O leite derramado
Ademir Pedrosa
Já perdi chave, dinheiro, celular, documento, guarda-chuva, óculos, e etc; o escambau–a-quatro. Perdi, por exemplo, a minha virgindade aos quatorze anos, num inferninho chamado Merengue, de tempos arredados. Minha companhia era uma princesa de ébano, bela, e não falava português – a mademoiselle. Nosso diálogo foi lacônico e gestual, e o meu frêmulo foi pras cucuias rapidinho…
O cabaré, que funcionava à noite, proibia a entrada de menores. Então nós costumávamos freqüentá-lo no horário vespertino; e quando o sol quedava no crepúsculo, saíamos de lá sorrateiramente – pelos fundos, com medo da polícia.
Quando fui a primeira vez ao Merengue, fui ciceroneado por dois amigos, Keke do Carmo e Luís Brasil, os dois já partiram para o andar de cima. Como o leitor pode notar, se perde também amigos.
Dias desses fui ao aeroporto aguardar a chegada de uma amiga. E pra eu não ficar, feito um pateta, a encher linguiça com as horas, me municiei dum bom livro para lê-lo, enquanto aguardava o voo que trazia a minha amiga. Devo dizer que o tal livro eu lia de intervalo em intervalo, como se intercalasse seus capítulos de acordo com o tempo que dispunha. Eu estava absorto na leitura, quando tocou meu telefone. Era a minha amiga ao celular, ligou para me dizer que perdera o avião.
Depois de fazer o check in – sua bagagem se constituía em uma pequena mala de mão –, distraiu-se numa livraria com os fartos títulos expostos nas prateleiras; quando deu por si, a companhia já tinha encerrado o embarque. Hoje, os aeroportos não mais chamam pelo alto-falante os passageiros para o embarque. Por conta disso, a minha amiga perdeu a viagem dentro, literalmente, do aeroporto. Acontece.
Tornei em casa. Quando lá cheguei, recebi outra vez uma ligação de minha amiga, ela me dizia que o seu próximo voo estava marcado às 14h do dia seguinte, e me assegurou que será a primeira a embarcar. Sossegue, disse-me, não vamos dessa vez perder a viagem. Nem a sua ao aeroporto, nem a minha à Macapá, aguarde-me.
Quando me preparava para ir ao aeroporto, procurei pelo livro de meu entretenimento de espera, e não o encontrei. Vasculhei a casa de canto a canto, e nada. Não tinha ideia onde tinha largado. Drogas!, será que eu perdi o livro no aeroporto, e não me dei conta disso? É quase provável, pois não recordo de ter me detido em outro lugar qualquer. Se o perdi, a chance de recuperá-lo é quase zero. Quem vai devolver um livro? Logo o último romance do Chico Buarque, Leite Derramado. Agora não adianta chorar o leite derramado, ironizei pleonasticamente.
A espera foi breve, minha amiga chegou pontualmente no horário marcado. Vestia-se elegantemente – de vestido, que é o traje mais feminino de uma mulher. Devo confessar ao leitor que minha amiga não é exatamente uma amiga, é uma ex- que perdi pela desdita da vida. Contei-lhe sobre o livro perdido, e ela ponderou: acontece.
Antes de deixar o aeroporto, vislumbrei a possibilidade, ainda que remotíssima, de recuperar o tal livro. Fui à seção de achados e perdidos da Infraero e indaguei sobre maldito livro, se alguém porventura não tinha achado. O homem que me atendeu, olhou-me gravemente por trás de seus óculos meia-taça, e me fez sentir-me um tolo, um ingênuo – palavra. Ele meneou verticalmente a cabeça do caderno de registro ao meu rosto, como se conferisse a autenticidade de minha tolice.
Porém, o homem me disse alto e bom som, de chofre: Leite Derramado; livro de Chico Buarque, encontrado às 23h e 45 minutos do dia de ontem. Pediu que eu assinasse o registro e me devolveu o bendito livro. Minha amiga celebrou minha sorte, e me deu, à queima-roupa, um longo e voluptuoso beijo na boca, na frente daquele senhor seriíssimo.
Pedi-lhe desculpas, como se tivesse cometido por descuido alguma obscenidade. Ele me olhou ainda mais desconfiado. Dei de ombros, afinal recuperei, de uma só tacada, o livro e a ex-namorada – ambos numa seção de achados e perdidos, se eu contar ninguém acredita.
Certo dia uma cigana – dessas, analfabeta, que leu a mão de Paulo Freire – disse-me ao ler minha mão, que eu sou um sujeito de sorte. Sou sagitariano do primeiro decanato, sinto-me um sujeito equilibrado, sem mais nem menos de bons e maus presságios. Já perdi e achei coisas do arco-da-velha, mas devo confessar ao leitor, que nunca, nunca mesmo, perdi a esperança…
4 Comentários para "Uma crônica"
“Eu E Minha Ex”
Júpiter Maçã
Composição: Flávio Basso / Marcelo Birck
Eu e minha ex no botequim
Falando sobre nossas vidas
As novas amizades, relações
Experiências, sacações
Foi quando eu percebi
Me incomodava a intimidade da ex
As novas ideias, discos, filmes
Diferentes de quando eu opinava
Eu e minha ex queremos amizade
Mas acho que eu não superei
Talvez ainda goste dela
Eu e minha ex na tempestade
Sob o mesmo guarda-chuva
Pelas alamedas de Porto Alegre
Do mercadão até o Bom Fim
Eu e minha ex queremos amizade
Mas acho que eu não superei
Talvez ainda goste dela
Eu e minha ex talvez um dia
Sejamos um só outra vez
Em outro planeta, dimensão
Circunstância, situação
Eu e minha ex queremos amizade
Mas acho que eu não superei
Talvez ainda goste dela…
Onde posso encontrar outras crônicas do Ademir?
Alcinéa, adorei a Crônica “Leite derramado” do Ademir Pedrosa. Publique sempre, estimula a agradável leitura. Saudações.
Meu caro Ademir, fomos colegas em uma época muito interessante aí em Macapá. Nos encontrávamos sempre na casa dos companheiros Micione. Quase todos tínhamos namoradas em Santana. Tenho lido suas crônicas nos blogs da Alcinea e da Alcilene. Esta, cujo comentário ora faço, está muito legal. Eu também escrevo crônicas, sem o seu brilho, é verdade, mas estou me acostumando. Moro em Recife, desde 1979, mas anualmente vou a Macapá e sempre pergunto pelos amigos da época. Nessas viagens tenho encontrado muitos deles. Falta você, o velho companheiro Rum, que não sei por onde anda.
Um abraço