Cronistas do blog

Um pequeno gesto
Cléo Farias de Araújo

Lulu era o tipo de rapaz que muita gente poderia dizer que “batia na trave”, como se diz no futebol. Ainda muito pequeno, começou a trabalhar para ajudar a família, fazendo pequenos serviços. Sempre estudou em escola pública e, embora muito pobre, nunca desistiu de se tornar doutor, para ajudar ainda mais seus parentes e amigos. E foi assim, subindo, com a graça de Deus, cada degrau da escada da vida, que conseguiu passar no vestibular e estudar numa Universidade.

Foi embora pra Belém. Se ele já passava dificuldades em sua cidade, lá é que viu “a porca torcer o rabo”. Ali, morava “de favor” e o dinheiro que ganhava era rapidamente consumido pelas passagens de ônibus e SOS (sardinha, ovo e salsicha). Ele nunca comprava as apostilas: preferia transcrever para o caderno o material de alguém, pois não tinha como gastar com esse “luxo”. Pra driblar a falta de dinheiro, ficava intermináveis minutos, com o polegar pra cima, pedindo carona na esquina da Av. Nazaré com a Rua Castelo Branco, em São Braz. E assim ia vivendo.

Emagreceu, por conta das dificuldades da cidade grande e só se alimentava melhor quando ia a algum aniversário. Não aguentava mais de saudade da família e das coisas de sua cidade, mas só voltaria a aproveitá-las ao final do curso.

Falando em dificuldades, uma a mais foi acrescentada ao vasto elenco que já possuía: Por obra de um professor elitista (que viva dizendo que o curso de Direito só deveria ser frequentado por pessoas de família tradicional e não por um qualquer), teve que estudar noites a fio, para se formar com os demais da turma. Porém, por conta das greves de professores, o dinheiro da bolsa que recebia, acabou e, em que pese o esforço de um ex-professor seu, dos tempos de IETA, aquela imprescindível ajuda não foi mais renovada.

Lulu ficou, como diria Nélson Gonçalves, entre a cruz e a espada: abandonar tudo e deixar que o fracasso fosse verbete marcante em seu dicionário ou suportar o que viesse, pois maiores são os poderes de Deus? Escolheu o mais difícil, pois, igual caniço de lamocim, cabôco papa-açaí se curva, mas não quebra. Cantava no “Beco do Velho Oeste”, juntava garrafas, cobre e alumínio pra vender. “Só não foi guia de cego”, como na música “Tempo de menino”, de Ary Lobo.

Ele concluiu o curso, conforme suas dificuldades permitiram. Colou grau, antecipadamente, na secretaria da Faculdade, pois não tinha como alugar beca, comprar anel e tudo o mais. O pouco dinheiro que possuía, preferiu comprar a passagem de volta pra sua terra, pois passaria as festas de fim de ano com os seus. Já se arrumando pra voltar a sua cidade, recebeu uma carta, que, num trecho, dizia:

“Não temos como ir aí te ver e participar da tua colação. Mas vai lá e faz bonito. Segue o fruto de uma coleta, feita entre seus familiares e amigos. Foi tudo o que pudemos juntar. Então, corre pros Correios e pega essa grana, pra festejar. Ao subir no palco do Teatro da Paz para receber o canudo, sinta-se envolvido pelo desejo e orgulho de cada um de nós, que ainda não pudemos cursar uma faculdade, mas que não perdemos essa esperança”.

Após pegar o dinheiro e já que não participaria das solenidades, decidiu que usaria aquela verba pra resolver um sonho alimentado desde o início do curso: entrar e fazer uma refeição decente naquele restaurante, cuja porta tantas vezes testemunhara suas necessidades e esperanças.

Antes disso, porém, entrou na igreja da padroeira e agradeceu pela ajuda recebida há tanto tempo, principalmente pelo grau conquistado. Ao sair da Basílica, viu um velhinho, na calçada, pedindo esmola. Lulu só tinha aquele dinheiro da coleta e o do ônibus que o levaria ao cais do porto, onde sua pouca bagagem já o esperava para retornarem à terra querida.

Mais uma vez o dilema surgiu em sua vida: fazer o bem a alguém ou saciar um desejo acalantado há muito. Lulu ficou um incontável tempo, daqueles de relógio grande, olhando o velhinho e o restaurante. Sua mente gerara um turbilhão, como num caleidoscópio, em que se misturavam o rosto do mendigo e o letreiro do restaurante. A sua fome ou a dos outros: qual saciar?

