O Fim do Mundo

O Fim do Mundo

Quando disseram
que o mundo ia acabar
Tia Lila pegou seu terço
e pôs-se a rezar.

O dono da venda
dividiu toda a mercadoria
com seus funcionários
e distribuiu o dinheiro do caixa
para os mendigos.

A recatada dona Clotilde
jogou-se aos pés do marido
e implorando perdão
confessou que o tinha traído com o compadre.

Seu Joaquim, um santo homem,
ajoelhou-se no meio da rua
ergueu as mãos para o céu
e pediu perdão a Deus
pelos assassinatos que cometeu
como matador de aluguel.

No dia seguinte
o dono da venda pedia esmolas,
a recatada Clotilde, expulsa de casa,
foi morar num velho puteiro,
Seu Joaquim foi preso.

Só Tia Lila continuou do mesmo jeito.
De terço na mão continuou rezando
e entre uma oração e outra murmurava:
– É mesmo o fim do mundo
– Dona Clotilde, hein, quem diria?
– Seu Joaquim com aquela cara de santo, hein!
É o fim do mundo! É o fim do mundo!

(Alcinéa Cavalcante)

Bilhetinho

Bilhetinho

Meu caro:
recebi tuas bem traçadas linhas.

Tua caligrafia é muito linda.
Porém, confesso, o que mais me encantou
foi o selo colado
no envelope “par avion”.

Arranquei-o com cuidado.
Ele agora faz parte da minha coleção.

Tua missiva eu guardei
naquela caixinha cor-de-rosa.

Prometo  responder
assim que tiver um tempinho.
(Alcinéa Cavalcante)

Procura

Procura

Eu estava lá quando o sol
jogou sorrisos dourados no rio-mar.

Eu ainda estava lá
quando uma estrela riscou o céu
e um pescador apanhou uma estrela do mar.

Por testemunha tenho um bem-te-vi
que bem me viu
quando as andorinhas bailavam no ar.

Quis fundir ouro com prata,
estrela cadente com estrela do mar
e cantar um canto novo
para sair bailando contigo.
Mas
tu não estavas lá.
(Alcinéa Cavalcante)

Visita indesejada

Visita indesejada

Tem uma saudade batendo na minha porta.
Não vou abrir.
Conheço bem essa figura.
Entra
se aboleta no sofá
e não quer mais ir embora.
Abusada
invade a cozinha
adentra o quarto
deita na cama.
Não vou abrir a porta, não.
Não estou pra esse tipo de visita.
Gosto daquela saudade
que chega de mansinho
trazendo lembranças perfumadas,
um verso e um riso
toma uma cafezinho
e vai embora.
(Alcinéa Cavalcante)

Em noite de lua cheia

Em noite de lua cheia
(Alcinéa Cavalcante)

Vamos namorar na praça, meu bem,
aproveitando este luar
que se derrama sobre a cidade.
Abraçados contaremos histórias
do espaço sideral
e embarcaremos numa nave brilhante
que nos espera no centro da praça.

Trocaremos juras de amor entre as estrelas
E lá do alto veremos a Terra
como um imenso bolo
confeitado com anelina azul-ternura.

Vamos namorar na praça, meu bem,
e embarcar na nave brilhante
que pousará na Lua
onde com um lápis mágico faremos um desenho.

Já pensou, meu bem, na surpresa dos astronautas
quando virem na lua
um coração com nossos nomes dentro?

Meio-dia

Meio-dia
(Alcinéa Cavalcante)

Para onde vai
esse menino de andar tristonho
com uma camisa verde desbotada amarrada na cabeça?
Ele não caminha em direção ao sol.
Caminha sob o sol.
O sol queima.
O asfalto queima.
As lágrimas queimam.
Para proteger a cabeça tem uma camisa verde desbotada.
Para proteger os pés um par de tênis surrado.
Mas quem – ou o que – pode protegê-lo da tristeza que aflige seu coração
e se derrama em lágrimas queimando sua face?

Quando a gente se guiava pelas estrelas

Quando a gente se guiava pelas estrelas

“Olha! Olha!” Exclamava o menino apontando para o céu.

“Lá vai, lá vai”.

E todos olhavam e viam e falavam sobre o objeto que passava saltitante entre nuvens e estrelas.

Não. Não era um disco voador. Era simplesmente um satélite, provavelmente desses que ficam fotografando a Amazônia.

Diversão da meninada naquele tempo, quando a noite caía, era sentar na frente da casa e olhar o céu, caçar satélites e estrelas cadentes, procurar São Jorge na Lua e identificar constelações.

O telescópio era um canudo de cartolina.

Ah, tempo bom, quando a gente sabia se guiar pelas estrelas e sonhava ser astronauta para visitar outros mundos, brincar em outros planetas e, depois, voltar à Terra com as mãos transbordantes de estrelas.

Trazer também uns fiapos de nuvem para fazer algodão doce, pois que a vida, meu irmão, era uma doçura e plena de encantamento naquela rua sem asfalto, sem bangalôs, sem muros e sem televisão.

(Alcinéa Cavalcante)

Marte? Nem pensar!

Marte? Nem pensar!

Não , meu bem.
Desta vez não vou contigo.
Marte não me seduz.
A água de lá não tem o cheiro do mururé.

Em Marte, meu bem,
não tem flores,
logo não tem beija-flor.

Não tem mangueiras,
logo não tem aquela algazarra de periquitos
que inebria o poeta Fernando Canto.

Não tem praças, música, livros,
papel e caneta.
Não tem poesia nem poetas.

Li no jornal que os habitantes de lá
tem voz metálica
corpo engraçado
e cara esquisita.
São todos verdes, todos idênticos, todos estranhos.

Você quer ficar verde de susto, meu bem?
Eu não.

(Alcinéa Cavalcante)

Paisagem antiga

Paisagem antiga

Alcinéa Cavalcante

Quero de volta
a paisagem antiga da minha rua
com suas casinhas brancas
cobertas de palha
gamela no jirau
fogão de barro na cozinha
e passarinhos no quintal.

Quero de volta
aquela paisagem antiga
com a casa avarandada do Mané Pedro
e a casa sem pátio da Maria Banha.
Os meninos de pés descalços
jogando bola na rua sem asfalto
e as meninas de sapatinho branco
brincando de roda.
Quero de volta
a paisagem antiga da minha rua
com minha casa de venezianas cor-de-rosa,
minha mãe no alpendre
bordando flores nos lençóis
e minha avó rezando o terço.
Quero de volta
a paisagem antiga da minha rua
só pra sonhar de novo
os sonhos que sonhei na infância
quando o mundo era feito só de amor
e todos sabiam viver como irmãos.