A Favela no futebol amapaense

Milton Sapiranga Barbosa, especial para o blog

Sim, no tempo do amadorismo de priscas eras, o bairro  da Favela  tinha  dois  clubes  disputando os campeonatos organizados pela Federação Amapaense de Desportos(FAD).

cb_sao_jose-ap-5Um era o São José, do seu Messias, onde jogavam, entre outros, Bulhosa, Pantera, Jurandino (Carudo), Justo, Raminho e Mosquito, cuja sede ficava na esquina da Leopoldo Machado com a Presidente Vargas, mas um acordo entre Messias e Humberto Santos, levou o São José  para o bairro do Laguinho.

O outro era o Araguary Esporte Clube, sendo que este não tinha sede, a turma se reunia na casa de um dos atletas, escolhida aleatoriamente. Nesse tempo, Araguary e Fazendinha era o grande clássico da segunda divisão (Santa Cruz, Primavera, Guarany, depois Ypiranga e Santana, sem esquecer o Atlético Latitude Zero, também  integraram a segundona da FAD).

Sempre que Araguary e Fazendinha se encontravam o Glicerão ficava apinhado de gente. Mauro, Abiezer, Beto, Barata, Bento, Carneiro, Dioneto, Elionay, Ferramenta, Peteca e Palito (um carvoeiro bom de bola, que chegava sempre em cima da hora para jogar, pois antes precisava desmanchar suas caieiras)   e  Nolasco, eram alguns  dos integrantes do Araguary Futebol Clube. Pelo Fazendinha, destacamos Zezé (um goleiraço), Marinheiro, Flávio Góes, Valdir  e seu irmão Papaarroz (um cracaço, que batia penalty de letra) e Estrela.

Eu  gostava de estar entre a rapaziada do Araguary para ouvir as  histórias  das viagens que o time fazia pelo interland amapaense. Nolasco,  meu vizinho, era um jogador razoável, mas muito bom para contar histórias e rápido  para  fazer uma paródia, fosse qual fosse a situação, senão vejamos: certa vez, numa excursão a Mazagão, no tempo  em só se chegava ao município por via marítima, Nolasco não  foi  escalado de saída no time que iria  enfrentar a seleção mazaganense. Terminado o primeiro tempo, começa o segundo e o Nolasco no banco de reservas. Jogo já no final do segundo tempo, eis que ele  é chamado  para substituir um companheiro,  ele se negou e saiu-se  com essa : “eu fui  em Mazagão/ fiquei encabulado/ pois só comi feijão e ainda fui barrado./ quando jogo estava pra terminar / técnico veio me chamar pra entrar lá no gramado/ eu não sou doido e também não sou maluco/ pra entrar lá no gramado e jogar  cinco minutos.”

Doutra feita, eles  se reuniram e metidos na roupa de domingo, foram  a  uma  festa    no bairro do Laguinho (aquela época, já rivalizando com o bairro da Favela, por causa do Marabaixo e do boi bumbá). Todo mundo alinhado, festa animada, muita cocota no salão e eles de fora olhando, pois  o porteiro não deixou eles entrarem. Aí o Nolasco criou uma musiquinha, que tinha um trecho que dizia assim: “Fui numa festa lá no Mestre Julião/ deu meia noite o baile vai começar/  se  é  do Laguinho o porteiro manda entrar/ se é da Favela ele faz voltar”.

O  Araguary  é do tempo que se dava chagão (jogar a bola por um lado do adversário e correr pelo outro e contiuar a jogada – hoje drible da vaca), do avião ( hoje chapéu, lençol), por baixo da saia ( hoje entre as canetas), do xilique (joelhada forte na coxa do oponente e doía uma barbaridade (hoje chamam tostão). O Araguary e seus  integrantes, suas histórias e paródias são lembranças de minha infância feliz viviva no meu querido bairro da Favela.

No antigo bairro da Favela…

favela

Quem diria que o bairro Central de Macapá já foi assim? Pois é. A ponte – onde essas figuras estão fazendo pose – ficava na avenida Mendonça Furtado entre as ruas Jovino Dinoá e Odilardo Silva, antigo bairro da Favela.

Aí havia um igapó onde a molecada ia pegar peixinhos em vidros de soro (Não é, Sapiranga?). Naquela época os frascos de soro eram de vidro e a criançada usavo-os como aquário.

Reconhece as pessoas que estão fazendo pose na ponte?

A capelinha, o padre, escoteiros e molecada

Milton Sapiranga Barbosa, especial para o blog

Com  o encanto e o charme  de uma igreja do interior, a capelinha de capelinhaNossa Senhora de Fátima,  foi  construída  para arrebanhar fiéis  do bairro da CEA (atual Santa Rita), que crescia  de maneira muita rápida, até porque, funcionários da Companhia de Eletricidade do Amapá-CEA, estavam adquirindo  terrenos  no novo bairro e também como uma maneira de  diminuir  o número de fiéis da igreja matriz, que já estava ficando pequena  para comportar  o povo católico de Macapá e os que chegavam  de outros estados.

Os moradores da Favela, que trabalhavam de carpinteiros, pedreiros, pintores  e  auxiliares de serviços gerais, foram  convocados para atuarem na construção da  igrejinha,  num terreno próximo ao marco zero da estrada Macapá- Santana (atual Duca Serra), onde  hoje  existe o Hospital de Emergências, que já foi  o Pronto Socorro Oswaldo Cruz (como mudam nomes  de órgãos e logradouros públicos  nesta cidade).