Pensou que aquela pessoa precisava mais que ele e que aquele seria o último dia de fome na sua vida, pois voltaria pra sua cidade e conseguiria um excelente emprego. Mas não via muita esperança pro mendigo, que ainda passaria muitos dias de necessidade e ele não estaria mais ali pra, uma vez ou outra, prestar seu auxílio. Foi então que, olhando pra dentro da igreja e ouvindo os sinos, lembrando que no Natal muitos corações se abrandam, tomou uma decisão: Pegou todo o dinheiro que recebera dos amigos e entregou ao mendigo. Este, ao receber a ajuda, levantou o rosto e seus olhos, de um intenso azul, disseram tudo. Foi um silencioso agradecimento que pareceu durar um século e que não precisou de qualquer palavra. Por algum motivo, o jovem nunca mais esqueceria aquele olhar.

Lulu foi embora. Estranhamente, não ficou com cara de sonho não realizado ou de decepção por mais uma vez não poder entrar naquele estabelecimento. Assim, atravessou a praça e caminhou pela calçada que o levaria ao cais. Parou em frente ao restaurante, “apenas pra ver como era”. O cheiro das iguarias, principalmente o da maniçoba, fizeram sua boca encher de água.

Após olhar pra dento daquela casa e ver que o porteiro já o via com desconfiança, decidiu ir embora. Aquilo ainda não era pra ele, pensou. Em sua cidade, comeria tudo o que as privações lhe suprimiram nesses anos todos. Depois de empregado e ganhando bem, voltaria àquele lugar. Nesse momento, recebeu um toque no ombro direito. Ao olhar pra ver quem era, deparou com um senhor bem vestido, com um terno quadriculado de casemira inglesa, nas cores verde-musgo e vermelho, cujos olhos de um azul inesquecível, fez Lulu lembrar de alguém que vira recentemente. Ouviu, então, daquela pessoa as seguintes palavras:

—Oi, amigo Lulu. Desculpe meu atraso. Normalmente não procedo assim. Mas nessa época de natal, você sabe: tenho muito trabalho. Vamos! Vamos entrar e jantar, pois sei que nós ainda temos muita coisa pra fazer depois. Você não se importa se desta vez, eu retribuir a gentileza, não é?

  • Valeu Cléo! Essa crônica me fez lembrar a turma da década de 70 q saia de Macapá para Belém via “barcos do Governo”, para tentar o sucesso no vestibular. Nosso “cafôfo” eram as “repúblicas”, comíamos na “lata”(sardinha, kitut, salsicha) c/farinha e as mangas que caiam e eram disputadas no “tapa” com os mendigos e os moradores de rua;o sanitário, o banheiro, os pratos, o sabão,a bacia etc., eram comunitários. No “findú” chegava a salvadora “bolsa” com as quais comprávamos os livros. Graças a Deus, durante o Natal algumas famílias nos convidavam para cear(tenho certeza que a pedido de Papai Noel). Valeu Cléo!

    • É isso aí, Sabá. Mas, graças a Deus, conseguimos vencer. Mostramos lá fora do que o amapaense é capaz. Bem preparados por nossos professores, concorríamos em qualquer lugar do Brasil e chegávamos lá, com louvor.

  • Pelo que percebo, naquele tempo só havia a sofrida bolsa do TFA e o crédito educativo para quem era universítário. Hoje, com tanta bolsa e ninguém querendo nada, jacaré se pergunta: porque é que eu não nasci homem? Pelo menos não havia o perigo de ser transformado em bolsa.

  • Cléo, parabéns e aplaudo de pé essa bela crônica. Vc é danado, guardou-a para o momento certo, que é o período natalino, quando nossos corações estão sensíveis às necessidades dos nossos irmãos carentes. Na leitura dessa crônica, parecia que estava vivendo aqueles fatos, não por ter estudado em Belém, mas pelas histórias que meu cunhado Paulo Matos contava (chega até a ficar nostálgico). Toda aquela dificuldade foi compensada com que todos são hoje e representam para o desenolvimento do nosso Estado. Abraços e FELIZ NATAL, extensivo a sua família.

    • Grande poeta Santanense…não só os que estudaram fora, como os familiares viveram esses momentos. No ato da renovação da bolsa de estudo, era um Deus nos acuda, pois tínhamos que correr com a documentação. Hoje, a net abrevia as coisas. Mas valeu a pena. Feliz Natal a vc e ao teu povo.

