O rasgador de letras – Ruben Bemerguy

O rasgador de letras
Ruben Bemerguy*

Sou o único destinatário das coisas que escrevo e também das que não escrevo. As que escrevo, não leio. As que não escrevo, dedico tempo juntando letras imaginárias aqui e acolá, até ter ideia clara das cores predominantes em cada uma delas.  Depois as rasgo. Elas gotejam, como padecessem de desmedida dor moral. Sinto que elas – as letras – não perdoam minha inclemência, mas é assim que me omito de mim e sofro um pouco menos exatamente por não me conhecer, gravado ou não em papel.

Ignoro-me não por pesar, mas por amor. Meu grau de proximidade comigo, um certo sentimento de tolerância mesmo, está na precisa distância que de mim estabeleço.

Não sei de meus olhos ou do revestimento de minha pele. Acuso apenas a noção de minhas unhas. Delas, não posso prescindir. Não só por ser rasgador de letras, mas também pela necessidade de laminar frequentemente grande porção da vida.

Assim, dela, – da vida -, obstinadamente, dilacero de um tudo. De mim, sobra pouco. Esse resto trago empilhado na zona mais afiada das unhas, como se prestes a feri-lo ao mais tímido indício de remorso de ainda conservar algo de mim.

Nessa escuridão permanece o que de tenra idade ainda tenho: uma ginjeira, uma rabiola, um bem-te-vi, a primeira sessão de domingo no cine Macapá, um pedaço de menta, uma revista do Tio Patinhas e outra do Mandrake, um conga azul e um vulcabrás preto, um gol perdido, uma monareta, o tio Casemiro, seu Banha e um avião cruzeiro do sul, um pouco de extrato de alfazema, dois vinis: um Long Play e um Compact disc, um rabino distante e uma prece, alguns quebrantos, meio retrato onde não mais me pareço e um segredo. Isso é tudo que ainda me acompanha.

Compareço ao meu encontro a cada segundo. Arrumo e desarrumo na prateleira do vento isso tudo e depois, freneticamente, torno ao arquivo morto. Em seguida, volto ao ponto de partida. Sou assim.

Só não toco no segredo. Tenho medo. Ele, a ninguém deve ser dito. Muito menos a mim. Fico a imaginar se o descubro descalço e se seus pés decidem percorrer meu tronco em tênue intensidade? Se o descubro sem túnica e se seu corpo é bordado e se me põe em cerco militar e se minha infantaria a ele adere e se ele me escraviza? Se o descubro a articular outros segredos em meus ouvidos pastos? Se o descubro Cacique e se ele em círculos me canta e se seu arco arremessa uma flecha e se a flecha me vaza e se, por um lapso, eu gozar? Não. Nesse segredo eu não toco. Tenho medo.

O medo sincero é a mais gentil e sublime virtude de qualquer rasgador de letras. Mas não basta ter medo. É preciso também falar baixo. Bem baixinho, pra não excitar o segredo. Em mim, ele – o segredo – dorme, mas tem sono leve e isso é um risco permanente. Minha melhor porção o embala e o vigia, sem tréguas.

Sob o ângulo da vida, pareço louco. Ela – a vida – teima em nunca resignar-se a arquitetura dos que laceram letras. Daí, me quer em holocausto. Contra mim, imputa falsamente versos que nunca fiz, músicas que jamais ouvi, danças que nunca passei, beijos que não guardei.

Eu, na quietude da mais serena convicção, nada faço. Se o segredo dorme, me basta.

À vida, apenas digo: não me doce, nem me salgue. Me alme.

*Ruben Bemerguy é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras

SELFIE – Por Ruben Bemerguy

SELFIE
Ruben Bemerguy*

Tenho muitos vícios. O mais imperfeito deles é o vício de fumar. O mais perigoso é o vício de amar.
Imperfeitos ou perigosos os vícios me impõem a condição de servo.

Do primeiro – fumar – não raras vezes tentei me libertar, mas ainda sem êxito. Do segundo – amar – dado ao elevado grau de risco, já estou serenamente livre. É que amar mata. Segundo minhas observações, quem traga o amor como eu trago é candidatíssimo ao óbito precoce. Não há pulmão que resista a um grande amor. Melhor fumar. Fumar salva vidas.

