Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia

Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia (At 10,40)
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

É sempre difícil expressar em poucas palavras a grandeza do evento pascal. Os próprios evangelistas tiveram que encontrar palavras novas para dizer algo inesperado e surpreendente. Isso vale também para nós. Se reduzimos a Páscoa a algumas afirmações decoradas podemos saber dizer que “Jesus ressuscitou”, mas, com isso, não deixamos ainda que essa “novidade” ilumine a nossa vida. Com efeito, a Páscoa de Jesus nos comunica algo extraordinário sobre Deus, Jesus e nós mesmos.

Afirmar que o Deus, Pai de Jesus Cristo é o “Deus da Vida e não da morte” é mais do que falar de imortalidade ou algo semelhante. Desde o Antigo Testamento, aprendemos que o problema do ser humano não é a morte biológica em si, que nos é apresentada como a conclusão natural de uma existência passageira. O que faz a diferença entre quem está vivo e quem está morto não é o número dos anos alcançados, mas a maneira de viver. Quem acompanha e obedece ao projeto de Deus está “vivo”. Quem não acolhe a proposta de Deus já está “morto”, apesar de estar andando ainda pelos caminhos deste mundo. Ou seja: somente quem está em “comunhão” com Deus está vivo de verdade. No Novo Testamento, é a vida de Jesus que nos é apresentada como uma forma de vida perfeitamente em acordo com a vontade do Pai. Isso não significa que tudo foi fácil para ele. Até o último dia, os seus seguidores esperavam alguma manifestação grandiosa de poder que revertesse a situação ameaçadora na qual ele se encontrava. Na Paixão, foram tantos os que gritaram: “Se és o Cristo, desce da cruz, salva a ti mesmo e a nós” (Lc 23,35-39).

Para muitos, ainda hoje,  Jesus não soube aproveitar do seu sucesso, perdeu todas as oportunidades que a sua fama lhe oferecia para se tornar poderoso. Foi sempre essa a tentação que o acompanhou. É a mesma que nós todos experimentamos, quando temos que decidir como gastar a nossa vida e os talentos que recebemos sem pedir: usá-los para dominar os irmãos ou para servi-los? Se o Deus que Jesus veio nos fazer conhecer é amor, somente ele pode doar. Não quer tirar nada de ninguém e nem obrigar a fazer a sua vontade. Somos nós que nos preocupamos demais com aquilo que vamos ganhar. A vida de Jesus foi uma vida totalmente doada, a serviço do Reino de Deus que ele veio iniciar. Para segui-lo, chamou “os que ele quis”, mas ninguém foi forçado a fazê-lo. O jovem rico, por exemplo, foi chamado ao seguimento, mas ficou livre de decidir e foi embora triste  (Mt 19,16-22). Os apóstolos fugiram na hora da Paixão, mas Jesus, depois da Ressurreição, não os culpou pela covardia e nem os ameaçou de castigos, ao contrário, ofereceu-lhes a paz e o perdão. Por tudo isso, nós ousamos dizer que Jesus, “com forte clamor e lágrimas” (Hb 5,7), mas sobretudo com amor total caminhou livremente – e conscientemente – rumo à morte de cruz, e São Paulo chama isso de “obediência” ao Pai (Fl 2,8). Com essa vida e com essa morte, Jesus se tornou o “homem” que realizou, plenamente, o Projeto de Deus como o próprio Deus tinha pensado desde o início.

A vida dele foi diferente, sempre doada, sempre promovendo novas vidas com o perdão, a fraternidade, a partilha, a cura da maior de todas as doenças: o pecado entendido como “morte”, porque quando falta o amor morremos, afastando-nos de Deus e dos irmãos. Deus Pai “ressuscita” Jesus, porque a vida amorosa vivida pelo Filho encarnado é a própria vida de Deus que nem a morte pode vencer. A Vida-Amor não morre, continua viva, porque participa da vida divina. A vida nova da “ressurreição”- a vida verdadeira que não morre mais – começa em nós, quando acreditamos e praticamos o que afirmamos no nosso Batismo: deixamos as obras mortas que levam à morte – também se chamadas poder, riqueza, prestigio, força – e abraçamos as obras que geram vida, encontro, misericórdia, união. A Vida Nova da Páscoa está mais perto de nós do que pensamos e lembramos, pois está conosco desde quando pela fé, a esperança e o amor tivemos o dom, não merecido, de participar da Vida Divina. Essa Vida é o mesmo Espírito daquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos e que habita em nós (Rm 8,11). A comunhão com Deus-Amor não morre.

“Quem é este homem?”

