Cronistas do blog

Brasil-República
Cléo Farias de Araújo

—Não! Este ano não vou à Macapá no mês de julho. Nestas férias, não será possível desfrutar do Macapá Verão! A bolsa (do Governo do Território) e o Crédito Educativo estão atrasados e, quando saírem, mal vai dar pra pagar as contas, também atrasadas. Estou sem dinheiro e pronto!—Foi assim que Realista revelou aos colegas de república que estava temporariamente falido.

—É… mas eu vou!—Disse Otimista.—Por nada eu perderia umas férias na minha cidade querida!

—Tu falas assim porque teu pai tem dinheiro.—Declarou Realista.

—Não é isso. Apenas sei regrar o pouco que ganho com o muito que devo. Não faço do Lapinha a minha segunda casa nem jogo baralho “o paga”.

—Mas a vida é curta e preciso me divertir também…

Papo vai, papo vem… até que alguém grita:

—Tão pagando o Crédito e a Bolsa!

A notícia correu mais que osso em boca de cachorro que quer se livrar do resto da matilha.  Bolsa e Crédito foram pagos no mesmo dia, para alívio de estudantes e credores. Contas foram quitadas; as roupas e livros eminentemente necessários, comprados; e o que sobrou, duraria poucos dias.

Espirituoso como ele só, Otimista disse:

—É como dizem por aí: “É o crédito menstruativo!”—deveria vir todo mês, mas atrasa pra caramba e só dura, no máximo, cinco dias.

E todos ficavam torcendo que a verba do governo não atrasasse mais.

E chega o tão esperado mês de junho. Com ele, as festas de terreiro. Realista não perde uma e sabe todos os sucessos do momento. As mais pedidas, são:

É só capim canela, É só capim canela”. E…

Deixa a folha do tipi cair, deixa a folha do tipi cair, deixa a folha do tipi cair, que eu faço um chá pra você dormir”.

Com o final de junho, chegam as tão merecidas férias. Como num acordo de cavalheiros, a chuva dá lugar ao sol, que assume o papel de encher o rosto das pessoas de alegria e alastrar beleza no corpo das meninas que gostam dele.

Como no mês de julho “o bicho pega”, em termos de passagens, os republicanos se viram pra conseguir um jeito de retornar à terra querida. A distância faz com que o cheiro do feijão com jabá que as mães fazem, acompanhado de um bom bife invada, como num encanto, ao mesmo tempo, o olfato e o paladar dos estudantes, lhes mostrando que é hora de parar de comer o bife do olhão e comer um bifão de vaca. Dormir tarde, acordar mais tarde ainda; ser abraçado e chamado de futuro doutor pela família e os amigos, além de ser convidado pras festinhas e apresentado à filha do vizinho que acabou de brotar e que sonha em casar com um doutor.

Voltando do devaneio e vendo que todos os colegas já haviam arrumado seus pertences pra viagem, Realista tomou uma decisão:

—Aqueles dez cruzeiros guardados a sete chaves irão salvar as suas férias.

—Mas como? —Pergunta Otimista. —Nem o mais otimista dos homens poderia, com dez cruzeiros, conseguir uma passagem pra Macapá.

—Vou dar um jeito! —Disse Realista. —E sai pra resolver o problema.

Dias depois, os dois republicanos se encontram em Macapá, mais precisamente lá na Fazendinha, onde, numa roda de samba, a turma cantava “República, república, ai que saudade do meu tempo de república”, de Luiz Ayrão:

—Ei, parceiro. Como é que tu chegou aqui? E o problema da falta de dinheiro? —pergunta Otimista.

—Foi fácil. Toda vez que sonho com a minha futura sogra, a tua mãe, dá cobra no jogo do bicho… Joguei cinco cruzeiros e deu na cabeça. Daí, procurei o seu Orlando, lá na Representação do Território, em Belém, e ele me conseguiu uma passagem no Araguari. Como o meu pai é amigo do Marapanim, o comandante do navio, comi do bom e do melhor durante toda a viagem. Além disso, tu achas que eu ia deixar de comer o feijão da mamãe, o camarão da Fazendinha, jogar bola, tomar uma gelada “canela de pedreiro” e ficar sem ver as morenas mais lindas do mundo, tostadas de sol, com esses biquínis minúsculos? Só se eu fosse doido ou trabalhasse na SOSP!

  • gostaria de saber de quem é a musica?? “Deixa a folha do tipi cair, deixa a folha do tipi cair, deixa a folha do tipi cair, que eu faço um chá pra você dormir”.