Há outro vício. Desse, tal como o vício de amar, também permaneço liberto, ainda bem. É o vício da Selfie.  Criei até uma certa antipatia pela palavra Selfie. E olhe que amo as palavras. Só a elas, inclusive.

Mas Selfie é um estrangeirismo que faz com que quem o pronuncie passe representar o mais imponente falso-culto, quando pouco. Aliás, falso-culto é uma expressão, inventada por mim e para mim, exclusiva para identificar a exata futilidade da Selfie. A verdade, é que ando com raiva das Selfie’s. Em outras palavras, falso-culto tem o sinônimo falso-mundo. É, definitivamente, uma palavra criada para me proteger dos cínicos.

Selfie é, portanto, um auto-retrato (muitas vezes um multi-retrato) onde se irradia a vaidade própria, próprio da própria desconfiança.

A Selfie nunca será um retrato. O retrato nasce em outros olhos e isso é suficiente para distanciá-lo da Selfie. A Selfie, assim, é um verdadeiro funk ostentação.

Seja como for, e por isso mesmo o falso-mundo, eu nunca me deparei com uma única Selfie triste. Selfie que chore. Selfie saudade. Selfie volte pra mim. Selfie dúvida. Selfie perdi. Selfie me perdoe, eu errei.

Só encontro Selfie triunfante. Selfie Sorridente. Selfie Forte. Selfie Valente. Selfie ouruda. Selfie Feliz.

Ontem estive com o Rio. Expliquei quanto a meu vício de fumar e de como isso tem salvado a minha vida. Ele confidenciou que também inala do mesmo vício e por essa simples razão ainda existe. Depois, respirou fundo, e molhando em suas águas o vício do amor na modalidade cem metros rasos vaticinou: “Ouça Ruben, o amor não passa de um traço feito a lápis na cortina d’água”. E olha, de amor e de água o Amazonas entende mesmo. E muito.

Já quanto ao vício da Selfie, ele – o Rio – acha tudo muito natural. Justifica ensaiando que o aperto de pés, por exemplo, é mais sagrado do que o aperto de mãos. E que nós só assistimos os apertos de mãos porque o aperto de pés só se revela na volúpia de nossas águas mais profundas e, por isso, é invisível a olhos nus. Nada mais invisível do que o aperto de pés, segundo o Rio.

Quando comprimimos os pés descalços em outros pés descalços – me disse o louco do Rio – embora ninguém veja, ninguém saiba, caminhamos exatamente para a invisibilidade dos destinos paridos no vício que mata, mas sem o qual não se vive. O tal do vício de amar.

Para o Rio, esse excêntrico excessivo, seja a selfie auto ou multi, ela – a selfie – é palavra sem gênero e só por isso estaria justificada sua existência e proliferação. Para ele, a Selfie é e sempre será um aperto de pés. O que o selfie revela mesmo ninguém vê porque não é pra ver mesmo. É assim mesmo. Pés entrelaçados. Palmas enlouquecidas. Dedos em riso.

A Selfie é desse modo. Só anota que os pés existem, mas o aperto de pés é caligrafia que só se decifra no vício de amar.

Me despedi do Rio e ri. Ri muito. Costumo rir dos Rios.  Me diz o Rio que o vício de amar é efêmero e quer me fazer crer nele e em Selfie. Ora veja!

Arranquei um cigarro do bolso esquerdo, acendi a luz que me salva a vida e segui. Simplesmente segui.

*RUBEN BEMERGUY é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras

Mãe, eu queria ser seu neto – Ruben Bemerguy

Mãe, eu queria ser seu neto
Ruben Bemerguy

Mãe, eu queria ser seu neto.

Não que eu creia que os netos sejam mais amados pelos avós do que foram ou são amados os filhos, ou algo parecido. Não. A lógica do amor desses amores – se é que o amor tem alguma lógica – aproxima intensidades sem-segundos e, ao contrário, até os unifica. Dois são um, embora sejam dois e não um.

