O combate ao etarismo em favor da dignidade da pessoa idosa

O combate ao etarismo em favor da dignidade da pessoa idosa
André Naves (*)

É fundamental compreender que o envelhecimento é um processo natural e que todos nós, se tivermos a sorte de viver tempo suficiente, nos tornaremos idosos. Portanto, a garantia dos direitos humanos e da dignidade das pessoas idosas é uma questão que nos afeta a todos. Um dos principais desafios que a população idosa enfrenta é a violência, que pode assumir diversas formas, incluindo, lamentavelmente, a violência doméstica. Além das agressões físicas, é importante destacar que a violência pode ser verbal, emocional e até institucional.
Para combater a violência contra os idosos, a ação policial qualificada é essencial, mas é importante destacar que a prevenção desempenha um papel fundamental, que começa com a criação de estruturas sociais sustentáveis, inclusivas e justas. Isso envolve garantir que os idosos tenham acesso a serviços de saúde de qualidade, moradia adequada, oportunidades de educação contínua e participação ativa na sociedade.
É necessário eliminar o etarismo, o preconceito e o estigma associados ao envelhecimento, promovendo uma cultura que valorize a experiência e a sabedoria das pessoas idosas. Além disso, a convivência intergeracional desempenha um papel crucial no desenvolvimento da criatividade e da inovação. A troca de experiências e conhecimentos entre idosos e jovens enriquece a sociedade como um todo. Portanto, dar dignidade à população idosa não é apenas um dever constitucional e moral, mas também uma condição essencial para o desenvolvimento sustentável da sociedade.

Em resumo, a concretização dos direitos humanos e da dignidade das pessoas idosas é um desafio que requer uma abordagem abrangente, que inclua a prevenção da violência, a eliminação do preconceito e a promoção da convivência intergeracional. Acima de tudo, educação de qualidade e políticas públicas eficientes podem contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva para pessoas de todas as idades.
*André Naves é Defensor Público Federal, especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social; Mestre em Economia Política; Autor do livro “Caminho – A Beleza é Enxergar”.

O filho mais querido

O filho mais querido
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá

Perguntaram um dia a um sábio persa:

– Tu tens muitos filhos, a qual preferes? O homem respondeu:

– O filho que prefiro é o menor até que cresça; o que está longe até voltar; o que está doente até ficar curado; o que está preso até ser libertado; o que está sofrendo até ser consolado…

Neste 26º Domingo do Tempo Comum, continuamos com a leitura do evangelho de Mateus e também com as perguntas e respostas “polêmicas” dos sacerdotes e anciãos de um lado e de Jesus do outro. Desta vez, porém, a iniciativa é do próprio Mestre. Através de uma simples parábola ele nos deixa, como sempre, um ensinamento que vai além das circunstâncias e, assim, desafia a todos nós. A parábola fala de dois irmãos, filhos do mesmo pai. Ele manda ambos ir trabalhar na vinha da família. Nada de mais óbvio. Na medida do possível, os filhos devem colaborar com a economia da casa da qual fazem parte. No entanto, o pai recebe diferentes respostas verbais, mas sobretudo respostas diferentes no agir dos filhos. O primeiro disse claramente que não queria ir trabalhar. Parece preguiçoso e desinteressado. Depois, porém, “mudou de opinião” (Mt 21,29) e foi trabalhar na vinha. O segundo filho recebeu a mesma ordem, logo respondeu que iria, sim, para a vinha. Contudo ele não foi. Jesus perguntou às autoridades presentes e, indiretamente, também a nós: “Qual dos dois fez a vontade do pai?”. Não tinha outra resposta a não ser: “O primeiro”, ou seja, aquele filho que, apesar de ter dito que não iria trabalhar, afinal, foi para a vinha. O outro, aparentemente obediente, na realidade desobedeceu ao pai. Logo em seguida, Jesus repreende os sumos sacerdotes e os anciãos, porque não acreditaram na pregação de João Batista. Ele faz uma afirmação, no mínimo, ofensiva e escandalosa para aquelas pessoas que, por causa da rigorosa obediência à Lei, consideravam-se justas e no direito de julgar os outros. Jesus diz que “Os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21,31) porque eles acreditaram no batismo de penitência que João pregava. Ou seja: os considerados pecadores e perdidos se entenderam como tais e acolheram a proposta de conversão. Ao contrário, os que se consideravam corretos – as pessoas de bem – achavam que não precisavam mudar em nada a própria vida. Indiretamente, Jesus fala dele mesmo, porque com esta atitude de cegueira e surdez à mensagem de João, aquelas pessoas “perfeitas”, em prática, fecharam-se à chegada daquele que, depois, teria batizado “em Espírito Santo e fogo” (Mt 3,11).