  • Antonio Hilberto
    Olá Cléo
    Faço parte de sua história e tudo que você sita no seu comentaria foi real amigo vencedor me orgulho de você.
    Um abraço
    Beto

  • Olá, alguém sabe informar o cantor e o nome da musica “Deixa a folha do tipi cair, deixa a folha do tipi cair, deixa a folha do tipi cair, que eu faço um chá pra você dormir” que foi citada na crônica? Desde já muito obrigada!

  • Bom texto que reflete bem o drama dos estudantes amapaenses em terras outras. Talves se não houvesse tantas dificuldades, não daria o real valor ao esforço em estudar fora do Amapá.

    • Poucos foram os jubilados. O amapaense sempre deu show lá fora. Nossos professores (Edésio, Bento, Aldeobaldo, Benevides, Munhós e outros tantos sempre nos passaram os melhores ensinamentos).

  • Gostei muito da cronica.
    Ela tem um certo humor e esta certo: Não há nada melhor que passar as férias em Macapá^;^

    • É verdade! Além disso, uma combinação de fatores nos leva a sentir saudade: o feijão da mamãe, os banhos e os amigos. Valeu! Espero que você também mande sua crônicas pra Alcinéa. Você escreve muito bem.

  • Quando morava aí no Amapá tinha dois colegas de trabalho que quando estudantes em Belém para não fugir da regra, moravam em república e viviam numa pindaíba toda.
    E toda quinta ou sexta feira não sei um grupo de umbandistas iam fazer um despacho no cruzamento da rua onde ficava a república dêles, e eles ficavam olhando atraz da fechadura quando o ritual terminava e iam embora e deixavam lá o banquete para os orixás aí eles abriam a porta e saiam em desembalada carreira e apanhava a galinha assada e as pingas e às vezes até velas que era pra usar quando faltasse energia elétrica.
    A coisa tinha virado rotina que os despachantes ficaram algumas vezes de campana que era para ver se pegava algum surrupiador de despacho.
    Situação cômica heim?

  • Bom dia Cléo,sua crônica é o retrato da realidade vivida pelos estudantes em Belém e outros estados do Brasil, um

    • É verdade, Ilka. Até hoje, salvo alguns casos, sair de Macapá não é fácil. O que mais sentimos falta é o modo de vida que temos (visitar os amigos,jogar conversa fora até tarde) e as comidas que gostamos. Abração.

  • Olá Cleo, é um prazer.
    Gostei muito. Passei por tudo isso nas decadas de 70 e 80 quando estudei em Belém.
    As vezes fico refletindo, será que passei mesmo? e que hoje etou em Sao Paulo passando a quase que a mesma situação, sem dinheiro, morando em republica e com muitas contas por pagar. Me considero um eterno estudante. Atualmente estou fazendo doutorado e com muita vontade de voltar logo. Saudades do meu lugar.
    Abs,
    alvaro
    Abs,
    Alvaro

    • Caro Álvaro, a vida nos reserva alguns momentos como esse. Tenho duas irmãs e uma cunhada que estão fora do país, buscando o mesmo título que vc. É uma barra. Mas sei que vale a pena. Sucesso e que Deus te proteja.

      • Caro Cleo, muito obrigado pelo incentivo.
        Sou muito amigo de sua irmã a profª Zenaide da UNIFAP.Transmita meu abraço a ela e as suas cunhadas.
        Abs,
        Alvaro

  • Ôps! Nas respostas com o nome da Mara (aos amigos Aloísio, Ruy e Cristina), entendam-se como meus. Obrigado!

  • Parece que naquele tempo a dificuldade fez com que muitos dessem mais valor no que tem hoje. Parabéns amigo por mais uma maravilha!

    • Olá, Mara.
      Concordo com você. As dificuldades pelas quais passamos (ontem e hoje, e não são só materiais) facilitam a valorização do que temos, inclusive a tomar decisões com equilíbrio.
      Um abraço.

    • Oi, Mara! Saímos daqui, em busca de um futuro melhor. Pra mim, foi só o tempo de conseguir a graduação, pois o feijão da mamãe falava mais alto. Aí, entre choros e alegrias, voltei pra cá numa chuvosa manhã de julho. fiz questão de ir pra casa, a pé, sob a chuva> A cada passo, sentia como a chuva lavava minhas mágoas e renovava minhas esperanças. Beijão do fã.