Mãe, eu queria ser seu neto porque eu queria ser criança duas vezes. Uma vez só não me bastou. Nem sei se devo condenar – ou pedir desculpas – as longas tranças do tempo, mãezinha, mas não posso prescindir de desejar ser criança duas vezes. Não. Não com a mãe que tive.

Tivesse sido eu, por exemplo, filho da Rainha Elizabeth, mãe, e não reclamaria – nem pensaria nisso – o capricho de também ser, além de filho, neto, e, assim, teria me bastado ser criança uma vez só, filho fosse eu da Rainha Elizabeth.

As Rainhas, inclusive Elizabeth, veem o mundo sob uma perspectiva psicológica tão egoica que filhos e netos, antes de filhos e netos, são súditos. Daí, mãe, que as Rainhas, se se prestar bem atenção, aprisionam as liberdades já no útero e, com domada timidez, vivem a acenar ao vento como a cumprimentar a si mesmas.

Que coisa, mãe!

Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha de cócoras brincando com os filhos ou com os netos. Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha abraçando e beijando os filhos ou abraçando e beijando os netos. Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha medir a temperatura dos filhos ou dos netos.

Nunca vi, e nunca vi ninguém que viu, uma Rainha brincar de “bole-bole”, de “trinta e um alerta”, de “macaca”, ou de “Queimada” com filhos ou netos. Boca de forno, mãezinha, nem em fantasia. A senhora lembra, né? “Boca-de-Forno…Forno… Jacarandá?… Dá… E Se Não Der? …Apanha Um Bolo”.

Mãe, imagine se as Rainhas soubessem fazer tacacá, mugunzá, beijo de moça, cocada e uma fogueira de São João! Mãe, imagine se as Rainhas soubessem se perder no caminho da fazendinha, se soubessem se achar na cor do Curiaú?

Fazer tricô, mãe! Tricô, mãezinha – feito à mão – é um imperativo a qualquer Rainha. Rainha que não sabe tecer não tem novelo para o trono e, então, não é Rainha.

Por isso, mãezinha, o sinônimo da palavra Rainha, para mim, sem alterar em nada seu significado, é Helena. Se desenhasse a palavra Rainha a partir de uma figura de linguagem, quase que uma onomatopeia, a palavra Rainha seria decorada com som de seu nome: Helena.

Minha sorte, mãezinha, é que sendo a senhora uma Rainha de verdade, e como as Rainhas de verdade não estão sujeitas à morte, posso, na infinidade da minha crença, me reapresentar como criança sempre que sentir saudades suas, seja como filho, seja como neto.

Tudo isso porque eu queria mesmo, minha Rainha, além de filho, ser seu neto.

(Ruben Bemerguy é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras)

Lembranças da Velha Boa

Lembranças da Velha Boa
João Silva*

Como esquecer a RDM do meu tempo, a Velha Boa?!

