Categoria: Alcy Araujo
Aero-anjos
AERO-ANJOS
Alcy Araújo (1924-1989)
As aeromoças tem alguma coisa que fazem o cronista lembrar os anjos. Poderiam ser chamadas de aero-anjos. São delicadas, solícitas, atenciosas, azuis. Comovem o mísero mortal, o vivente desta terra, o habitante do sub-nuvens.
As aeromoças são tranquilizantes. Tiram o pavor que afeta os que têm medo de viajar, os que não entendem o mundo a jato, os que são como eu, que viajo com o terço na mão.
Pegado a terra, enraizado ao chão de todo o dia, mal compreendo as moças que cruzam os céus, que cavalgam nuvens no corcel alado que Santos Dumont, aquele mágico maluco criou, num momento de inspiração magnífica.
As aeromoças não são criaturas humanas como nós outros. Pelo menos quando estão no céu, praticando gentilezas, sorrindo, inventando simpatia.
São anjos de uniforme, aero-anjos-moças. Elas comovem este poeta, pela ternura que oferecem a 9.000 metros de altura, a 850 quilômetros horários dentro da cabine pressurizada.
Aceita cigarros? Não quero fumar, mas aceito. Aceita um drinque? Não quero beber, mas aceito fico humilde e sem vontade diante das aeromoças. Tenho medo de contrariar, de ofender, ao menos de raspão, a gentileza com que me cercam. Tenho medo que o aero-anjo volte, de repente, à sua condição humana e terráquea. de gente deste planeta e acabe a magia, o encantamento que dura o breve instante de uma viagem a jato.
Que as aeromoças realizem todos os seus sonhos e se transformem em anjos. E me levem pela mão, num gesto ternural.
(Do livro Ave Ternura)
Hoje – Centenário do nascimento do poeta e jornalista Alcy Araújo
“Canto a terra, a dor dos aflitos
e a inútil esperança dos desesperançados.
Também os negros, os índios e o verde
e presto relevantes serviços topográficos
demarcando itinerários de poesia.”
Alcy Araújo
Fez parte da Academia Amapaense de Letras ocupando a cadeira 25.
Na música, Alcy – tendo como parceiro Nonato Leal – venceu vários festivais, inclusive o I Festival Amapaense da Canção.
No carnaval, compôs belíssimos sambas de enredo para a Embaixada Cidade de Macapá e Maracatu da Favela, recebendo, todas as vezes, a nota máxima dos jurados.
“Aqui estão as minhas mãos, falando palavras feitas de pássaros e
de ausências e cantando canções sonhadas em segredo.” (Alcy Araújo)
Participação – Poema de Alcy Araújo
Participação
Alcy Araújo Cavalcante (1924-1989)
Estou convosco.
Participo dos vossos anseios coletivos.
Vim unir meu grito de protesto
ao suor dos que suaram
nos campos e nas fábricas.
Aqui estou
para juntar minha boca
às vossas bocas no clamor pelo pão
sancionar com este rumor que vai crescendo
a petição de liberdade.
Estou convosco.
Para unir meu sangue ao sangue
dos que tombaram
na luta contra a fome e a injustiça
foram vilipendiados em sua glória
de mártires
de heróis.
Vim de longe
percorrendo desesperos.
Das docas agitadas de Hamburgo
das plantações de banana da Guatemala
dos seringais quentes do Haiti.
Vim do cais angustiado de Belém
dos poços de petróleo do Kuwait
das minas de salitre do Chile
Passei fome nos arrozais da China
nos canaviais de Cuba
entre as vacas sagradas da Índia
ouvindo música de jazz no Harlem.
Afundei nas geladas estepes russas.
morri ontem no Canal da Mancha
e hoje no de Suez.
Tombei nas margens do Reno
e nas areias do Saara
lutando pela vossa liberdade
pelo vosso direito de dizer
e de amar.
Estou convosco.
Voluntariamente aumento o efetivo
dos que não se conformam
em viver de joelhos
morrendo sufocando lágrimas
nas frentes de batalha
nas prisões
para dar à criança recém-parida
o riso negado aos vossos pais
o pão que falta em vossas mesas.
Meu filho
e o filho do meu filho
saberão que o meu poema não se omitiu
quando vossas vozes fenderem o silêncio
e ecoarem inutilmente nos ouvidos de Deus.
(Do livro Poemas do Homem do Cais, do poeta Alcy Araújo Cavalcante, meu pai, lançado no Rio de Janeiro em 1983)
Lirismo – Poema de Alcy Araújo
LIRISMO
Alcy Araújo (1924-1989)
Não,
eu não te darei um mal-me-quer.
Eu te darei
uma rosa de todo ano
e uma estrela
e uma lua branca
muito branca
um lírio
– porque os polichinelos ficaram inanimados
no bazar.
Depois
farei o poema do nosso primeiro beijo
recostarás tua cabeça no meu peito
e meus dedos compridos
acariciarão os teus cabelos
e Deus saberá
que nós estamos nos amando
porque haverá luz
e um grande silêncio
no pensamento das coisas.
Véspera – Alcy Araújo
VÉSPERA
Alcy Araújo
É tempo de esperanças…
Do céu descem os cânticos dos anjos e da terra sobem as canções dos pastores. Os campos vestem a alva pureza dos lírios.
O céu é mais azul e uma imensa luz chega no coração dos homens de boa vontade.