A mensagem da parábola é clara. Deus não precisa de filhos obedientes só com as palavras, exteriormente, nas aparências. Ele quer filhos que pratiquem os ensinamentos daquele Filho único que nos enviou: Jesus. Não importa se antes, por alguma razão, estavam bem longe e andavam por caminhos errados. Nunca é tarde para mudar de vida, de fato e seriamente. Autossuficiência, soberba e orgulho acabam nos afastando da mensagem do evangelho. Assim Jesus se torna inútil. Humildade, consciência dos próprios pecados e reconhecimento da bondade de Deus, fazem-nos admirar a sua misericórdia e experimentar a alegria do perdão. Jesus se torna nosso Amigo e Mestre.

Qual seria, então, o filho que o Pai celestial prefere? O perfeito e o orgulhoso de si mesmo? Provavelmente ele prefere o afastado com saudade da casa paterna, a “ovelha perdida” que se deixa carregar nos ombros do Bom Pastor, o errado que desce da árvore para abrir a sua casa, acolher Jesus e dar a metade dos seus bens aos pobres. Ou seja, o filho e a filha que confiam mais na misericórdia do Pai que nos próprios merecimentos e, sobretudo, não julgam os outros. Os filhos e as filhas que se alegram pelo bem que qualquer um pode fazer, sem fazer propaganda. Toda mudança de vida é sempre e antes de tudo um dom gratuito de Deus e não o resultado dos nossos presunçosos esforços. Todo lugar é a “vinha do Senhor”, toda situação precisa de trabalhadores do Reino que pratiquem o mandamento do amor.                         

Agora é que são ELAS! 

Agora é que são ELAS!
André Naves (*)

A bola vai rolar na Austrália e na Nova Zelândia a partir do dia 20, naquela que a FIFA está chamando de “a Copa das Copas”! As majestosas esquadras nacionais competirão para levar para casa a grande taça. É a paixão nacional, tão humana e de profunda beleza, que animará as torcidas a levantarem suas cores numa profunda ciranda: a mandala da inclusão, a imagem da sociedade alegre, festeira e criativa!

No meio de tantas palavras femininas, soa muito estranho, e até fora de lugar, que o futebol, a essência brasileira, seja palco de tanto machismo, homofobia, racismo, capacitismo, e diversos outros nojentos preconceitos. Por isso que são louváveis iniciativas como a “Respeita as Mina”, do Corinthians, que, aproveitando a crescente visibilidade do futebol feminino, busca combater o assédio e a violência de gênero. Também, as “Gaivotas da Fiel”, torcida organizada LGBT que luta contra a homofobia e as outras diversas formas de violência e exclusão.
Para não ficar só enaltecendo os corintianos, também é válido citar a “Autistas Alviverdes”, torcida palmeirense extremamente inclusiva. Também o Vini Jr., que depois de tanto sofrer com agressões racistas, começou a liderar uma campanha mundial contra o racismo no futebol!
É por isso que prestigiar a Copa Delas é tão importante. Como paixão que é, o futebol tem a capacidade de estimular os melhores (e, lamentavelmente, os piores) sentimentos e atitudes humanas. Se o amor pela bola fez o menino Gui, de 8 anos, com uma doença rara, vencer o coma para visitar seu time do coração (juro que quase virei vascaíno, de tão emocionantes que foram as cenas!), o que será que ele pode fazer por nossa sociedade?
Ou seja, torcendo pelas meninas tornaremos o futebol mais inclusivo e acessível para todos e todas. E, a partir disso, a construção de estruturas sociais mais inclusivas e justas será, cada vez mais, naturalizada.
O futebol é o sorriso da gente! A partir dele continuaremos firmes em nossa permanente viagem rumo à Utopia!

*André Naves é Defensor Público Federal, especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social; Mestre em Economia Política.

Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia

Mas Deus o ressuscitou no terceiro dia (At 10,40)
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

É sempre difícil expressar em poucas palavras a grandeza do evento pascal. Os próprios evangelistas tiveram que encontrar palavras novas para dizer algo inesperado e surpreendente. Isso vale também para nós. Se reduzimos a Páscoa a algumas afirmações decoradas podemos saber dizer que “Jesus ressuscitou”, mas, com isso, não deixamos ainda que essa “novidade” ilumine a nossa vida. Com efeito, a Páscoa de Jesus nos comunica algo extraordinário sobre Deus, Jesus e nós mesmos.

Afirmar que o Deus, Pai de Jesus Cristo é o “Deus da Vida e não da morte” é mais do que falar de imortalidade ou algo semelhante. Desde o Antigo Testamento, aprendemos que o problema do ser humano não é a morte biológica em si, que nos é apresentada como a conclusão natural de uma existência passageira. O que faz a diferença entre quem está vivo e quem está morto não é o número dos anos alcançados, mas a maneira de viver. Quem acompanha e obedece ao projeto de Deus está “vivo”. Quem não acolhe a proposta de Deus já está “morto”, apesar de estar andando ainda pelos caminhos deste mundo. Ou seja: somente quem está em “comunhão” com Deus está vivo de verdade. No Novo Testamento, é a vida de Jesus que nos é apresentada como uma forma de vida perfeitamente em acordo com a vontade do Pai. Isso não significa que tudo foi fácil para ele. Até o último dia, os seus seguidores esperavam alguma manifestação grandiosa de poder que revertesse a situação ameaçadora na qual ele se encontrava. Na Paixão, foram tantos os que gritaram: “Se és o Cristo, desce da cruz, salva a ti mesmo e a nós” (Lc 23,35-39).

Para muitos, ainda hoje,  Jesus não soube aproveitar do seu sucesso, perdeu todas as oportunidades que a sua fama lhe oferecia para se tornar poderoso. Foi sempre essa a tentação que o acompanhou. É a mesma que nós todos experimentamos, quando temos que decidir como gastar a nossa vida e os talentos que recebemos sem pedir: usá-los para dominar os irmãos ou para servi-los? Se o Deus que Jesus veio nos fazer conhecer é amor, somente ele pode doar. Não quer tirar nada de ninguém e nem obrigar a fazer a sua vontade. Somos nós que nos preocupamos demais com aquilo que vamos ganhar. A vida de Jesus foi uma vida totalmente doada, a serviço do Reino de Deus que ele veio iniciar. Para segui-lo, chamou “os que ele quis”, mas ninguém foi forçado a fazê-lo. O jovem rico, por exemplo, foi chamado ao seguimento, mas ficou livre de decidir e foi embora triste  (Mt 19,16-22). Os apóstolos fugiram na hora da Paixão, mas Jesus, depois da Ressurreição, não os culpou pela covardia e nem os ameaçou de castigos, ao contrário, ofereceu-lhes a paz e o perdão. Por tudo isso, nós ousamos dizer que Jesus, “com forte clamor e lágrimas” (Hb 5,7), mas sobretudo com amor total caminhou livremente – e conscientemente – rumo à morte de cruz, e São Paulo chama isso de “obediência” ao Pai (Fl 2,8). Com essa vida e com essa morte, Jesus se tornou o “homem” que realizou, plenamente, o Projeto de Deus como o próprio Deus tinha pensado desde o início.

A vida dele foi diferente, sempre doada, sempre promovendo novas vidas com o perdão, a fraternidade, a partilha, a cura da maior de todas as doenças: o pecado entendido como “morte”, porque quando falta o amor morremos, afastando-nos de Deus e dos irmãos. Deus Pai “ressuscita” Jesus, porque a vida amorosa vivida pelo Filho encarnado é a própria vida de Deus que nem a morte pode vencer. A Vida-Amor não morre, continua viva, porque participa da vida divina. A vida nova da “ressurreição”- a vida verdadeira que não morre mais – começa em nós, quando acreditamos e praticamos o que afirmamos no nosso Batismo: deixamos as obras mortas que levam à morte – também se chamadas poder, riqueza, prestigio, força – e abraçamos as obras que geram vida, encontro, misericórdia, união. A Vida Nova da Páscoa está mais perto de nós do que pensamos e lembramos, pois está conosco desde quando pela fé, a esperança e o amor tivemos o dom, não merecido, de participar da Vida Divina. Essa Vida é o mesmo Espírito daquele que ressuscitou Cristo dentre os mortos e que habita em nós (Rm 8,11). A comunhão com Deus-Amor não morre.

“Quem é este homem?”