Logo, a emissora oficial era o som da notícia capaz de buscar um caboclo, um ribeirinho onde ele estivesse na imensidão da floresta amazônica.
Idealizada por Janary Nunes, a RDM foi mais que mera emissora oficial, foi a pioneira, a escola do rádio, o marco da comunicação no Amapá!
Em som cristalino, a Velha Boa dava seu recado para diminuir a distância e o isolamento, para levar a notícia, a música, e o entretenimento ao povo da cidade e aos nossos irmãos insulados pela floresta e o grande rio!
No interior, todo caboclo se ligava nas ondas da RDM, toda caboclo tinha um rádio, e reunia a família na frente do rádio como se estivesse assistindo televisão só pra ouvir as notícias, as mensagens transmitidas pela emissora oficial, seu velho e infalível correio de voz!
Em Macapá, duvido que uma casa não tivesse um rádio ligado na RDM quando não havia televisão, emissoras FM e redes sociais; o macapaense viajava nas emoções da Velha Boa, ficava colado na rádio novela, no Grande Jornal Falado E-2, nos programas de auditório, no Carnet Social, nas transmissões das paradas cívicas e dos jogos de futebol!
Todo aspirante ao rádio sonhava em fazer rádio na Velha Boa, e eu passei pela RDM algumas vezes: a primeira pelas mão de Benedito Andrade e Chico Salles de Lima; cruzei com algumas lendas como Pedro Afonso da Silveira, José Machado, Joaquim Ramos, Eulálio Modesto, João Lazaro, Amazonas Tapajós, Agostinho Sousa, Edvar Mota, Bonifácio Alves, cheguei a ver Edna Luz.
No esporte da RDM por onde entrei na emissora pela primeira vez em 1968, ouvi falar em Guioberto Alves, Carlos Cordeiro Gomes, Julio Salles, Guilherme Jarbas, José Maria de Barros, Rupsilva, Estácio Vidal Picanço. Eu mesmo trabalhei com Francisco Salles de Lima, Arnaldo Araújo, Anacleto Ramos, Humberto Moreira e Ivo Guilherme de Pinho, tempo em que a Velha Boa era dirigida por Sillas Assis, e o Departamento de Esporte um cubículo que funcionava no prédio da Imprensa
Oficial.Numa segunda passagem voltei a trabalhar no esporte da emissora, desta feita sob a direção do companheiro, jornalista Ernani Marinho Ferreira.
Dá um prazer danado lembrar dos bons tempos da RDM num dia festivo a propósito de um tempo em que nossos governantes tratavam com dedicação instituições importantes para a sociedade, como a Rádio Difusora de Macapá e a Guarda Territorial, ambas muito queridas pelo povo amapaense!
Parabéns à RDM pelos 77 anos de existência, abraço à todos os profissionais da emissora que segue respirando, apesar dos pesares!
Viva a Rádio Difusora de Macapá, viva a Velha Boa!

*João Silva é jornalista e cronista

Muitos anos depois…

Muitos anos depois…
Luiz Jorge Ferreira

A Escritora, Jornalista  e Poeta Amapaense, Alcinéa Cavalcante iniciou em seu Blog… a escrever sobre várias pessoas que no Amapá realizaram no tempo que lá moraram dentro de suas atividades desempenhadas em relação a comunidade com as quais se relacionavam, cada uma delas, trabalhos memoráveis, tanto dentro dos Esportes, Eventos Culturais,e Sociais, que mereceu e merece a realização desse registro.

Eu fiquei muito surpreso e orgulhoso de receber seu convite, para que traçasse um pequeno retrato de um grande Educador, homem ligado a fomentar os aspectos Culturais da região no que se refere as manifestações folclóricas como os Pássaros da Época Juninha, reuniões de grupos interpretando um texto já romanceado de muitos tempos, mas que sob a direção desse Educador recebiam uma roupagem mais interessante com musicas compostas para as apresentações do Grupo…
Que tinham nome de Passaros da região, Japiim, Uirapuru…e assim por diante…isso em Junho.
No fim do Ano, o Educador criava Peças sempre voltadas ao cunho educativo, e convocava os Escoteiros do Grupo Escoteiro que dirigia, compunha a trilha sonora da Peça Teatral, cujo o acompanhamento também era realizado por um Grupo Musical montado com componentes pescados entre os mais talentosos.
Nesse caso específico…
Os Joviais…
Afora esse trabalho motivador e educativo…
O Grupo Escoteiro Veiga Cabral mantinha suas atividades para qual fora criado com reuniões, jogos de Ping Pong, futebol de Campo e de Salão, em Campeonatos internos e externos , alugando a Quadra para que Associações usassem-na e estimulassem o serviço da Cantina instalada no local, que só se subtraia de vender Alcool e Cigarros…
Para os que tinham queda pela Radiofonia, e muitos tinham…foi montado um Serviço de Autofalantes e Sonoro que ajudava a animar essas atividades…
Para o apogeu de todas essas multiplas atividades..tinham os Escoteiros, entre os festejos civicos, seus dois grandes Acampamentos, que aconteciam um em Julho e outro em Dezembro…
Tudo isso sob a Égide da realização de jogos, pescarias, provas tipicas do Escotismo …provas de nó…agarrar o rabo da raposa( essa era uma pegadinha) que os veteranos não contavam e os novatos caiam como patinhos…
Esse Universo de momentos divertidos e educativos, aconteceram por muitos anos…
Com resultados positivos que se refletem até hoje nos frutos dessas gerações que por lá passaram…
Começaram a acontecer com a chegada do Chefe Humberto Dias Santos (foto),funcionário da LBA, que também exercia a função de treinador de futebol …foi treinar o São José…antes ele já treinara o Juventus…time ligado a Igreja Matriz, e a ordem religiosa que a gerenciava.
Para comandar o São José, cujo os treinos seriam realizados no campo localizado ao fundos da Sede Escoteira Veiga Cabral.
Uniu-se a figura do Chefe Escoteiro, a do treinador, a do Diretor Teatral…ao organizador de Cordões Pássaros e Peças Teatrais, ao Regente do Coral Escoteiro do Grupo de Escoteiros de Terra…Veiga Cabral , e de muitas outras apresentações educativas que instruiram e doutrinaram futuros bons cidadãos…
Ao Chefe Humberto e assessores,e colaboradores, Chefes Escoteiros também tal qual ele, que foram responsáveis por muitos cidadãos responsaveis que hoje pelos muitos cantos do país, orgulham-se de haver vivido e convivido entre si nesse período.
Eu ofereço palmas, gratidão, e nosso Sempre Alerta!

