como os pastéis e bolos fatiados.
    Mas o raspa-raspa é a cara do antigo Cine Paroquial. Não me refiro àquele da esquina da Jovino Dinoá com Feliciano Coelho (hoje nem lembro o que é). Estou falando do antigo barracão de madeira, que ficava á esquerda da Igreja N. S. da Conceição, dos tempos do padre Vitório. Era sagrado aquele carrinho de raspa-raspa, com os mais variados sabores.
    A donzela também fez a sua festa, tanto é que o Roque já estava ficando cuíra.
    Quanto à garapa com pão doce, também permaneceu na lembrança. Fez parte, talvez, de minha primeira atividade profissional (não remunerada). Tinha uns 11 anos, recém chegado da Fazendinha a Macapá, e meu pai, para melhorar o sustento da casa, colocou uma barraquinha de garapa com pão doce ao lado do Mercado Central, ali pela Antonio Coelho de Carvalho. E eu de vendedor. Não durou muito tempo, mas me lembro dos outros vendedores, com os seus jeitos engraçados de chamar a freguesia.
    Um abraço,
    Aloisio

  • Boa lembrança seu Nelson que vendia mingau na frente da loja Pernambucas era meu padrinho aconpanhei a trajetória dele que Deus o tenha em seu braços.

  • Fala Milton,
    Parece que a tinta da camisa do Galo empretou o seu cabelo, Rsrsrs…
    Comprar donzela no seu Amin e picolé no Rouxinol era nossa rotina, além do pão doce com garapa no mercado central ou um pão quente com manteiga da Fábrica Amapaense aliado ao Flip, o melhor e mais saboroso guaraná, beba flip guaraná, melhor não há.
    Boas lembranças, lamento não estar no aniversário do Galo, porém, faremos nova reunião como a de janeiro/2010 em 2012, se Deus quizer.
    Um abraço a todos.
    Sds,

  • Estava aqui “cuíra” pra saber se o senhor ia se esquecer da donzela com garapa. Mas não se esqueceu. Meu avô, Cazuza Lobato, vendia garapa. Aí era mais fácil, porque bastava adquirir alguns trocados para comprar a deliciosa donzela no comércio do Seu Antônio Cardoso, mais conhecido como Antonico, ou do Seu Palheta, na baixa da Maria Mucura, onde morava minha avó.

    • Camarada, não serás filho da Raimunda, neto de tia Cinira, madrinha de minha mãe? E claro, neto do tio Cazuza e seu inseparável carro de garapa. Da melhor qualidade. Lá descendo a baixa da Mucura, rente a batedeira de seu Tiburcio. És irmão da Socorrinho Arigó? Então somos da mesma familia.

      • Isso mesmo. Passei boa parte da minha infância ali, até 1976, quando morreu minha avó. Tinha uma relação muito forte também com a Dona Nely, esposa do Mimi Amaro e mãe do Herbert, Drª Ana Lúcia. Conheces?

        • Na verdade, o nome da minha avó era Sinyra (com “hipsilone”, como ela dizia). Só descobri isso pintando o nome dela em uma bacia. Escrevi “Cenira”, e ela, com a dificuldade própria de uma mulher analfabeta do interior, consertou. Foi difícil para eu entender, mas a pintura saiu.

          • Lembro-me também da pipoca que era vendida em um carrinho de alumínio por um cidadão que ficava uma fera quando o chamavam de “camarão”, êle era capaz de soltar o seu carrinho, pegar qualquer coisa que estivesse no chão mais próximo dêle e arremessa contra o moleque que o estava apelidando.
            Engrassado que o pipoqueiro era esguio e bem vermelhinho.

        • Eram meus padrinhos de batismo e tios legítimos. Tia Sinyra(agora corrigido)era a única pessoa que fazia minha mãe descer as escadas do sobradinho onde morávamos, para uma visita, quando então tomava a benção de sua madrinha.

  • Minha Cunhada!!
    Sapiranga tá ficando cada vez melhor, adorei a sua crônica…..que vc tenha uma semana muito abençoada.

  • O galo é aquele do palavra de mulher, com palavra de homem da Helena Guerra? Se for, parabens redobrado,pois quando está no mocicrofone, ele nos contagia com sua alegria e brincadeiras com nossa vive. Quanto a crônica, !do jeito sapiranga de escrever”, é belíssima, e até nos incentiva à solidariedade no chorar!

  • É, Milton, tu não tens jeito! Insistes em me fazer fungar! Sacanagem! Ainda mais lembrando da garapa do Brotinho. Ele tinha um pão doce que até hoje nunca comi igual.
    E olha, parceiro, quer voltar no tempo? O Bar du Pedro ainda está lá, do mesmo jeito. Vai lá, toma um guaraná Garoto. Não tem mais Flip. Mas fecha os olhos e viaja. Vamos virar moleques outra vez.
    Outra coisa, meu velho. Nas madrugadas, naquele silencio das cinco horas, escuta o grito longinquo do padeiro: Paaadeeeiiiro!!!

    • Uma vez mencionei a garapeira, mas eu pensava que era Moutinho. Seu sobrado foi o único que escapou de um incêndio que devastou todo o quarteirão.

  • Mestre Milton, você é o verdadeiro retrato das boas coisas da infância. Enquanto hoje assassinos invadem as escolas, os moleques de antigamente só queriam se divertir. Vida simples, porém feliz.Pela crônica que ora comento, dá pra perceber que essa é a vida que todos queriam. Um abraço ao Galo e à Marilene, pessoas muito queridas. Parabéns pelo texto. Cada dia fico mais fã. Deus te abençoe.

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