“Quem é este homem?” (Mt 21,10)
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá  
Chegamos ao “Domingo de Ramos da Paixão do Senhor” e iniciamos a Semana Santa. Todos os anos, somos convidados a acompanhar Jesus nos últimos dias de sua vida. Estaremos com ele na última Ceia, na despedida dos discípulos, na agonia do Getsêmani, no caminho do Calvário, na morte cruel na cruz, no silêncio do Sábado, até o amanhecer do dia da Páscoa. O convite para todos os cristãos é, evidentemente, para participar dos momentos litúrgicos que, com sua simplicidade e sobriedade, saberão reavivar a nossa fé e nos colocar mais perto do Senhor e dos irmãos.
 Nesse sentido, a nossa maneira de viver os dias da Páscoa será um sinal de como e de quanto estamos interessados no assunto. Para muitos serão dias comuns, de trabalho e de atividades. Não podemos mais esperar que o vaivém da vida corrida, cheia de afazeres e negócios, pare para chamar a nossa atenção e nos lembrar que é Páscoa. Não estamos mais numa sociedade “cristã”, também se nas TVs passarão filmes sobre a Paixão do Senhor e seremos submergidos de mensagens com rostos ensanguentados de Jesus para todos os gostos, com as lágrimas de Maria e com todas as orações possíveis. Logo em seguida, será a vez de recebermos a obrigatória enxurrada de votos de “Feliz Páscoa”. Tudo isso significa que se, nesses dias, não paramos para refletir e nos questionar sobre a nossa fé, gastaremos tempo para, assistir, ler, responder e apagar as mensagens, mas tudo passará rapidamente e muito pouco ficará daquele evento fundamental, que para nós cristãos é a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Sim, um único “evento”, consumado em poucas horas. Para as autoridades daquele tempo, tudo devia acabar para sempre ao anoitecer daquela Sexta-Feira. Mas o corpo ensanguentado daquele malfeitor, condenado às pressas, para se livrarem dele, morto na cruz e sepultado de qualquer jeito, nunca mais foi encontrado. “Ele está vivo” começaram a proclamar os seus seguidores e saíram pelo mundo para espalhar essa notícia dispostos a morrer por causa disso. Algo novo, inesperado, surpreendente, tinha acontecido. Voltaremos sobre o assunto no próximo domingo.
Agora, o convite, é refletir e tentar responder à pergunta que “a cidade inteira” de Jerusalém, na sua agitação, fazia-se: “Quem é este homem?”. As leituras da Liturgia deste Domingo de Ramos nos ajudam, mas nada e ninguém poderá substituir o que cada um de nós pensa e declara acreditar, porque nós “recebemos” dos outros, através da comunidade cristã, o conteúdo da fé, mas a adesão a ela só pode ser pessoal, dada no exercício da nossa liberdade e no silêncio da nossa consciência. Vou apresentar algumas respostas. As multidões dizem: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21,11). Certo, um profeta. Mas a pouco servirão o seu exemplo e os seus ensinamentos. No processo, serão usados contra ele. Judas, saúda Jesus com um: “Salve, Mestre”. Em resposta ao seu beijo, ele escuta: “Amigo, a que vieste?”.
 Até o fim, Jesus é amigo dos pecadores, pronto a mostrar-lhes o rosto misericordiosos do Pai. Até por isso foi julgado réu.  Na cruz, colocaram um letreiro com as palavras: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”. Era costume afixar no patíbulo o motivo da condenação. Mas, nesse caso, ficou um “título” que, diz outra coisa: o nome significa “Deus salva”. É como se estivessem escrito que “este” aí, Jesus, era o salvador do seu povo. Para o evangelista Mateus o “nome” de Jesus é importante, o usa mais de que os outros evangelistas. Esse “nome” é lembrado também na segunda leitura da Missa. Após ter dito que “Jesus Cristo” se fez obediente até a morte, e morte de cruz, na carta aos Filipenses lemos: “Por isso Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus é o Senhor”, para a glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11). Também os soldados “se ajoelharam diante de Jesus, mas para zombá-lo (Mt 27,29). Um profeta, o amigo dos pecadores, o rei-salvador do seu povo…o Senhor… Afinal, quem é este homem para nós?