(Luiz Jorge Ferreira é médico, poeta, escritor, autor de vários livros)

“Espia Só” – Ruben Bemerguy

“Espia Só”
Ruben Bemerguy

A pouquidade imantava os apelidos. Na minha época, pelo menos, era assim. Todos tínhamos um, fosse menino, fosse menina.

Lembro bem de alguns: o “Olho de Poço”, o “Caranguejo de Ganho”, o “Pateta”, o “Di rã”, o “Piquita”, o “Barrasco”, o “Cabeco”, o “Catuné”, o “Judeu”, o “Caimbó”, o “Tourão”, o “Grosso”, o “Mentira em Dia”, o “Abana Peido”, o “Manoel Calça Vesga”, o “Caroço de Bacaba”, o “Espia Só”, a “Mana do Céu”, a “Susi”, entre outros tantos que agora não me socorre a memória.

Era uma espécie de bullying, antes mesmo do bullying ficar famoso. Naquele tempo, famoso era só o apelido. Impiedosos, quanto mais nos incomodávamos, mais apelidados éramos. A criação do apelido era uma interpretação bem nativa e maliciosa do outro. Às vezes, uma forra, uma revanche, uma contrapartida pra aproximar o outro do ridículo espalhafatoso.

Mas a gente cresce. É uma pena, mas não há como custodiar a pouquidade para sempre. As notícias dos da pouquidade também se apequenam. Um, pouco sabe do outro. Isso, essa privação, era inimaginável na pouquidade. É que a arte de sofrer ausências não se adivinha nunca, nem na pouquidade, nem depois dela.

Outro dia, sem vê-lo há muitos anos, soube, por acaso, do “Espia Só”. Soube na dimensão da dor. “Espia” estava internado em uma Unidade de Terapia Intensiva. O nível de glicose do “Espia” seria o culpado pelo cárcere. Sim, as UTIs são isso mesmo. A exceção da voluntariedade, aquelas voluntariedades no modelo “não tem outro jeito”, de resto é, em tudo, um calabouço.

Lá – nas UTIs – reinam as posições corporais. Os verticais mandam. Identificam o curso dos corpos horizontais e os gerem. Além, em extraordinária arte divinatória, preveem e organizam a notícia do luto. Os horizontais são mandados e, o mais grave, sem nenhuma energia para sublevação.

Os verticais se vestem de branco assusta(dor). Os horizontais entregam à própria nudez um sentido falso e, ainda que famélicos de trajes, revestem o corpo em fronhas frequentemente desenganadas.