“Quem é este homem?” (Mt 21,10)
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá  
Chegamos ao “Domingo de Ramos da Paixão do Senhor” e iniciamos a Semana Santa. Todos os anos, somos convidados a acompanhar Jesus nos últimos dias de sua vida. Estaremos com ele na última Ceia, na despedida dos discípulos, na agonia do Getsêmani, no caminho do Calvário, na morte cruel na cruz, no silêncio do Sábado, até o amanhecer do dia da Páscoa. O convite para todos os cristãos é, evidentemente, para participar dos momentos litúrgicos que, com sua simplicidade e sobriedade, saberão reavivar a nossa fé e nos colocar mais perto do Senhor e dos irmãos.
 Nesse sentido, a nossa maneira de viver os dias da Páscoa será um sinal de como e de quanto estamos interessados no assunto. Para muitos serão dias comuns, de trabalho e de atividades. Não podemos mais esperar que o vaivém da vida corrida, cheia de afazeres e negócios, pare para chamar a nossa atenção e nos lembrar que é Páscoa. Não estamos mais numa sociedade “cristã”, também se nas TVs passarão filmes sobre a Paixão do Senhor e seremos submergidos de mensagens com rostos ensanguentados de Jesus para todos os gostos, com as lágrimas de Maria e com todas as orações possíveis. Logo em seguida, será a vez de recebermos a obrigatória enxurrada de votos de “Feliz Páscoa”. Tudo isso significa que se, nesses dias, não paramos para refletir e nos questionar sobre a nossa fé, gastaremos tempo para, assistir, ler, responder e apagar as mensagens, mas tudo passará rapidamente e muito pouco ficará daquele evento fundamental, que para nós cristãos é a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Sim, um único “evento”, consumado em poucas horas. Para as autoridades daquele tempo, tudo devia acabar para sempre ao anoitecer daquela Sexta-Feira. Mas o corpo ensanguentado daquele malfeitor, condenado às pressas, para se livrarem dele, morto na cruz e sepultado de qualquer jeito, nunca mais foi encontrado. “Ele está vivo” começaram a proclamar os seus seguidores e saíram pelo mundo para espalhar essa notícia dispostos a morrer por causa disso. Algo novo, inesperado, surpreendente, tinha acontecido. Voltaremos sobre o assunto no próximo domingo.
Agora, o convite, é refletir e tentar responder à pergunta que “a cidade inteira” de Jerusalém, na sua agitação, fazia-se: “Quem é este homem?”. As leituras da Liturgia deste Domingo de Ramos nos ajudam, mas nada e ninguém poderá substituir o que cada um de nós pensa e declara acreditar, porque nós “recebemos” dos outros, através da comunidade cristã, o conteúdo da fé, mas a adesão a ela só pode ser pessoal, dada no exercício da nossa liberdade e no silêncio da nossa consciência. Vou apresentar algumas respostas. As multidões dizem: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21,11). Certo, um profeta. Mas a pouco servirão o seu exemplo e os seus ensinamentos. No processo, serão usados contra ele. Judas, saúda Jesus com um: “Salve, Mestre”. Em resposta ao seu beijo, ele escuta: “Amigo, a que vieste?”.
 Até o fim, Jesus é amigo dos pecadores, pronto a mostrar-lhes o rosto misericordiosos do Pai. Até por isso foi julgado réu.  Na cruz, colocaram um letreiro com as palavras: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”. Era costume afixar no patíbulo o motivo da condenação. Mas, nesse caso, ficou um “título” que, diz outra coisa: o nome significa “Deus salva”. É como se estivessem escrito que “este” aí, Jesus, era o salvador do seu povo. Para o evangelista Mateus o “nome” de Jesus é importante, o usa mais de que os outros evangelistas. Esse “nome” é lembrado também na segunda leitura da Missa. Após ter dito que “Jesus Cristo” se fez obediente até a morte, e morte de cruz, na carta aos Filipenses lemos: “Por isso Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus é o Senhor”, para a glória de Deus Pai” (Fl 2,9-11). Também os soldados “se ajoelharam diante de Jesus, mas para zombá-lo (Mt 27,29). Um profeta, o amigo dos pecadores, o rei-salvador do seu povo…o Senhor… Afinal, quem é este homem para nós?