Senhor, dá-me dessa água

Senhor, dá-me dessa água (Jo 4,15)    
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá 
Nos próximos três domingos de Quaresma, deste ano, deixaremos o evangelho de Mateus para ler três longos trechos do evangelho de João. Não é um capricho de quem planejou as leituras dominicais. Esses evangelhos, riquíssimos em suas mensagens, são os escolhidos para os ritos dos “Escrutínios” e “Exorcismos” que os Catecúmenos devem fazer durante a Quaresma antes de receber o Batismo na noite de Páscoa. Como era costume, a maioria de nós deve ter sido batizada bem pequenina e, portanto, não deve ter lembrança daquele momento. Os nossos pais e padrinhos decidiram por nós, convencidos de fazer algo certo e muito bom.  No entanto e justamente a Mãe Igreja quer oferecer a todos os que frequentam as liturgias, aos domingos, a oportunidade de “escutar” novamente esses evangelhos. Assim, a cada três anos, podemos nós mesmos avaliar a nossa caminhada na fé, os frutos do Batismo e confirmar a nossa escolha livre e jubilosa de seguir o Senhor Jesus, participando da nossa Igreja-comunidade. Além dessas razões, o Ano Vocacional Nacional nos convida a reavivar o nosso compromisso batismal porque, qualquer seja a nossa “vocação” e a nossa condição social, depois do chamado à vida, deveríamos acreditar que o maior dom que recebemos foi o fato de sermos cristãos, ou seja, de ter encontrado e conhecido Jesus Cristo.
Neste Terceiro Domingo da Quaresma, vamos nos colocar no lugar da mulher samaritana e dialogar com Jesus para ver se chegamos à mesma conclusão dela e dos samaritanos: “Este é verdadeiramente o salvador do mundo” (Jo 4,42). Na beira do poço de Jacó acontece o encontro entre duas sedes: aquela da samaritana, que foi ali para buscar a água para beber e uma outra “sede”, a de Jesus desejoso de ser reconhecido e acolhido por todos além das diferenças religiosas e morais. Com efeito, na frente dele está uma mulher que faz parte de uma crença desprezada pelos judeu e que já teve cinco maridos. Ela demora, mas, aos poucos, vai entendendo. Primeiro percebe que Jesus é “um profeta” (Jo 4,19), depois pergunta sobre o Messias e escuta daquele homem uma extraordinária autoapresentação: “Sou eu, que estou falando contigo” (Jo 4,26). A samaritana esquece o cântaro e volta para a cidade para contar o acontecido, levando consigo uma grande questão que é o passo necessário para alcançar a fé: “Será que não é ele o Cristo?”. Os samaritanos se aproximam de Jesus, escutam as suas palavras e muitos creem.
A página do evangelho da Samaritana diz muitas mais coisas que precisariam ser lembradas e aprofundadas. O que interessa, neste momento, porém, e espero possa ajudar mais alguém, é responder à pergunta: por que esse evangelho é colocado antes do Batismo dos Catecúmenos? Os “Escrutínios” e os “Exorcismos” são uma oração para que aquele que pede o Batismo tenha a força e a coragem de tomar a grande decisão de ser cristão. Terá que renunciar a algumas coisas e acreditar em outras. Talvez, terá que dar um rumo bem diferente à sua vida. Sem essa lucidez, o Batismo corre o perigo de ser reduzido a um costume social tradicional ou a uma imaginária proteção para a criança contra doenças ou maus-olhados. Nesses casos, estamos muito longe da fé cristã. Na prática, se as “sedes” da nossa vida são as do dinheiro, do sucesso, do bem-estar, do comodismo e de tudo o mais de material que empolga a nossa vida e anestesia a nossa consciência, o Batismo não vai servir para muita coisa. A “sede” que Jesus quer satisfazer é a do sentido profundo da nossa existência, ou seja, o desejo e a busca de ter motivações de vida e de compromisso que não nos fechem em nós mesmos, mas nos abram aos irmãos – junto aos quais caminhamos nesta peregrinação terrena – e mais ainda, sede daquela “água” que satisfaz todas as sedes: o Espírito da Verdade que Jesus quer doar aos seus amigos. Somente assim podemos ser os “verdadeiros adoradores” do Pai, filhos amados que colaboram na construção do Reino de Deus já neste mundo. Continuaremos essas reflexões sobre o nosso Batismo com o “cego de nascença” e o retorno de Lázaro à vida.

O rosto de pedra  

O rosto de pedra                         
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá

Luizinho gostava de contemplar uma imensa pedra que tinha as feições de um rosto. A pedra ficava na encosta da montanha. O rapaz podia vê-la de sua casa. O rosto tinha a expressão de grande força, bondade, alegria e amor que fazia vibrar o coração do garoto. Uma lenda dizia que, no futuro surgiria naquele lugar um homem muito parecido com o rosto de pedra. Durante a sua infância, e mesmo depois de adulto, o garoto Luizinho cresceu contemplando o rosto de pedra que tanto o cativava. Certo dia, Luizinho, já grande, foi fazer compras na cidade. O povo da localidade conversava a respeito da lenda quando, de repente, alguém exclamou: – Vejam só! Luizinho é o homem que se parece com o grande rosto da pedra. Era verdade! Luizinho se tornara semelhante ao rosto que contemplava e que ocupava diariamente os seus pensamentos.

No Segundo Domingo da Quaresma encontramos, todo ano, a página da “Transfiguração”, desta vez, segundo o evangelho de Mateus. Para nos comunicar a sua mensagem e conforme o jeito bíblico de explicar as coisas, os evangelistas usam uma linguagem que chamamos de “narrativa”. Em lugar de definições e conceitos, preferem contar um acontecimento. Tudo isso devia servir para preparar os discípulos ao escândalo da cruz que também continuava a ficar difícil para todos aqueles que se aproximavam para abraçar a fé cristã. Para chegar a ser o Senhor glorioso da ressurreição o mesmo Jesus precisava antes passar pela terrível morte na cruz. Nunca será fácil enxergar algo luminoso na escuridão, na agonia e no abandono daquela morte. A voz do Pai confirma: “Este é o meu Filho amado, no qual pus todo o meu agrado. Escutai-o!” (Mt 17,5).

