Cronistas do blog

UM PEDIDO ATRÁS DA BOTA
Cléo Farias de Araújo

Era final de novembro de 1971. Léo só pensava em três coisas: no Natal, que pra ele, era a melhor época do ano; na mudança que ocorreria em breve, indo com a família, do bairro da Favela, onde moravam de aluguel, rumo a sua casa própria, no Jesus de Nazaré e em ganhar o long play do cantor Roberto Carlos que acabara de ser lançado, cuja capa era um desenho de seu rosto.
O Rei havia conseguido realizar um fenômeno: praticamente todas as músicas do disco eram sucesso. As que o garoto mais gostava, eram: “Detalhes”, “Debaixo dos caracóis” e “Se eu partir”. Mas ele sabia que eram canções apenas pra ouvir no rádio, visto que não podia comprar o disco. Afinal, todas as economias da família estavam voltadas para a construção da casa nova.

Filho de família pobre (10 filhos, ao todo), não possuía muitas roupas. Sapato? Só um. Seus cadernos eram de fabricação própria.

Às vezes o garoto deixava de ir a determinados lugares, pois não tinha como se apresentar condignamente (suas roupas estavam gastas; seu sapato, só arame). Certa vez, um colega de escola falou bem alto:
—Vamos fazer uma coleta pra comprar um sapato pro Léo. Vejam só o estado desse… é verlon ou kerandá?
— É verdade!—disse outro colega.— De tão gasto, não se vê mais o nome.

Chegou dezembro e seu sapato olhava pra ele, sorrindo por todos os lados. Léo usava um “pisante” de borracha, marca Kerandá, que, de tão velho, já não parecia mais um calçado, com tanto remendo (o “bicho” rasgava e ele consertava com arame). E, vejam bem, antigamente se “pernava” muito (como se diz na gíria).
No verão, era uma quentura só nos pés. No inverno, a água entrava pelos furinhos do rosto do sapato e transformava os pés num chulé só. Apesar disso, ele brincava dizendo que era o chafariz da praça Veiga Cabral. Não reclamava, mas, secretamente, gostaria de ter um calçado melhor, ainda que de segunda mão.

Já no novo bairro, mas com saudade das antigas amizades, costumava sentar embaixo de um cajueiro, em frente à casa, nos finais de tarde, quando vinha dos jogos de bola. Naquele lugar, conversava com os novos colegas e, quando sozinho, meditava sobre o que aconteceria no Natal.

Numa dessas tardes de dezembro, com o inverno já se apresentando, onde o vento forte e o acúmulo de nuvens presumiam uma respeitável chuva, Léo viu uma folha de papel vermelha, sendo levada pelo vento, rolando na rua de piçarra. O menino olhou e não viu viv’alma. Correu, pegou o papel e ficou aguardando alguém vir reclamar o objeto. A noite chegou e, vendo que ninguém aparecia para buscar a folha, o garoto a levou pra casa.

No dia seguinte, sabendo que sua residência não possuía enfeite natalino, pegou tesoura, goma (de tapioca), um pedaço de papelão e a folha laminada da tarde anterior e pôs-se a fazer um enfeite. Percebeu que o mais prático seria uma bota.

Ao terminar, satisfeito, pregou sua arte na porta de entrada da casa. Pronto! Seu lar respirava Boas Festas. Desde aquele momento, quem trafegasse por ali, perceberia que havia magia de Natal e que as pessoas que residiam naquela casa eram muito felizes. Atrás da bota, mas sem que ninguém visse, colou esperançosamente uma cartinha, com seu pedido.

Os dias passaram e nada acontecia. Chegou o dia da véspera de Natal e… tudo na mesma. As horas passavam e nem o carteiro apareceu.

Então, Léo já todo arrumado para ir à missa do galo, ao olhar embaixo da sua cama, para colocar no pé o kerandame (kerandá+ arame) ele estava ali: um sapato de couro, novinho!

O menino se abaixou, esticou lentamente a mão e pegou o calçado. Olhou timidamente em baixo dele e o número 37 correspondia ao que usava. Admirado com a sucessão de coincidências, resolveu experimentar o sapato. Mais um fato convergente: coube certinho no seu pé. Foi quando se deu conta que o sino da igreja dava suas badaladas, chamando os fiéis a comemorar o nascimento do Salvador.

E lá foi ele, todo prosa para a missa. Olhando mais para o novo sapato, que para o caminho a sua frente, talvez com medo de que, à meia noite, aquele calçado virasse abóbora, ou, pela magia do momento, que o objeto saísse de seus pés e fosse voando, rumo ao pólo norte, mais precisamente para as montanhas de Korvatunturi, na Lapônia/Finlândia, a casa do Papai Noel.

Mas, felizmente, nada disso aconteceu e Léo ficou definitivamente com o calçado. A partir daquele ano, sempre enfeitou sua casa para o Natal e nunca deixou de pendurar uma bota, feita de papelão, coberta com papel laminado vermelho, como agradecimento pelo presente. Até hoje ele não sabe, ao certo, de onde realmente veio o sapato.