Senhor, dá-me dessa água

Senhor, dá-me dessa água (Jo 4,15)    
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá 
Nos próximos três domingos de Quaresma, deste ano, deixaremos o evangelho de Mateus para ler três longos trechos do evangelho de João. Não é um capricho de quem planejou as leituras dominicais. Esses evangelhos, riquíssimos em suas mensagens, são os escolhidos para os ritos dos “Escrutínios” e “Exorcismos” que os Catecúmenos devem fazer durante a Quaresma antes de receber o Batismo na noite de Páscoa. Como era costume, a maioria de nós deve ter sido batizada bem pequenina e, portanto, não deve ter lembrança daquele momento. Os nossos pais e padrinhos decidiram por nós, convencidos de fazer algo certo e muito bom.  No entanto e justamente a Mãe Igreja quer oferecer a todos os que frequentam as liturgias, aos domingos, a oportunidade de “escutar” novamente esses evangelhos. Assim, a cada três anos, podemos nós mesmos avaliar a nossa caminhada na fé, os frutos do Batismo e confirmar a nossa escolha livre e jubilosa de seguir o Senhor Jesus, participando da nossa Igreja-comunidade. Além dessas razões, o Ano Vocacional Nacional nos convida a reavivar o nosso compromisso batismal porque, qualquer seja a nossa “vocação” e a nossa condição social, depois do chamado à vida, deveríamos acreditar que o maior dom que recebemos foi o fato de sermos cristãos, ou seja, de ter encontrado e conhecido Jesus Cristo.
Neste Terceiro Domingo da Quaresma, vamos nos colocar no lugar da mulher samaritana e dialogar com Jesus para ver se chegamos à mesma conclusão dela e dos samaritanos: “Este é verdadeiramente o salvador do mundo” (Jo 4,42). Na beira do poço de Jacó acontece o encontro entre duas sedes: aquela da samaritana, que foi ali para buscar a água para beber e uma outra “sede”, a de Jesus desejoso de ser reconhecido e acolhido por todos além das diferenças religiosas e morais. Com efeito, na frente dele está uma mulher que faz parte de uma crença desprezada pelos judeu e que já teve cinco maridos. Ela demora, mas, aos poucos, vai entendendo. Primeiro percebe que Jesus é “um profeta” (Jo 4,19), depois pergunta sobre o Messias e escuta daquele homem uma extraordinária autoapresentação: “Sou eu, que estou falando contigo” (Jo 4,26). A samaritana esquece o cântaro e volta para a cidade para contar o acontecido, levando consigo uma grande questão que é o passo necessário para alcançar a fé: “Será que não é ele o Cristo?”. Os samaritanos se aproximam de Jesus, escutam as suas palavras e muitos creem.
A página do evangelho da Samaritana diz muitas mais coisas que precisariam ser lembradas e aprofundadas. O que interessa, neste momento, porém, e espero possa ajudar mais alguém, é responder à pergunta: por que esse evangelho é colocado antes do Batismo dos Catecúmenos? Os “Escrutínios” e os “Exorcismos” são uma oração para que aquele que pede o Batismo tenha a força e a coragem de tomar a grande decisão de ser cristão. Terá que renunciar a algumas coisas e acreditar em outras. Talvez, terá que dar um rumo bem diferente à sua vida. Sem essa lucidez, o Batismo corre o perigo de ser reduzido a um costume social tradicional ou a uma imaginária proteção para a criança contra doenças ou maus-olhados. Nesses casos, estamos muito longe da fé cristã. Na prática, se as “sedes” da nossa vida são as do dinheiro, do sucesso, do bem-estar, do comodismo e de tudo o mais de material que empolga a nossa vida e anestesia a nossa consciência, o Batismo não vai servir para muita coisa. A “sede” que Jesus quer satisfazer é a do sentido profundo da nossa existência, ou seja, o desejo e a busca de ter motivações de vida e de compromisso que não nos fechem em nós mesmos, mas nos abram aos irmãos – junto aos quais caminhamos nesta peregrinação terrena – e mais ainda, sede daquela “água” que satisfaz todas as sedes: o Espírito da Verdade que Jesus quer doar aos seus amigos. Somente assim podemos ser os “verdadeiros adoradores” do Pai, filhos amados que colaboram na construção do Reino de Deus já neste mundo. Continuaremos essas reflexões sobre o nosso Batismo com o “cego de nascença” e o retorno de Lázaro à vida.