Onde está a luminosidade daquele Jesus tão humano que acabará rejeitado e condenado à mesma sorte dos malfeitores? Podemos entender isso somente acreditando no amor e na solidariedade divina que não abandona os seus filhos e vai resgatá-los até o fim, até na morte, para que participem da vida plena: a comunhão divina. Toda a vida de Jesus, todas as suas palavras, foram luminosas para quem o encontrava. Semeou esperança para os pobres, consolação aos tristes, paz para que vivia sem rumo e sem sentido. Assim deve ser o dia a dia de quem decide seguir o Senhor no caminho da doação generosa da própria vida. Quem se dispõe a servir aos pobres e aos pequenos é cobrado, é consumido. Se desgasta, sim, mas não desiste de amar, de perdoar, de acolher, como fez Jesus. Outros preferem aproveitar dos irmãos, explorá-los, enganá-los, tirar proveito da ingenuidade ou da confiança dos outros. Qual é a vida mais luminosa, de quem brilha pelo sucesso, a grandeza humana, ou a vida de quem, na maioria das vezes no escondimento da própria casa, de um hospital, de um asilo, de um abrigo, de um campo de refugiados, de um mosteiro (por que não?) se consome para fazer os outros felizes? Desta vez a resposta vem de Pedro que inebriado por alguns momentos pelo rosto brilhante de Jesus disse que era bom ficar lá, que era, simplesmente, maravilhoso.

Nós todos aprendemos a caminhar na vida olhando para os que nos precederam e que já estavam caminhando à nossa frente. Até alguns tempos atrás eram os pais, os familiares, as pessoas ao nosso redor que, com o seu exemplo, nos transmitiam a sabedoria da vida, os valores e a própria fé. Aos poucos, para quem queria, tínhamos tempo de assimilar aqueles ensinamentos. Hoje, evidentemente, não é mais assim. Muitas informações nos chegam de todo e qualquer lado e de toda e qualquer forma cada vez mais apressadas, misturadas, atropelando-se entre si. Quantos querem nos ensinar a viver porque, de fato, sempre precisamos olhar para os outros para aprender a dar um sentido à nossa vida. Também quem está fechado no seu individualismo doentio se achando o único ou a única que entende alguma coisa, não está imune da tentação de imitar alguém. Para nós cristãos, terá alguém mais luminoso do Senhor Jesus? É a ele que devemos olhar sempre. Quem sabe que um dia consigamos mesmo nos assemelhar a ele. Como foi para o Luizinho com aquele rosto bonito de pedra que ocupava os seus pensamentos.

Não só de pão vive o homem

Não só de pão vive o homem (Mt 4,4)
Dom Pedro José Conti – bispo de Macapá 
Iniciando a Quaresma, começamos também a Campanha da Fraternidade. Essa campanha é a proposta concreta da Igreja para que a nossa “conversão” e o nosso “jejum” quaresmais tenham uma atuação prática. No Primeiro Domingo, sempre encontramos a página das “tentações” de Jesus no deserto. A primeira tentação foi a de transformar as pedras em pão, algo muito atrativo para quem estava jejuando. Jesus não aceitou, ao contrário, respondeu com as palavras da Escritura: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Entendemos que essa narração é muito mais que um relato. O que está em jogo é a maneira de como Jesus viverá o seu “messianismo”. Será alguém ambicioso pelo poder humano, dominador do mundo, um “rei” maior do que todos os demais, um milagreiro insuperável ou um enviado pelo Pai para ensinar o caminho, difícil e sempre novo, da gratuidade e do amor? Pelos Evangelhos e pela pregação dos apóstolos conhecemos como foi a vida de Jesus, ele “andou fazendo o bem” (At 10,38). Foi um dom para quem o encontrava,  deixou-se consumir pelo amor aos pobres, aos enfermos, aos pecadores, até oferecer a própria vida na cruz. Ele nos ensinou que a realização do Reino dos Céus, a “nova” humanidade fraterna, passa pela solidariedade, a partilha, a generosidade.
Ainda hoje, escutamos pessoas dizendo que se Deus fosse bom mesmo não deveria deixar ninguém morrer de fome, como se a culpa do egoísmo e das injustiças humanas fosse dele. O trecho do evangelho de Mateus (14,13-21) escolhido como iluminação bíblica para a Campanha da Fraternidade 2023 é aquele que nos acostumamos a chamar de multiplicação dos pães e dos peixes, e o lema repete as palavras de Jesus aos discípulos que queriam despedir o povo: “Dai-lhes vós mesmos de comer!”. Ao juntar o pouco alimento  disponível oferecido, ao entregá-lo nas mão de Jesus que o abençoa e ao distribuí-lo, algo surpreendente aconteceu: “todos comeram e ficaram saciados”. E ainda sobrou. A resposta decisiva à questão gravíssima da fome no mundo e no Brasil virá, sem dúvida, de uma melhor e mais justa distribuição dos recursos e das riquezas que o planeta – dádiva de Deus- nos oferece. Tudo deve começar, porém, pelos pequenos gestos, como foi aquele de partilhar os cinco pães e os dois peixes. Para que consigamos fazer isso, precisamos antes experimentar o mesmo que Jesus sentiu ao ver aquela multidão de sofredores e famintos: ele “encheu-se de compaixão” (Mt 14,14).
 Essa “compaixão” é muito mais do que um sentimento, ela vai junto com a consciência de que algo está errado e, sobretudo, com o impulso a agir para que o sofrimento daqueles irmãos e irmãs seja mitigado. Este sempre será o primeiro passo a ser dado em sinal de solidariedade com quem passa fome. É a primeira das obras de misericórdia: “Estava com fome e me destes de comer” (Mt 25,35). Quantas ações bonitas as nossas paróquias e comunidades realizam neste sentido! No entanto, sabemos que isso não resolve o problema que é social e complexo. Por isso, a Campanha da Fraternidade, que pela terceira vez coloca a questão da fome,  convida-nos a procurar e a reconhecer as responsabilidades e as mazelas que causam essa situação. Não basta dar uma “esmola” para quem precisa e assim silenciar a nossa consciência. Esse gesto sempre será uma das obras da penitência quaresmal, mas aos problemas sociais devemos dar soluções que envolvam toda a sociedade, ou seja leis justas e, quando for necessário, mudança também das relações econômicas entre as pessoas, as empresas e países inteiros. Quando uma ação precisa do envolvimento e da boa vontade de todos são necessárias motivações humanitárias , que vão além dos projetos partidários e de poder. Para nós, cristãos, as motivações nos vêm da Palavra de Deus, luz e alimento para as nossas escolhas pessoais e comunitárias. Por isso, junto ao “pão”, os cristãos têm que oferecer amizade, respeito, acolhida. A verdadeira “compaixão” deve alegrar o coração de quem doa e de quem recebe, para que, junto com a fome, sejam vencidos  também a indiferença e o egoísmo.