  • Olá Cléo,
    A mensagem, como sempre, vem atingir em cheio a todos que viveram estes momentos dificeis de república. Não morei em república pois tínhamos casa em Belém, porém, visitava várias delas, inclusive uma que tinha na Vila Farah ( na década de 70 ), constituida de estudantes Amapaenses e Maranhenses, às vêzes o almoço eram 4 ovos fritos e um litro de farinha, mas a peteca não caía, a maioria se formou, seja pela Escola Técnica, muito procurada, em Macapá não tinha cursos de Edificações, Eletrotécnica, Agrimensura ou Estradas e iam buscar na morena Belém, o mesmo acontecia com o nível superior. Hoje está mais fácil, já não é necessário se aventurar no Araguarí, Itaguarí ou avião da FAB, tem faculdade para todos os gostos e condições em todos os lugares. Tenho certeza que sua crônica trouxe grandes recordações a grande parte dos Amapaenses que hoje ajudam a desenvolver o Amapá, que labutaram e hoje são exemplos a serem seguidos por muitos por seu denodo e persistência na busca de um ideal.
    Sds,

    • Grande Maestro Ruy… também és desse tempo. Você, que bem regeu a orquestra do nosso Juventus, também venceu lá fora e empresta o teu talento ao Brasil, na área que muito bem dominas. Estes parcos escritos também são uma homenagem a gente igual a você: talentoso e honesto. Juventus sempre!

  • Oi Cléo, lindo teu texto… alguns da minha família passaram exatamente por isso. Eu tive que esperar a UNIFAP…

    • Oi, Cristina. É verdade. Saudade de vc. Ainda não desistimos de te ver no Movimento Poesia na Boca da Noite.

  • Cléo da memória fotográfica, bela crônica, a turma que estudou em Belém deve ter recordado dos bone e maus momentos com uma saudade gostosa. Beijos.

    • Oi, Fernanda Le Clér (A Deusa da costura). Volta logo, pois você é insubstituível no Movimento. Obrigadão pela participação. Bjos.

  • ah!lembra do Isidoro Pia-pau,funcionário do Basa? nosso camarada(tucuju da gema)que dava a dica do dia que iam pagar a bolsa.Era sair do Basa e atravessar pro bar do parque bem na esquina e se sobrasse algum troco uma voltinha lá no CHUÁ kkkkkkk.um abraço

  • Caro amigo Cléo,q saudades desses tempos,ainda hoje mantenho o hábito alimentar mais comum e possivel do nosso tempo de republicano em Belém, o famoso S.O.S,HEHEHE. Um abração

    • É Mauro. Tempos maravilhosos. E pensar que um dia sentiríamos saudade disso tudo, né? Fedido, mas divertido. É como disse Luiz Ayrão: “Hoje a barriga burguesa chora de saudade”.

  • Amigo Cléo,
    Parece que você pegou a mania do amigo Sapiranga: fica fazendo essas crônicas, e a gente começa a remexer nas memórias, relembrando aqueles tempos em não havia curso superior em Macapá, e muita gente tinha que se mandar. E nessa revoada, muitos retornaram e outros permaneceram na diáspora. Mas sem esquecer das origens.
    Pois é, lá se vão 35 anos, e muita água passou por debaixo da ponte.
    E as lembranças de muito estudo, de luta, de dificuldades, perseverança. A bolsa de Macapá geralmente só saía no meio do ano. Mesmo mixuruca, era aquela festa. Uns saíam do Basa e iam direto pro Biriba Bar (pra quem mora e pra quem morou em Belém, ali na confluência da Rua 1º de Março com Carlos Gomes); esses eram os otimistas. Outros, os realistas, pegavam outro caminho: pra casa, que havia contas a pagar.
    O crédito educativo era outra fonte que não era macaco gordo, mas quebrava o galho. E bota galho nisso. E quando o dinheiro escasseava? Bom, aí a turma começava a arribar e fazer visitas na hora do almoço.
    Hoje, a república ficou pra trás, mas representou muito, principalmente pra quem não tinha onde ficar, e foi também uma forma de aprendizado de convivência.
    Vou parando por aqui, senão acaba saindo outra crônica.
    Um abraço, amigo.
    Aloisio
    P.S. Tô chegando no início de agosto.

    • Mestre Aloísio… vc também é daqueles que fizeram essa viagem. Graças a Deus que conseguimos nos formar e ajudar os demais parentes. Tempos difíceis, mas maravilhosos pelos resultados conquistados. Ao chegares aqui, vamos marcar aquele almoço, ok? Abração!

  • Um pouco de covardia, um pouco de necessidade, não sei, me impediram de estudar em Belém. No entanto, conheço muitas pessoas que lá passaram a pão e água nas repúblicas (às vezes, um ovo cozido era o almoço) e hoje ocupam altos cargos profissionais. Essas pessoas sofreram, mas garanto que sentem saudades do tempo das vacas magras.
    Eu também gostaria de ter vivido esta experiência.