O rosto de pedra  

O rosto de pedra                         
Dom Pedro José Conti – Bispo de Macapá

Luizinho gostava de contemplar uma imensa pedra que tinha as feições de um rosto. A pedra ficava na encosta da montanha. O rapaz podia vê-la de sua casa. O rosto tinha a expressão de grande força, bondade, alegria e amor que fazia vibrar o coração do garoto. Uma lenda dizia que, no futuro surgiria naquele lugar um homem muito parecido com o rosto de pedra. Durante a sua infância, e mesmo depois de adulto, o garoto Luizinho cresceu contemplando o rosto de pedra que tanto o cativava. Certo dia, Luizinho, já grande, foi fazer compras na cidade. O povo da localidade conversava a respeito da lenda quando, de repente, alguém exclamou: – Vejam só! Luizinho é o homem que se parece com o grande rosto da pedra. Era verdade! Luizinho se tornara semelhante ao rosto que contemplava e que ocupava diariamente os seus pensamentos.

No Segundo Domingo da Quaresma encontramos, todo ano, a página da “Transfiguração”, desta vez, segundo o evangelho de Mateus. Para nos comunicar a sua mensagem e conforme o jeito bíblico de explicar as coisas, os evangelistas usam uma linguagem que chamamos de “narrativa”. Em lugar de definições e conceitos, preferem contar um acontecimento. Tudo isso devia servir para preparar os discípulos ao escândalo da cruz que também continuava a ficar difícil para todos aqueles que se aproximavam para abraçar a fé cristã. Para chegar a ser o Senhor glorioso da ressurreição o mesmo Jesus precisava antes passar pela terrível morte na cruz. Nunca será fácil enxergar algo luminoso na escuridão, na agonia e no abandono daquela morte. A voz do Pai confirma: “Este é o meu Filho amado, no qual pus todo o meu agrado. Escutai-o!” (Mt 17,5).

Onde está a luminosidade daquele Jesus tão humano que acabará rejeitado e condenado à mesma sorte dos malfeitores? Podemos entender isso somente acreditando no amor e na solidariedade divina que não abandona os seus filhos e vai resgatá-los até o fim, até na morte, para que participem da vida plena: a comunhão divina. Toda a vida de Jesus, todas as suas palavras, foram luminosas para quem o encontrava. Semeou esperança para os pobres, consolação aos tristes, paz para que vivia sem rumo e sem sentido. Assim deve ser o dia a dia de quem decide seguir o Senhor no caminho da doação generosa da própria vida. Quem se dispõe a servir aos pobres e aos pequenos é cobrado, é consumido. Se desgasta, sim, mas não desiste de amar, de perdoar, de acolher, como fez Jesus. Outros preferem aproveitar dos irmãos, explorá-los, enganá-los, tirar proveito da ingenuidade ou da confiança dos outros. Qual é a vida mais luminosa, de quem brilha pelo sucesso, a grandeza humana, ou a vida de quem, na maioria das vezes no escondimento da própria casa, de um hospital, de um asilo, de um abrigo, de um campo de refugiados, de um mosteiro (por que não?) se consome para fazer os outros felizes? Desta vez a resposta vem de Pedro que inebriado por alguns momentos pelo rosto brilhante de Jesus disse que era bom ficar lá, que era, simplesmente, maravilhoso.

Nós todos aprendemos a caminhar na vida olhando para os que nos precederam e que já estavam caminhando à nossa frente. Até alguns tempos atrás eram os pais, os familiares, as pessoas ao nosso redor que, com o seu exemplo, nos transmitiam a sabedoria da vida, os valores e a própria fé. Aos poucos, para quem queria, tínhamos tempo de assimilar aqueles ensinamentos. Hoje, evidentemente, não é mais assim. Muitas informações nos chegam de todo e qualquer lado e de toda e qualquer forma cada vez mais apressadas, misturadas, atropelando-se entre si. Quantos querem nos ensinar a viver porque, de fato, sempre precisamos olhar para os outros para aprender a dar um sentido à nossa vida. Também quem está fechado no seu individualismo doentio se achando o único ou a única que entende alguma coisa, não está imune da tentação de imitar alguém. Para nós cristãos, terá alguém mais luminoso do Senhor Jesus? É a ele que devemos olhar sempre. Quem sabe que um dia consigamos mesmo nos assemelhar a ele. Como foi para o Luizinho com aquele rosto bonito de pedra que ocupava os seus pensamentos.