Só um exemplo

Só um exemplo
Dom Pedro Conti, Bispo de Macapá

 O pequeno André, impressionado pelos noticiários da TV, pergunta:

– Pai, como é que começa uma guerra?

– Querido, as coisas andam mais ou menos assim: por exemplo, entre a Inglaterra e os Estados Unidos surge um forte dissídio sobre alguma questão grave… A mãe intervém:

– Não fale bobagem, Inglaterra e Estados Unidos nunca vão brigar!

– Sei – responde o pai – era só um exemplo.

– Assim você enche a cabeça do menino de besteiras – insiste a mãe.

– Mas, ao menos, eu lhe coloco algo na cabeça, você é o vazio absoluto!

– Você está ficando ridículo! – continua a mãe.

– Tudo bem, obrigado, já entendi – conclui o pequeno André.

Uma pequena história no dia em que as nossas famílias festejam os pais e encontramos um evangelho, de certa forma, surpreendente. Jesus nos diz que não veio trazer a paz, mas a divisão entre familiares. Ele vai lançar um fogo sobre a terra e gostaria que já estivesse aceso. Deve receber um batismo e está “ansioso até que isso se cumpra”. Vamos tentar esclarecer de qual fogo, de qual batismo e de qual paz Jesus está falando. Para a Bíblia, em geral, a “paz” é algo muito valioso. Podemos chegar a dizer que a paz é o conjunto de todos os bens, materiais e espirituais, prometidos por Deus. Na linguagem dos evangelhos “paz” e Reino de Deus coincidem. Nós cantamos na liturgia: “Onde reina o amor, Deus ali está”, ou seja, a presença do Senhor na caminhada do seu povo e na vida das pessoas que se amam é a maior alegria, é a plenitude da comunhão e da fraternidade. No entanto, essa “paz” é um bem que ainda deve ser alcançado, construído, esperado. Com a Ressurreição de Jesus, a sua vitória sobre o mal e a morte, o Reino da Vida e da Paz já começou, mas temos um longo caminho de conversão à nossa frente.

Por “fogo” podemos entender o próprio dom do Espírito Santo com sua luz e sua força, mas também a luz da verdade, a fogueira que queima toda violência, ódio e mentira. Por “batismo”, enfim, podemos entender – como o próprio Jesus fala em Mc 10,38-39 – o sofrimento e a morte de cruz. Podemos dizer que a paz, entendida no sentido grande da palavra e não como uma simples concordância ou uniformidade, é um bem que, para ser alcançado, precisa de muita luta contra os nossos interesses, orgulhos e ambições de poder individuais ou de grupos. A “paz”, como tudo o que é bom, duradouro, profundo e sério de verdade, exige renúncias, colaboração, partilha, solidariedade, gestos de perdão e reconciliação, fidelidade à palavra dada. De um lado, precisa-se do “fogo” de quem tem a coragem e o entusiasmo para mudar as coisas erradas e, do outro, a disposição para perseverar na busca e suportar os sofrimentos que vêm das traições e dos fracassos. Contudo a paz verdadeira é um bem tão grande que vale a pena qualquer esforço e sacrifício para alcançá-la.

Penso agora nas nossas famílias e no desejo que todos os pais têm de ver os seus filhos unidos, respeitando-se e ajudando-se. Toda família é diferente e é formada por pessoas diferentes, por isso, uma família unida é uma pequena oficina onde é possível ensaiar como poderia ser uma sociedade “fraterna” sem inimigos, divisões, ciúmes e invejas. Se Jesus fala de “divisão” é porque conhece o coração humano e sabe quanto é difícil acertar a convivência entre as pessoas, incluindo as nossas famílias. Jesus nos diz que não adianta fingirmos ou nos iludirmos que somos unidos quando, no fundo, descuidamo-nos dos laços que constroem a comunhão. Às vezes, é necessário reconhecer as divisões, para sentirmos saudade dos irmãos, das brincadeiras, das diversidades que nos enriquecem a todos. Feliz aquela família que nunca desiste de se reunir, superando as distâncias e as desavenças. Felizes aqueles pais que, vez por outra, podem ver os seus filhos e netos conversando sem agressões, confiando uns nos outros. Quem sabe que este dia seja hoje mesmo, Dia dos Pais – e das Mães – dia das famílias que sabem cuidar também das suas feridas, porque acreditam no Senhor, Rei da Paz. Já sabemos como começam as guerras. Vamos aprender a fazer florescer a paz!