Junto  com a  capelinha, foi  construído  um barracão/escola, que servia também  para reuniões  dos Marianos, das  Filhas  de Maria  e  para exibições de filmes. Ao  lado  da capela ficava  o campinho de pelada  e  nos fundos deste  construíram a  sede  dos  escoteiros São Maurício  (uma bandola 4 por 6 , com uma espécie de palco no alto,  que cabia apenas uma mesa de ping-pong  e uns 2 ou 3 armários, mas que era por nós orgulhosamente chamada de sede).

O padre  Salvador Zonna  foi o  titular da capelinha. Era um italianoneaeone de bom porte físico, com  uma fisionomia séria, de poucos sorrisos. Mas  era só fachada. Padre Salvador era boa praça, tanto que suportava as  traquinices  dos moleques Moacir, Mucura, Boquinha, Deverde e Tique-imbiga, este o mais danado de todos  e  que   era sempre  expulso  do barracão   tão logo o  filme começava. A expulsão  do Tique era o momento aguardado por todos, pois  antes de sair da sala, ele se virava no rumo do padre e gritava:  “õ,õ,õ,õ  bubagem.” E saía correndo na frente do padre, que atrapalhado pela batina e pela ligeireza do moleque, nunca pode dar-lhe um corretivo. Mas no outro dia já estava tudo bem entre o padre e o muleque, até uma nova sessão  do seriado  do Tarzan.

Como os escoteiros, em sua maioria, eram coroinhas   e ajudavam em todas as  atividades  promovidas pela  igrejinha, o padre Salvador  dava todo apoio ao  grupo de escoteiros comandado pelo chefe Madureira, tendo como chefes auxiliares Juracy Freitas (Jupaty), Orlando Brandão,  Duquinha  e Pedro Cardoso. Também pertenciam ao grupo de seguidores de Badem Power o Moacir, Ceará, Picolé, Diógenes, Boneco, Sapo, Grilo, Dejacir, Manoel Guedes, Jorge e Marcos Albuquerque,  Alcione Cavalcante, os  Wálter  Maia  e Damasceno, João Dutra, Rui e Antônio Maia,  Garrincha,  Pedro, etc, etc.

Depois que o objetivo que levou a construção da capelinha foi alcançado  e o número de fiéis já era grande, obrigou  a construção de uma igreja propriamente dita, maior e mais confortável. Construíram então a nova igreja de Nossa Senhora de Fátima  e  a capelinha foi demolida. Como Adorinam Barbosa eternizou na canção Saudosa Maloca, “cada tábua que caía, doía no coração” de todos  que  a frequentaram, casaram, fizeram a primeira comunhão, foram batizados ou crismados na capelinha de Fátima, que junto com o padre Salvador, os integrantes  do grupo de escoteiros São Maurício, são boas lembranças de minha infância feliz vivida no meu querido bairro da  Favela.

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Seu Rocha, Bamba e o jutaizeiro

Milton Sapiranga Barbosa, especial para o blog

A quadra onde hoje  estão situados  os prédios do Conservatório Aamapaense de Música, da Receita Federal, da Justiça do Trabalho e da operadora de telefonia Oi, era área pertencente a Panair do Brasil, que depois  passou a ser  Viação Aérea   Cruzeiro do Sul. A parte da frente se estendia até  as imediações  onde hoje está o prédio da Camâra de Vereadores  e  os fundos iam  até o muro da escola Princesa Isabel.

O terreno da Panair, além das torres, depósitos  e  oficinas,  era cheio de  árvores  frutíferas, umas plantadas pelo seu Rocha, que morava com a família numa residência da companhia, outras eram nativas, como mameira, tucumanzeiro, mucajazeiro e um imenso jutaizeiro, que quando estava carregado de frutos,  era a árvore mais procurada pelos moleques. Era sair da aula ou  da pelada,  íamos   apanhar jutaí,  subindo na árvore, jogando pau ou  usando  uma baladeira. Seu Rocha, que não gostava  que entrássemos no terreno,  costumava usar uma espingarda com cartuchos carregados de sal para espantar a molecada, mas nunca feriu ninguém. Era ele aparecer de espingarda em punho que a turma se mandava. Num belo dia (toda história tem sempre tem um belo dia),  estávamos lá apanhando jutaí e o Bamba, um  moleque corajoso e ágil para subir  em árvores, foi  até as grimpas do jutaizeiro, pois lá estavam os maiores e mais maduros frutos. Tava lá o Bamba enchendo o macacão escolar de jutaí, quando de repente surgiu  o velho Rocha que, astutamente, havia se escondido antes da chegada da turma. Os que estavam  embaixo, atirando pau  ou balando jutaí, conseguiram fugir, mas o Bamba, pobre Bamba,  ficou lá em cima, sem poder descer, pois um   homem  armado,  de cara amarrada,  dava  plantão embaixo da árvore.

Os que fugiram ficaram de longe observando a cena: seu Rocha apontou a espingarda  no rumo  do  invasor e disse: “muleque, agora tu  vais  morrer!” Pra que? O Bamba  desatou a chorar e no auge  do desespero, disse, chorando de dar dó: “pelo amor de Deus, seu Rocha, deixe ao menos eu ir em casa tomar bênção da mamãe, depois eu volto para o senhor me matar”.

A molecada do lado de fora da cerca ria as gargalhadas. Seu Rocha, também não aguentou, deu um  largo sorriso  e mandou o Bamba descer, antes prometendo não fazer nada com ele. O Bamba desceu. Seu Rocha, ainda sorrindo mandou-o  embora, não sem antes dar-lhe  um leve pescoção. O Bamba, depois  do susto, sumiu ladeira abaixo e só parou quando chegou em casa.

Apanhar jutaí, para o nego Bamba nunca  mais.  Panair, seu Rocha, o Bamba  e o jutaizeiro, são boas lembranças da minha infância feliz, vivida no meu querido bairro da Favela.