Verticais e horizontais só guardam em comum seus sofismas. E os guardam em segredos quase sagrados. Descobri-los –  o sofisma um do outro – é o maior desejo entre eles. Assim, dedicam-se a interpretar indícios para alcançar o paralogismo do outro. Tudo, claro, ao contrário do cárcere, de modo absolutamente involuntário, ainda que facilmente certificados a olhos de nus de uns – verticais – e de outros – horizontais. Na esfera dessa adivinhação não há hierarquia. Essa, eu diria, é a única igualdade em uma UTI entre verticais e a população carcerária a que me refiro.

Talvez por isso, não sabem os verticais, p.ex., que o açúcar no sangue do “Espia” é contemporâneo a própria existência dele. “Espia” sempre foi um delicioso doce de mamão verde feito pela vó Esther. Desde a pouquidade “Espia” assustava por ser assim.

Obediente aos padrões das ruas de Macapá, tez preta, forte, pequena altura, cabelo pixaim, nariz fino e arrebitado e dentes como esculpidos em marfim.

Espia era também nosso goleiro no time da praça. Dada a posição em campo, já se prevê, com razão, que Espia não executava as tarefas do futebol com habilidade e, por isso, goleiro, sempre goleiro. A fragilidade acrobata do Espia, entretanto, não desmaiava a sua alegria quando fazíamos um gol. Era o primeiro a nos abraçar, embora o mais distante dos atacantes, se assim se pode dizer. O abraço do Espia me abraça a vida toda, especialmente agora, bem longe da pouquidade.

Ao contrário do futebol, Espia era imbatível na peteca e no celotex, esse, chamado hoje, parece, futebol de mesa. Espia colecionava os troféus que nós mesmos fabricávamos. Em regra, troféus de lata e cera de vela usada. Valia muito. Nossa mãe do céu!

Tenho muitas lembranças do Espia. Muitas mesmo. Não esqueço que os da pouquidade costumavam dizer “não levar desaforo pra casa”. Espia dizia, sua mãe havia cavado um poço no quintal da casa só pra ele desaguar as falas de atrevimento. Do poço, segundo o Espia, não brotava água, mas luz de lua. Para ele e sua mãe, água só amazonava. Luz de lua curava. Um santo remédio de vida. Hoje entendo bem a filosofia da mãe do Espia e do Espia.

Soube na dimensão da mais intensa dor do último suspiro do Espia no mundo dos verticais. Pra mim, Espia voltou ao poço que sua mãe cavou no quintal da casa. Se a água só Amazona, a luz de lua cura.

Bendita a sua memória – Z’L.

(Ruben Bemerguy é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras)

De quando os vizinhos eram os parentes mais próximos

Naquele tempo vizinhança era uma grande família. Falava-se que o vizinho era o parente mais próximo. E isso fazia muito sentido, pois qualquer sufoco – não importava a hora – recorria-se primeiramente ao vizinho.
Uma dor à noite? Corre lá no vizinho pra ver se ele tem um analgésico ou um chazinho.
Acabou o açúcar na hora de fazer o café? Ninguém ia tomar café amargo. “Menino, pega uma xícara e vai lá na vizinha pedir emprestado um pouco de açúcar”.
Ia  viajar e era dificil pegar taxi? (Naquele tempo se chamava carro de praça). O vizinho que tinha carro se prontificava a levar o viajante ao aeroporto.
Ia sair e não ficaria ninguém casa? Era só deixar a chave na casa do vizinho que o primeiro que chegasse ia lá pegar.
E aniversário de vizinho hein? Todo mundo queria ajudar a fazer a festa. Uma vizinha fazia o bolo, outra oferecia o vatapá, outra fazia o risoto e outras se ofereciam para moer a maniva da maniçoba… os homens ajudavam a botar a cerveja pra gelar naqueles enormes barris com imensas pedras de gelo e moinha. A moinha que um já tinha ido buscar na véspera numa serralheria.
Quando chegava um novo vizinho ele tratava logo de se apresentar indo de casa e falando: “Sou fulano de tal, estou me mudando hoje pra cá com minha família, trabalho nisso e naquilo e estou me colocando às ordens.”
A vizinhança mandava logo um bolo, ou qualquer outra guloseima, para os “novos parentes” como manifestação de boas vindas.
Era o tempo de cadeiras na calçada (não havia assaltantes) em animadas rodas de conversa enquanto as crianças brincavam de bombaqueiro, caí no poço, bandeirinha, tome esse anelzinho não diga nada a ninguém, esconde-esconde…
Todo mundo se conhecia, se gostava, se ajudava, repartia os frutos dos quintais.
Hoje praticamente os vizinhos não se conhecem, sequer se cumprimentam.
Lembrei disso porque ainda tenho alguns vizinhos “parentes mais próximos”. Ontem mesmo, minha vizinha Josy – que tem coqueiros em seu quintal – bateu à minha porta com um cacho de côco. “Côco do Chicola, vizinha”. E tem também o Janjão que volta e meia me traz sapotilhas do seu quintal ou uma porção de cação cozido feito por ele.