Tire-o da minha frente 

Tire-o da minha frente 
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá 
Um andarilho estava no escritório de um ricaço, pedindo esmola. O homem chamou a secretária e lhe disse:
– Vê este pobre infeliz? Observe como os dedos dos pés dele saltam para fora do sapato, como as suas calças estão esfiapadas, o casaco em frangalhos. Tenho certeza de que não se barbeia, não toma banho, não faz uma refeição decente há dias. Corta o meu coração ver gente nessa deplorável condição. Por isso: tire-o imediatamente da minha frente!
Neste 6º Domingo do Tempo Comum, escutaremos o evangelho das famosas “Bem-aventuranças” na versão de Lucas. As mais conhecidas são aquelas de Mateus e, portanto, convêm fazer algumas comparações lembrando, porém, mais uma vez, que cada autor sagrado reelaborou as tradições que recolheu antes de escrever conforme a situação da comunidade onde vivia. A primeira diferença é que no evangelho de Lucas as bem-aventuranças são somente quatro e estão acompanhadas por quatro “ais”. Jesus convida os pobres, os que têm  fome, os que choram e os perseguidos a se alegrar. Ao contrário, com os ais, alerta os ricos, os que têm  fartura, os que estão rindo e aqueles que são elogiados. Esses “ais” não são ameaças de castigo ou algo semelhante, são um convite claro a não construir a própria vida sobre os bens materiais, as alegrias e os aplausos passageiros.
 As “promessas” de Jesus lembram a todos, de um lado e do outro, que nenhuma situação, neste mundo, é para sempre. Os sofrimentos e as perseguições dos pequenos acabarão, mas terão um fim também as falsas seguranças dos ricos e famosos. Será uma simples viravolta? Uns ocuparão os lugares dos outros? Se fosse assim, afinal, nada mudaria. As bem-aventuranças – e os ais – apontam a uma nova realidade: o Reino de Deus que começa a acontecer. É o Reino, sabemos, da paz, da justiça e do amor. Esses são os novos valores que Jesus aponta. Talvez nunca exista um sistema social e político que cumpra perfeitamente esse projeto. No entanto, como cristãos, devemos acreditar que seja possível nos aproximarmos dele, corrigindo as injustiças e construindo a fraternidade. Entendemos que Jesus quer que todos tenham uma vida mais alegre e feliz,  não por causas das riquezas materiais, mas em razão da amizade e da solidariedade. Se os ricos e poderosos não estão dispostos a partilhar nada e se os pobres e sofredores só cobiçarem os mesmos bens, não mudará nada. Por isso, as bem-aventuras e os ais do evangelho de Lucas são um teste para ver em que e em quem acreditamos de verdade. Cabe um belo exame de consciência.
Nós todos, eu também, não posso negar, somos doutores no equilíbrio, ou seja, em evitar os extremos. Sabemos que não devemos desejar riquezas demais para não ficarmos escravos da nossa própria ganância. Mas também não desejamos ser odiados, expulsos, insultados e amaldiçoados “por causa do Filho do Homem” (Lc 6,22). Como nos alegrar com as críticas e as perseguições? Será que Jesus não exagerou um pouco? Talvez não sejamos profetas tão bons, mas não nos enxergamos como tão falsos assim. Não daria para amenizar as palavras de Jesus? De fato, é o que fazemos todos os dias para poder pedir perdão das nossas fraquezas e apaziguar a nossa consciência.
Lembrarei somente duas coisas. Primeiro deveríamos ouvir mais a voz, ou o grito, dos sofredores, dos que estão às margens desta sociedade. Se, de alguma forma, esse choro não nos incomoda mais, é sinal de que já estamos do lado de quem tem medo de perder o conforto,  as seguranças ou os privilégios que ainda sonhamos ou construímos ao longo da nossa vida. Desse jeito, escolhemos tirar os pobres da nossa frente. A segunda consideração é a respeito das críticas que vamos atrair. Os mártires “de todas as causas justas” não escolheram sê-lo, simplesmente decidiram praticar o que acreditavam, conscientes ou não do risco que corriam. Quem ficou mais “alegre”? Os carrascos e os zombadores ou os “profetas” do Reino? Cada um responda, sem esquecer, por favor, os pobres que estão à sua frente. Com eles, é o Senhor que estamos desprezando.