    • Amigo Roque, não creio que seja covardia. Vou mais pelo lado da dificuldade em se deslocar pra fora de Macapá, pois era muito difícil. Conheço gente que até chegou a passar no vestibular da UFPª, mas não teve como se sustentar em Belém.

    • Prezado Roque,
      Não nos conhecemos, mas permita dizer-lhe algumas palavras.
      Concordo com o Cléo quando ao que você chama de covardia. Na vida, somos forçados, muitas vezes, a fazer escolhas, conforme as circunstâncias. Existem coisas que escapam ao nosso controle, por mais que tentemos mudar. Aí, temos que fazer como diziam o Chico (“mas, eis que chega a roda vida…”) e o Zeca Pagodinho (“Deixa a vida me levar…”).
      Você diz que não teve essa experiência, mas teve outras, que também lhe enriqueceram como ser humano.
      Um abraço.

      • É verdade. Não fiz Medicina na UPFA, mas fiz Letras no Núcleo da UFPA, em Macapá.
        Meu pai faleceu exatamente no ano em que concluí o 2º grau e fui obrigado a “me virar” para ajudar no sustento da casa. Hoje não sou médico, como era meu sonho, mas não tenho do que reclamar da minha vida profissional.

        • São coisas da vida, Roque. Que bom que você deu outro encaminhamento na vida, e com certeza descobriu outras coisas. Inclusive novos amigos.
          D aminha parte, concluído o curso de Economia (1980), eu queria fazer mestrado em Economia, mas na época não havia nada em Belém; os filhos foram chegando e aí você tem que se virar pra garantir “o leite das crianças”.
          Acabei me especializando, na prática, em orçamento público (sou servidor do Estado do Pará, aguardando aposentadoria).
          O tempo passou, cheguei aos 60 (ou 6.0, como a turma gosta de dizer) e, como diria Jackson do Pandeiro, “os meninos tão criados, satisfez o meu desejo, mas continuo catando caranguejo”.
          Iniciei e estou concluindo outra graduação, em História, na UFPA. Como diria Cazuza, “o tempo não pára”.
          Um abraço.

          • Mestre Aloísio… bem lembrada a música do Jackson. Na infância, eu a escutava muito embora não entendesse porque ele tinha que continuar no mangue.

  • Cléo das saudades, quantos corações ficaram apertadinhos ao ler tua crônica. Um tempo onde dificuldades se misturavam com sonhos. Tempo das viagens de navios, dos muitos ovos no almoço e no jantar, também, das famílias chorando no porto, na despedida. Macapá cresceu, vieram as faculdades e universidades… Tudo está mais fácil para os estudantes de hoje.
    Quanto aos sonhos… Ah, os sonhos…!
    Grande abraço, amigo, adorei!

    • Realmente, Deusa das Letras. Mais uma vez vc tem razão. O sonho de uma vida melhor, compensava o tempo em que passaríamos sob os grilhões da dificuldade. O choro era um só, ajudando a encharcar o trapiche. Às vezes, em pleno verão, parecia maré lançante, dada a quantidade de lágrimas. Mas, graças a Deus, tudo se resolvia, a partir da colação de grau, póis era só chegar formado em Macapá e conseguir um bom emprego. Bjos e até sexta!

  • Amigos não sou dessa época, mas, de toda sorte, pessoas importantes em minha vida o são: Teles (tio), Dilson Ferreira, Lamarão, Brazão, Dewson Ferreira, Eli Pinheiro…

    • Amigo Almir, também sou desse tempo. Realmente essas pessoas citadas por vc fizeram esse trajeto, inclusive meu professor de matemática, no IETA (Dr. Teles). Obrigado pela participação. Você faz falta na noite musical. OBS: Manda teu fone pro meu email, pra gente conversar: [email protected].

  • alcinea, como grande admirador do seu trabalho, gostaria uma divulgação do meu blog desopilandopeloamapa.blogspot.com
    abraço e parabéns pelo site

  • Cléo,
    Muito legal!! Saudade dessas histórias. Acho que no Amapá em toda família tem alguém que em busca do sonho vivenciou a saudade de casa e do carinho da família. Grande abraço meu amigo.

    • Amigo Róbson… creio que tens razão. Naquele tempo, quem quisesse fazer um curso superior, tinha que sair de Macapá, porém, sem nunca deixar Macapá sair da pessoa. Obrigado, amigão, pelo incentivo.

  • Não sou desse tempo, pois aqui em Macapá já existem vários cursos superiores, o que evita que muitos amapaenses saiam daqui. Porém, o texto revela a dificuldade que os estudantes experimentavam fora daqui. Mas arremata com uma pitada de humor, o que é ótimo. Realista, mas otimista. Legal!

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