Não só de pão vive o homem

Não só de pão vive o homem (Mt 4,4)
Dom Pedro José Conti – bispo de Macapá 
Iniciando a Quaresma, começamos também a Campanha da Fraternidade. Essa campanha é a proposta concreta da Igreja para que a nossa “conversão” e o nosso “jejum” quaresmais tenham uma atuação prática. No Primeiro Domingo, sempre encontramos a página das “tentações” de Jesus no deserto. A primeira tentação foi a de transformar as pedras em pão, algo muito atrativo para quem estava jejuando. Jesus não aceitou, ao contrário, respondeu com as palavras da Escritura: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Entendemos que essa narração é muito mais que um relato. O que está em jogo é a maneira de como Jesus viverá o seu “messianismo”. Será alguém ambicioso pelo poder humano, dominador do mundo, um “rei” maior do que todos os demais, um milagreiro insuperável ou um enviado pelo Pai para ensinar o caminho, difícil e sempre novo, da gratuidade e do amor? Pelos Evangelhos e pela pregação dos apóstolos conhecemos como foi a vida de Jesus, ele “andou fazendo o bem” (At 10,38). Foi um dom para quem o encontrava,  deixou-se consumir pelo amor aos pobres, aos enfermos, aos pecadores, até oferecer a própria vida na cruz. Ele nos ensinou que a realização do Reino dos Céus, a “nova” humanidade fraterna, passa pela solidariedade, a partilha, a generosidade.
Ainda hoje, escutamos pessoas dizendo que se Deus fosse bom mesmo não deveria deixar ninguém morrer de fome, como se a culpa do egoísmo e das injustiças humanas fosse dele. O trecho do evangelho de Mateus (14,13-21) escolhido como iluminação bíblica para a Campanha da Fraternidade 2023 é aquele que nos acostumamos a chamar de multiplicação dos pães e dos peixes, e o lema repete as palavras de Jesus aos discípulos que queriam despedir o povo: “Dai-lhes vós mesmos de comer!”. Ao juntar o pouco alimento  disponível oferecido, ao entregá-lo nas mão de Jesus que o abençoa e ao distribuí-lo, algo surpreendente aconteceu: “todos comeram e ficaram saciados”. E ainda sobrou. A resposta decisiva à questão gravíssima da fome no mundo e no Brasil virá, sem dúvida, de uma melhor e mais justa distribuição dos recursos e das riquezas que o planeta – dádiva de Deus- nos oferece. Tudo deve começar, porém, pelos pequenos gestos, como foi aquele de partilhar os cinco pães e os dois peixes. Para que consigamos fazer isso, precisamos antes experimentar o mesmo que Jesus sentiu ao ver aquela multidão de sofredores e famintos: ele “encheu-se de compaixão” (Mt 14,14).
 Essa “compaixão” é muito mais do que um sentimento, ela vai junto com a consciência de que algo está errado e, sobretudo, com o impulso a agir para que o sofrimento daqueles irmãos e irmãs seja mitigado. Este sempre será o primeiro passo a ser dado em sinal de solidariedade com quem passa fome. É a primeira das obras de misericórdia: “Estava com fome e me destes de comer” (Mt 25,35). Quantas ações bonitas as nossas paróquias e comunidades realizam neste sentido! No entanto, sabemos que isso não resolve o problema que é social e complexo. Por isso, a Campanha da Fraternidade, que pela terceira vez coloca a questão da fome,  convida-nos a procurar e a reconhecer as responsabilidades e as mazelas que causam essa situação. Não basta dar uma “esmola” para quem precisa e assim silenciar a nossa consciência. Esse gesto sempre será uma das obras da penitência quaresmal, mas aos problemas sociais devemos dar soluções que envolvam toda a sociedade, ou seja leis justas e, quando for necessário, mudança também das relações econômicas entre as pessoas, as empresas e países inteiros. Quando uma ação precisa do envolvimento e da boa vontade de todos são necessárias motivações humanitárias , que vão além dos projetos partidários e de poder. Para nós, cristãos, as motivações nos vêm da Palavra de Deus, luz e alimento para as nossas escolhas pessoais e comunitárias. Por isso, junto ao “pão”, os cristãos têm que oferecer amizade, respeito, acolhida. A verdadeira “compaixão” deve alegrar o coração de quem doa e de quem recebe, para que, junto com a fome, sejam vencidos  também a indiferença e o egoísmo.