Só com os pedaços descartados

Só com os pedaços descartados
Dom Pedro José Conti  – Bispo de Macapá 
Durante a construção de uma catedral, o mestre de obra e os melhores artesãos trabalhavam em oficinas instaladas no interno do canteiro. Certo dia,  apresentou-se ao mestre um jovem desconhecido que também se dizia artesão. Pediu para trabalhar, mas o chefe lhe disse que não precisava, porque já havia pessoal suficiente e todo especializado. O jovem insistiu:
– Não quero trabalhar as pedras, somente gostaria de fazer um vitral, usando as peças descartadas pelos outros. Basta-me um cantinho, não lhe darei nenhuma despesa. O mestre lhe permitiu que usasse uma barraca velha e abandonada, perto do local onde descarregavam todos os materiais inúteis. Os meses passaram e o pessoal quase se esqueceu do jovem que trabalhava tranquilo em silêncio. Chegou, porém, o dia em que ele colocou para fora a sua obra secreta. Era um vitral de incrível esplendor. Ninguém antes tinha visto cores tão luminosas. Era o vitral mais encantador de todos os demais da nova catedral. Todos queriam saber onde ele tinha encontrado pedaços de vidro tão brilhantes. O jovem estrangeiro respondia:
– Encontrei os fragmentos espalhados por aí, onde trabalhavam os operários. Esse vitral é feito com os pedaços que foram descartados como inúteis.
Neste 4º Domingo do Tempo Comum, continuamos a leitura do capítulo 4 do evangelho de Lucas. Estamos ainda na sinagoga de Nazaré e Jesus acabou de ler o trecho do profeta Isaías. Quem fazia a leitura podia também fazer um breve comentário. As palavras de Jesus foram: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. (Lc 4,21). Muita coragem e ousadia por parte dele, sem dúvida. Grande surpresa dos presentes, fascinados com as palavras que estavam ouvindo. O encanto, porém, durou pouco. Logo vieram os questionamentos e as pretensões. Reconheceram naquele homem o mesmo Jesus que ali, em Nazaré, tinha se criado. Na vila, viviam familiares e colegas dele. “Quem você acha que ele é?”. Com certeza, essa foi a pergunta que se espalhou rapidamente. Jesus respondeu assumindo a missão de “profeta”, ou seja, de alguém que fala em nome de Deus e, portanto, como todos os profetas do passado, o anúncio que trazia ecoava em Israel, mas também além das suas fronteiras históricas e geográficas. Não importa se esta mensagem será acolhida ou não. A “missão” do profeta é “falar” com a palavra e a vida.
A fama de Jesus, que havia se estabelecido em Cafarnaum, já se espalhara e, com certeza, despertava o ciúme e a inveja dos habitantes de Nazaré. Com mais propriedade, podemos dizer que a atividade de Jesus e a sua pregação “aos pobres” não correspondiam à imagem de “ungido” que circulava naquele momento. Esperavam um messias poderoso e triunfador, mas Jesus se apresentava como pobre, amigo dos pequenos e sofredores. Além de tudo, ele era fraco, porque iniciava a sua missão das periferias, bem longe dos centros do verdadeiro poder.  Em lugar de se questionar, de procurar entender mais e melhor o que estava acontecendo, os conterrâneos de Jesus, que afinal representam muitos outros que virão depois, decidiram expulsá-lo da cidade. Assim acontecerá ao longo de toda a vida de Jesus e, pelo jeito, acontecerá sempre. Como tinha dito Simeão na apresentação dele ao templo: “Este é destinado a ser… sinal de contradição” (Lc 2,34).
Não adianta esconder. Nos nossos dias, também, muitos consideram Jesus e a sua mensagem uma questão do passado, perdida há muito tempo. Talvez um discurso bonito, sentimental, ao qual recorrer numa hora difícil, mas que pouco ou nada traz de real e concreto. Fraternidade, compaixão, misericórdia, não enchem o bolso de ninguém. Todos nós, cristãos de ontem, de hoje e de amanhã, continuamos a ser desafiados a confiar ou não na Boa-Nova de Jesus. A tentação de jogar tudo fora é sempre muito grande. No entanto, os pobres e os pequenos, os descartados da sociedade, que, aqui e acolá, juntam as palavras de Jesus, constroem algo novo, brilhante, de cores nunca vistas. Agem no silêncio. Não divulgam, porque não disputam fama e sucesso com ninguém. Basta-lhes a luz do amor. A mesma luz de Jesus.

O mito e o castigo divino de Sodoma e Gomorra

O mito e o castigo divino de Sodoma e Gomorra
Alexsander Costa

O Homosapiens é a única espécie animal capaz de justificar, através de uma história, o funcionamento de vários acontecimentos da vida terrena.

A esta história chamamos de mito, que passou a existir a partir do momento em que o ser humano despertou conhecimento, poder de análise de experiências, e poder de justificar e conhecer determinados fatos da vida.

O mito tem o intuito de explicar algo que, até então, não tem explicação, algo que a experiência humana sente ou que tenta entender, seja do seu passado ou do seu futuro, do seu nascimento ou da sua morte, seja sobre a vida animal ou vegetal, das estações do ano, de seus costumes ou crenças.

A mitologia surgiu para auxiliar o ser humano a lidar com suas experiências, foi “criada” para ajudar nos momentos de dificuldades que encontramos em vida e assim vislumbrarmos novas realidades.

O mito é, também, uma narrativa etiológica, é diverso, pode nos amparar sobre a origem do mundo: cosmogonia. Sobre origem de Deuses: Teogonia. Sobre a morte ou origem dela: Escatologia. Sobre os fenômenos cósmicos na Cosmologia. Sobre histórias de heróis e muitos outros.

Em gênesis, livro bíblico, vemos um exemplo de cosmogonia, ou mito de criação, quando Deus, o grande criador, cria o mundo: “No principio Deus criou os céus e a terra” (cap. 1). Cria também, o primeiro humano a partir do “pó da terra” (cap. 2): Adão, que vivia no jardim do Edén. Ele ganhou vida para poder cultivar a terra no Paraíso.