  • Olá venho mais uma vez aqui neste blog amigo, de modo a retribuir a visita dada…….
    Sou o Marco,adoro imenso fóruns , passo muito do meu horário a improvisar o meu projecto online também a corrigir legendas para imenos fóruns,talvez até já viram alguma série com legendas elaboradas por min!
    E por agora chega, pois trabalho em turnos e e vou descansar um pouco.
    Até outro dia………….

  • Eu amei a história.É incrível como suas histórias sempre me impresionam e me fazem refletir.Era um garoto pobre que no natal não queria desperadamente um brinquedo.Mas sim,um sapato,pois o seu já era só remendos.É uma história um pouco triste,mas o final foi emocionante.Eu amei a história.Meus sinceros votos e elogios.

  • Torna gratificante falar e ouvir coisas boas de tempos maravilhosos ao meio de tantas desiluzoes, enganaçoes e outras coisas que há. FELIZ NATAL A TODOS>

  • Oi, Cléo.
    Demorei a ler sua crÔnica porque estava cheio de trabalhos da faculdade (ufa! Acabou! Agora só no ano que vem) e não queria fazer uma leitura apressada.
    Gostei do texto, bem construído, tive a impressão que foi produzido num momento de muita tranqüilidade. Até fiquei na dúvida se o Léo era você. Bem apropriado para a época natalina, o ano chegando ao fim, o pé sendo tirado do acelerador, essas coisas que só o fim de ano proporciona.
    A referência do disco do Roberto Carlos foi interessante.
    As crônicas, da mesma forma que as fotografias, também revolvem as lembranças adormecidas. Foi o caso do caderno. Também fazia os meus. A gente ia à mercearia (ou taberna), comprava aqueles cadernos de papel almaço, cortava ao meio (com faca ou tesoura), pegava uma agulha, enfiava uma linha e costurava o caderno. A parte de baixo colocava-se no meio da de cima. Pronto! Lá estava mais um caderno.
    Quanto à goma, às vezes a gente de Arrozina (lembra disso?); colava legal.
    Você me lembrou também do cajueiro. Só que o meu era no quintal.
    Tem a bola na rua, também, mas o tema dá pra fazer outra crônica.
    Mas uma lembrança bem gostosa que tenho até hoje do Natal é de um doce de mamão verde que a minha mãe sempre fazia. Há algum tempo atrás encontrei em um supermercado aqui em Belém, mas depois pararam de vender. Também hoje náo posso mais abusar do açúcar. Mas que é uma lembrança bonita, lá isso é.
    E vou ficando por aqui, que o espaço é pequeno.
    Um abraço.

    • Oi, Aloísio. De fato, para o Leo ser eu, a princípio bastaria acrescentar a letra “C”. Mas fica a lembrança de coisas que muitos moleques pobres passaram. De caderno tu também entendes, pois era assim mesmo que fazíamos. Aqueles cadernos Avante, eram só pra filho de rico. O doce de mamão era com coco. Também botávamos mamão verde na sopa. EHHH tempo bão, cumpadi! O mais importante é saber que estamos vencendo, pois nascemos nus e estamos vestidos, como certa vez me disse um grande sábio. Ao responder ao Mestre Milton e estendo a vc, faço a pergunta: qual o melhor presente poderá ter um discípulo, que a apreciação dos mestres? Tenho a esperança de que, sempre que a Néa tiver a audácia de publicar meus tropeços literários, vc e outros mestres possam me ensinar ainda mais, como sempre fazes: com firmeza e sinceridade. Obrigadão.

  • Estimado Cléo, sou suspeita para tecer qualquer comentário sobre seus escritos, visto que sempre admirei suas produçõs. É maravilhoso ler sobre o nosso passado, você faz o resgate com muita precisão. Nesse sentido, gostaria q você resgatasse aquelas tardes na favela regada de um céu vermelho (o sol se pondo),os pássaros voavam, pousavam em cima dos fios de eletricidade e cantavam. Resgate a televisão de papelão que cada dia era uma programação diferente porém real. Parabéns pelas maravilhosas lembranças da favela.

    • Oi, Mestre Milton. Obrigado pelo incentivo. Sobretudo, vindo de vc,o Rubem Braga amapaense. A história do sapato, embora o personagem não seja cinderelo, é verdadeira e parte dela ocorreu aí perto da tua casa, na Favela. Fico feliz em saber que vc leu a crônica e aprovou. Seu eterno discípulo não vê presente de natal melhor que as palavras de um verdadeiro MESTRE.

  • A magia de natal sempre se faz presente em nossas vidas. Muitas crianças pobres, ao se aproximar o natal, sempre esperam receber aquilo que, durante o ano inteiro, não puderam ter. E Deus, na sua infinita bondade, sempre concede esses pedidos.

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