Só um exemplo

Só um exemplo
Dom Pedro Conti, Bispo de Macapá

 O pequeno André, impressionado pelos noticiários da TV, pergunta:

– Pai, como é que começa uma guerra?

– Querido, as coisas andam mais ou menos assim: por exemplo, entre a Inglaterra e os Estados Unidos surge um forte dissídio sobre alguma questão grave… A mãe intervém:

– Não fale bobagem, Inglaterra e Estados Unidos nunca vão brigar!

– Sei – responde o pai – era só um exemplo.

– Assim você enche a cabeça do menino de besteiras – insiste a mãe.

– Mas, ao menos, eu lhe coloco algo na cabeça, você é o vazio absoluto!

– Você está ficando ridículo! – continua a mãe.

– Tudo bem, obrigado, já entendi – conclui o pequeno André.

Uma pequena história no dia em que as nossas famílias festejam os pais e encontramos um evangelho, de certa forma, surpreendente. Jesus nos diz que não veio trazer a paz, mas a divisão entre familiares. Ele vai lançar um fogo sobre a terra e gostaria que já estivesse aceso. Deve receber um batismo e está “ansioso até que isso se cumpra”. Vamos tentar esclarecer de qual fogo, de qual batismo e de qual paz Jesus está falando. Para a Bíblia, em geral, a “paz” é algo muito valioso. Podemos chegar a dizer que a paz é o conjunto de todos os bens, materiais e espirituais, prometidos por Deus. Na linguagem dos evangelhos “paz” e Reino de Deus coincidem. Nós cantamos na liturgia: “Onde reina o amor, Deus ali está”, ou seja, a presença do Senhor na caminhada do seu povo e na vida das pessoas que se amam é a maior alegria, é a plenitude da comunhão e da fraternidade. No entanto, essa “paz” é um bem que ainda deve ser alcançado, construído, esperado. Com a Ressurreição de Jesus, a sua vitória sobre o mal e a morte, o Reino da Vida e da Paz já começou, mas temos um longo caminho de conversão à nossa frente.

Por “fogo” podemos entender o próprio dom do Espírito Santo com sua luz e sua força, mas também a luz da verdade, a fogueira que queima toda violência, ódio e mentira. Por “batismo”, enfim, podemos entender – como o próprio Jesus fala em Mc 10,38-39 – o sofrimento e a morte de cruz. Podemos dizer que a paz, entendida no sentido grande da palavra e não como uma simples concordância ou uniformidade, é um bem que, para ser alcançado, precisa de muita luta contra os nossos interesses, orgulhos e ambições de poder individuais ou de grupos. A “paz”, como tudo o que é bom, duradouro, profundo e sério de verdade, exige renúncias, colaboração, partilha, solidariedade, gestos de perdão e reconciliação, fidelidade à palavra dada. De um lado, precisa-se do “fogo” de quem tem a coragem e o entusiasmo para mudar as coisas erradas e, do outro, a disposição para perseverar na busca e suportar os sofrimentos que vêm das traições e dos fracassos. Contudo a paz verdadeira é um bem tão grande que vale a pena qualquer esforço e sacrifício para alcançá-la.

Penso agora nas nossas famílias e no desejo que todos os pais têm de ver os seus filhos unidos, respeitando-se e ajudando-se. Toda família é diferente e é formada por pessoas diferentes, por isso, uma família unida é uma pequena oficina onde é possível ensaiar como poderia ser uma sociedade “fraterna” sem inimigos, divisões, ciúmes e invejas. Se Jesus fala de “divisão” é porque conhece o coração humano e sabe quanto é difícil acertar a convivência entre as pessoas, incluindo as nossas famílias. Jesus nos diz que não adianta fingirmos ou nos iludirmos que somos unidos quando, no fundo, descuidamo-nos dos laços que constroem a comunhão. Às vezes, é necessário reconhecer as divisões, para sentirmos saudade dos irmãos, das brincadeiras, das diversidades que nos enriquecem a todos. Feliz aquela família que nunca desiste de se reunir, superando as distâncias e as desavenças. Felizes aqueles pais que, vez por outra, podem ver os seus filhos e netos conversando sem agressões, confiando uns nos outros. Quem sabe que este dia seja hoje mesmo, Dia dos Pais – e das Mães – dia das famílias que sabem cuidar também das suas feridas, porque acreditam no Senhor, Rei da Paz. Já sabemos como começam as guerras. Vamos aprender a fazer florescer a paz!