  • Às vezes, como diz o Chico, me pego cantando, sem ter nem porque. Creio que são estados d’alma, que se manifestam de forma simplificada, talvez refletindo um sentimento de momento. Mas nada que se compare à verve criativa no desabrochar de uma crônica (me perdoem os poetas) a rebuscar, de forma descontraída, vivências que muitas vezes se encontram nos refolhos da alma.
    Talvez por preguiça, ou por falta de competência, mesmo, não consigo traduzir esses sentimentos, nem em prosa nem em verso. Aí, surgem, fluindo como uma pena levada pelo vento, essas reflexões, que nos remetem a situações – me vejo em vários momentos de sua crônica – percebendo, também, o quanto minha pequenez ainda é grande nessa jornada, mostrando que ainda há um longo caminho a percorrer.
    Parabéns, amigo, por mais um texto que mexeu, como se percebe pelos comentários emitidos, com as lembranças e os sentimentos. Creio que tudo isso sejoa fruto desse momento pelo qual passamos.
    Um abraço do amigo.

    • Mestre Aloísio, imagine só se vc tivesse o dom da escrita (como queres fazer crer, pela tua simplicidade). Texto altamente técnico o teu, não me deixando outra alternativa, a não ser a de te desejar FELIZ NATAL e um 2012, com saúde perfeita e vida longa, extensivo à família.

    • Mestre Aloísio, o comentário que saiu c o nome da Mara…receba com carinho e admiração deste discípulo. Vc escreveu como se fosse o próprio Chico: um autêntico domador das letras. BOAS FESTAS e um 2012 ainda mais completo, nos quesitos saúde e vida loooonnnga! Obrigado pelas palavras.

  • Cléo, essa crônica é a pura realidade de quem precisou estudar fora em épocas passadas. E mesmo enfrentando muitos obstáculos, elas nunca desistiram dos seus sonhos. Por isso, sou fã de cada uma delas.
    Parabéns!!!

    • É verdade. Sonhar não custa nada. O que custa é a realização. Feliz Natal pra vc e família, com um 2012 maravilhoso.

  • Cleo, sinto-me meio covarde por não ter enfrentado essa verdadeira odisseia homérica. Deve ter sido uma experiência dolorosa e, ao mesmo tempo, prazerosa. Por isso mesmo, é relembrada com nostalgia por todos os atores que conheço.

    • Eh, Roque. Há algum tempo eu não via a tua participação. Não foi por covardia que não atuaste nesta peça. Por certo, foste daqueles que ficaram pra trabalhar e ajudar outros a se graduarem. Mas esses atores anônimos também figuram no enredo: foram aqueles que fizeram a coleta, cujo dinheiro chegou nas mãos de Santa Claus, certo? Pela postura que exibes, tenho certeza que também enches de orgulho os teus. Boas Festas, com as bênçãos de Deus.

  • Caro amigo Cléo,
    Cara hoje vc se superou com essa linda mensagem.Confesso que emociona a todos que lerem. Tem um pouco de todos nós que sofremos as agruras do período de estudante em Belém.Obrigado por fazer eu me sentir também nesse contexto. Um abraço.

    • Amigo Mauro…ao escrever esta história, lembrei de muitos amigos que foram atores nessa peça. Graças a Deus todos nós conseguimos. É como disse o Obama: Yes, we can! Feliz Natal com tudo o que temos direito.

  • Uma história de vida que dá significado às palavras, à escrita. Acho que conheço o Lulu, rsrsr e tenho por ele um imenso carinho e admiração!
    Que o papai Noel traga em sua carruagem, muitos pacotes de AMOR, com laços de solidariedade, compaixão, ternura, bem querer, justiça, cuidado com a VIDA… Tudo isso iluminado pela luz do olhar de quem sabe ser criança e vive todos os dias, como se todos os dias fossem natais.
    Feliz natal, Cléo e um doce beijo no seu coração!

    • Deus das Letras…sabes por que Papai Noel não vai trazer nada pra ti na carruagem dele, junto com os outros brinquedos? É porque ele fará um trenó específico, e o carregará com um lindo e maravilhoso presente, com entrega especial SÓ PRA TI. Quem tem a beleza e doçura na alma e espalha esse sentimento com seus pares, não poderia ser esquecida por Deus, né? Feliz Natal, com saúde perfeita e loooooonnnga vida.

  • Poxa, pegou pesado… Enquanto lia, ia passando pela minha cabeca uma historia muito parecida. Muito lindo. Desejo a vc e sua familia um NATAL muito feliz. Beijos

    • Valeu, amiga querida. Macapá espera a tua volta. Não esqueça da gente, por favor. Deus abençoe essa tua nova empreitada. Feliz Natal, extensivo à família.