Nos escritos Babilônicos, o Enuma Elish, há o relato da criação do universo através da união de deuses. Apsu (Deus das aguas doces) e Tiamat (deusa dos oceanos) que deram origem aos demais Deuses e

também aos seres humanos para que pudessem trabalhar no lugar dos Deuses enquanto estes descansavam.

Nestes escritos também encontramos mitos de criação, além de exemplos de mitos de heróis, como o que observamos na Epopeia de Gilgamesh, o primeiro herói que se tem registro na História. Além deste, a aventura de Utnapishtim no grande dilúvio babilônico, que rivaliza com o dilúvio bíblico protagonizado por Noé, aparece como castigo divino após a criação dos humanos e quando estes desagradaram os Deuses.

Como visto, os mitos possuem forte relação com religião, toda religião possui elemento mítico e ligações com ritos, no entanto a religião não deve ser pensada como o mito propriamente dito.

Na religião católica, em especial no gênesis (velho testamento), podemos observar vários mitos de criação e de heróis. No Cap. 10, o livro sagrado descreve como a terra pôde ser povoada a partir da descendência de Noé. Seus três filhos Sem, Cam e Jafé povoaram o planeta terra após o grande diluvio: desceram da arca, multiplicaram-se e espalharam-se pelas nações.

No cap. 13, versículo 13, há citação à cidade de Sodoma: uma cidade onde moravam homens “perversos e pecadores”, tal qual Gomorra, ambas ficavam próximas ao mar salgado (versículo 3, cap. 14).

Essa história ganha detalhes no capitulo 19: um castigo divino recai sobre as grandes cidades da época, onde o próprio Deus, o criador, lança sobre a Terra larvas de fogo. Mas, Abrãao, um dia antes ao conversar com Deus, tentou convence-lo a não destruir as cidades por conta de corações puros que ainda existiam lá. Ló, um destes homens bons, relutou em abandonar a cidade, ele ofereceu suas duas filhas para que os homens perversos da cidade não abusassem dos anjos enviados por Deus, e sim das moças virgens, em uma tentativa desesperada de salvar sua cidade e seu povo do fogo eterno.

O castigo divino desta vez não viria em forma de inundação porque Deus, ainda no cap. 9, havia aliançado com Noé que jamais a terra seria inundada novamente por sua vontade para castigar os seres humanos.

Os anjos, compadecidos da situação de Ló, pediram para ele e sua família deixarem a cidade em direção às colinas, mas Ló, suas duas filhas e sua esposa fugiram para se salvar do desastre até uma pequena

cidade vizinha. Foi então que o próprio Deus castigara os homens perversos daquele lugar com uma lançante de fogo e enxofre, destruindo as famosas cidades de Sodoma e Gomorra.

A história acima, explica sob a perspectiva judaico-cristã, através do velho testamento, como duas cidades da margem do mar morto, no vale do Sidím, onde hoje encontra-se o Iraque, foram tragadas pelo fogo em um evento catastrófico nos idos de 1700 a.c.

Hoje, com os recursos científicos e tecnológicos que dispomos, pesquisadores da Universidade Trinity Southwest, instituição cristã que fica em Albuquerque, Novo México (EUA), acreditam que o evento que dizimou as duas cidades e suas populações foi causado pela explosão de um meteorito que atingiu a atmosfera terrestre. A explosão desses corpos celestes a poucos metros da superfície ocasionou o que observamos nas escrituras sagradas, a “chuva de fogo e enxofre”.

Os cientistas usaram carbono 14 para datar o evento nos restos de construção que sobrou do sinistro, foram feitas escavações na região onde existiam as cidades, não apenas de Sodoma e Gomorra, mas a de el-Hammam, e todas as demais nas proximidades.

Uma grande onda do Mar Morto também é provável que tenha inundado a região após o fogo ter tomado conta do lugar, fazendo com que a localidade tenha ficado com solo pobre para a agricultura e inabitável pelos próximos 700 anos.

Os cientistas ainda hoje tentam desvendar mais mistérios da época, analisando os restos e fundações que restaram das construções do período.

Durante muito tempo se imaginou que as cidades nem tivessem existido e que o conto bíblico não passasse de uma história contada para justificar o castigo nas sociedades antigas e modernas.

Na antiguidade, a religião, através dos mitos era a forma de conhecimento que existia e que explicava todos os fenômenos, inclusive muitos que hoje já foram elucidados.

O mito de que “se você fizer algo errado será castigado” ainda perdura mesmo após o advento da ciência e mesmo tendo passado mais de 3 mil anos desde as primeiras escrituras. O medo de sofrer, de ser penalizado e expiado caminha lado a lado com a humanidade. Para muitos, a passagem terrena é um julgamento para a morada eterna, o paraíso ou para o inferno.

Independente dos recursos científicos ou da análise filosófica, o mito vai ser sempre uma constante na vida humana. Eventos nunca explicados e que talvez nunca sejam explicados pela impossibilidade da experiência vivenciada (como a morte, por exemplo) sempre irão contar com uma gama de hipóteses baseadas na ciência, na filosofia, nas religiões ou na mitologia.