No vento soprando, na canção dos que vem do mar, na luz da tarde, no silêncio das florestas, no sorriso das crianças, no cansaço dos peregrinos, em toda parte há um anúncio de paz.
De longe vem a mensagem de amor que desliza no ar iluminado, que escorre no fio das águas das fontes, que está no murmúrio dos regatos, que desce nos prateados raios da estrela dos pastores.
Nas lágrimas das mães, no pranto dos órfãos, na poeira dos caminhos, em tudo está a harmonia celestial.
Ajoelhemos nossas almas no altar da humildade, porque este momento é um momento de Amor. Cristo vai nascer. É véspera de Natal.
(Do livro “Tempo de Esperança”, do poeta e jornalista Alcy Araújo, meu pai)
Para meus filhos – Alcy Araujo
PARA MEUS FILHOS
Alcy Araújo Cavalcante
(1924-1989)
Escrevo para meus filhos. Para dizer que é tempo de esperança entre tantas desesperanças e que há, no coração grisalho, a certeza de que me realizei em vocês, em cada nascimento de vocês, em cada Natal de vocês.
Poderia dizer outras palavras, alinhar outras expressões. Mas acho que dizendo que me realizei em vocês, estou dizendo o melhor que vem do meu dentro, do que sou, do que amo como pai e como homem, cargueado pelas vivências cotidianas e relativas.
Desejo que vocês e todos que tomarem conhecimento desta crônica fiquem sabendo que eu os amo, porque vocês estão em mim, nas minhas horas nuas, nos meus instantes mais íntimos, nas coisas que mais me pertencem, como me pertencem as mágoas que plantei como um lavrador de angústias.
Estamos mudando e eu não vou garimpar palavras, nem costurar termos estabelecidos, nem concretar um poema. Não que vocês não mereçam. É que tenho medo de não ser transparente, não existir à luz equatorial, não exibir suficientemente esta alegria de curtir vocês em cada vereda por onde passam meus pés nus e pesados como barcos que buscam o fundo do mar, do grande mar absoluto.
Gostaria de construir nesta página o meu sonho, o destino de cada um. E vocês teriam as mais belas profissões, como as de santos, poetas, sacerdotes, pintores… mas quem sou eu, além de um pai, para construir destinos?
Todavia, eu ergo as mãos plenas de carinho e acaricio a cabeça de cada um, num gesto de bênção. Deus os abençoe, pelo muito que consegui ser como poeta e como homem sofrido. Feliz Natal para vocês…
Belíssima crônica natalina de Alcy Araújo
ESTRELA NO CÉU
Alcy Araújo Cavalcante (1924-1989)
Olho para o Oriente e vejo, além da minha compreensão, uma estrela no céu. Não é a minha estrela da guarda. É uma estrela diferente, no brilho e na cor. Querem me convencer que é um cometa. Não acredito. Descubro que tem vida e transporta uma mensagem de fé, de esperança e de concórdia.
Posso ouvir sua voz no silêncio da noite e sinto seu perfume e a sua música. Apesar de ser assim não fico assombrado. Não tenho nenhum medo dos meus medos cotidianos. Sinto que a estrela fala comigo e diz: “Segue a minha luz” e estendo os braços em direção à cidade de Belém.
Alguma coisa muito bela vai acontecer na cidade, porque a estrela tem música e o céu está perfumado nestas noites claras em que os anjos passam apressados no azul. E o azul é mais azul e a luz é mais luz. Deve ser tempo de nascer esperança.
Também é muito estranha a passagem daquela caravana de Reis Magos. Eles são de tribos diferentes. Um tem a pele cor de ébano. O outro tem a pele curtida pelo sol do deserto. E há um terceiro, de cabelos dourados e pela branca como a neve das estepes. Não sei onde os seus caminhos se encontraram. Mas eles vão juntos e olham para a estrela. Sinto que estão fascinados. Isto diz que vai acontecer uma coisa muito importante no mundo. E eu não tenho nenhum medo.
Deve ser uma coisa muito linda, tanto que meu coração sente uma imensa alegria. Acho que vai nascer um menino na cidade de Belém. Mesmo porque as flores estão sorrindo e quando as flores sorriem é porque vai nascer uma criança.
Este negócio de anjos passando também é muito significativo.
Meu coração se apercebe que uma grande luz se aproxima do mundo e que a escuridão enorme dos nossos pecados pode ser dissipada.
Há mais uma coisa. Olho para Roma e vejo que os deuses fitam-se com admiração e assombro e sei que está chegando uma nova era. Esses reis passando, essa estrela diferente, essa música vinda dos céus, esses anjos … tudo é muito concludente.
Na certa vai nascer uma criança na cidade de Belém da Judéia e haverá paz aos homens de boa vontade.
Poema com destino à Noruega – Alcy Araújo
Poema com destino à Noruega
Alcy Araújo
Eu ando com a cabeça baixa e dolorida
tateando na sombra dos guindastes
o corpo flácido das mulheres das docas
dentro da noite no cais.
Por que passam por mim tantos
marinheiros, navios, ondas balouçantes?
Se eu pudesse
descansaria a cabeça dolorida
num saco, num fardo, numa caixa,
depois escreveria um poema simples
e montava-o na onda com destino à Noruega.
E a moça loira que o lesse ao sol da meia-noite
não saberia nunca que sou negro, fumo liamba
e tenho as mãos revoltadas e calosas.
(Do livro Autogeografia – Macapá-AP – 1965)