  • Parabéns Cléo,
    Essa história tem uma mensagem tão linda e que, infelizmente, anda esquecida.
    Feliz Natal a todos!

    • Mara, querida e grande escritora, fico feliz com a tua participação. É como se eu tirasse na megasena. Brigadão.

  • É o cronica de muitos estudantes que foram para Belém.Um grande abraço e que o NATAL e o ANO NOVO seja de SAÚDE, PAZ,AMOR E REALIZAÇÕES, extensivo para toda a família.

    • meu irmão, se você permitir faço de suas palavras as minhas. Ao Cléo et familia “BOAS FESTAS”, Joyeuse anniversaire mon frère avec un peu de retard. Nous t’aimons beaucoup.

    • Amigos João e Ilka: vocês também fizeram essa viagem. Bem criados pelo seu Bené, também souberam enfrentar com maestria os percalços. Boas Festas aos dois e respectivas famílias, tanto em Brasília, quanto na França. Não entendi bem a parte em francês, mas assimilei que foi algo sobre o niver do João, pelo que me junto aos inúmeros votos de felicitações, com saúde e bonanças na vida de todos.

  • Querido amigo Cléo. Que essa crônica sirva de exemplo para toda essa “galera” mais nova acerca da dificuldade que era estudar fora do nosso Estado em tempos idos, bem como a força de vontade e responsabilidade dos alunos, em face da origem humilde de suas famílias que aqui na labuta, não deixava de lhes faltasse pelo menos o básico SOS. Hoje, Macapá possui muitas faculdades, vários cursos e muitos não querem P…. nenhuma com nada. Parabés!!! Vossa Senhoria como sempre, nos mostra a realidade relembrando o passado. “… A história é o Laboratório do bom Advogado… (Miguel Reale)…”

    • Amigo Almir, obrigado pela mensagem. Era assim mesmo: dificuldade brigava pra ocupar lugar na vida do Lulu e de outros estudantes. Feliz Natal p vc e família.

    • Valeu, Zé. É como disse o Ruy: muitos passaram por essas dificuldades. Ficar ali na Castelo c/ a Av. Nazaré, de dedo pra cima, pedindo carona, foi ‘script’ de muitos, independentemente do local de origem.

      • Complementando Cléo, ali também passava o ônibus da linha Universidade, e conhecer o cobrador era essencial para pular a famosa “Borboleta”. Na Vila Farah tinha uma república de estudantes Maranhenses e Amapaenses e um dia, próximo do final do mês vi o jantar preparado para 11 componentes: Farofa de 2 ovos fritos e 1 litro de farinha com café preto. Todos estão vivos, graduados, pós graduados e felizes. Que o Natal de Cristo traga paz e alegria a todos. Paz e Bem.

        • Morei no inicio dos anos 80 em uma república na Vila Farah e quase em frente a república dos Maranhenses da cidade de Bacabal,quase todos estudantes de medicina.Será que é a mesma que vc se refere no seu post?
          Desejos de um ótimo 2112 pra vc e sua familia.

  • Essa história é muito comovente e incrível. Ele passou por tantas dificuldades e mesmo assim ele ajudou uma pessoa e no final recebeu uma grande retribuição.
    Então o bom caráter não é para ser feito somente no Natal, temos o ano inteiro para realizar essas boas energias que podem mudar o mundo para melhor.
    Meus parabéns, meu querido e Feliz Natal pra vc.
    Me emocionei com sua crônica e espero que haja muitas outras.
    Feliz Natal! ^.^

    • Oh, querida, obrigado. Vc é uma pessoa de bondoso coração e sei que fazes muitas boas ações. Sim! É possível fazer boas coisas o ano inteiro. Às vezes a gente reclama da vida, mas esquece que muitos têm bem menos que nós e não esmorecem. Feliz Natal e obrigadão.

  • Maravilha Cléo,
    No bojo da crônica, a história sofrida de muitos brasileiros e por que não a de muitos amapaenses de sucesso.
    Na mensagem o gesto fraternal, entrar no Avenida ou fazer alguém feliz? A boa índole prevalece. Parabéns e feliz natal a todos em especial aos visitantes do Blog.

    • Ei, amigo Ruy…eu não disse o nome do restô…mas tens razão: era lá mesmo. Sabias que até hoje, passsados tantos anos, eu nunca entrei ali?
      Feliz Natal a vc, extensivo aos teus familiares. Obrigado pela participação ao longo deste maravilhoso anos. Fique com Deus.

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