(Alcinéa Cavalcante)

Entre medos – Crônica de Ruben Bemerguy

Entre Medos
Ruben Bemerguy

Minha história tem muitas gravuras. Algumas verídicas. Outras, nitidamente imaginárias. É inútil ensaiar separá-las. Elas se equivalem a toda hora. Elas também se amiúdam aos gritos e em silêncio. Eu as ouço e dai tudo se passa dentro de mim. Tenho medo de minhas gravuras. Tamanho é meu medo que, se bem sei, é ele a ilustração mais presente em minha vida.

Mesmo de coisas simples, tenho medo. Medo de poesia, eu tenho. Por isso, pouco a visito. Se me arrisco percorrer seus monumentos, a lua logo influencia todos os meus movimentos e aí torno público o que trago de mais oculto. Sofro com isso. Sempre desejei alguns instantes de paz com a poesia. Poderia ela, não fosse meu medo, ter-me no colo. A pé, passear vagarosamente comigo. Soletrar-me. Despir-me e depois me deitar em seu casulo. Beijar meus olhos. Ah! Poesia, minha feiticeira. Só isso já me bastaria.

Também tenho medo dos que voam. Não pela preamar dos voos. Tenho medo do pouso. É um risco, por exemplo, pousar em um coração. Se ele é moço e se ainda não crê nos loucos, pobre pouso. Se já maduro, e se se crê exausto e em desuso, pobre pouso. Tenho muitos hábitos de defesa ao menor sinal de um pouso. Pernoito muito por isso desviando-me dos pousos. Não fosse esse medo, faria de mim um pássaro. Não para voar, mas só para pousar. Pousaria preguiçoso no corpo dele. Destruiria todos os muros. Juntos, içaríamos um ao outro. Indo e vindo. Não fosse meu medo, só isso me bastaria.

Tenho tantos e diferentes medos e, ainda assim, desguarneço-me. Contra essa desatenção ensaio todos os meus ódios. Há muito, pus meu exército de prontidão e às suas baionetas e foices descrevo minuciosamente cada poesia, cada possibilidade de pouso. Armo cadafalsos nos lugares mais altos. Secretamente, destruo cidades e dos escombros escuros que sobram desenho nomes. Sobre eles deito para me certificar que premeditadamente os aniquilei. Vou adiante. Alvejo a lua das sextas-feiras. Firo e confiro cada gota de lua derramando. Descanso ao perceber que não existem mais noites de sexta-feira. Também incursiono sobre os sábados e domingos. Inverto suas existências. Sábado é segunda-feira e domingo é terça-feira. Isso, só para proibir e escravizar. Faço tudo sem qualquer piedade. Ao fim, atiro o corpo dele a última estrela do universo. Cansado, volto. Rio do meu exército. Rio da lua gotejando e dos dias da semana que castrei para me proteger dos medos. Sozinho, choro. Choro muito de mim.

(Ruben Bemerguy é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras)

O pai que eu quero ser

O pai que eu quero ser
Por Renivaldo Costa

Quando nasci, meu pai era um ser que às vezes aparecia para aplaudir minhas conquistas. Quando me ia fazendo maior, era uma figura que me ensinava a diferença entre o mal e o bem. Durante minha adolescência, era a autoridade que me punha limites a meus desejos. Agora que sou adulto, é o melhor conselheiro e amigo que tenho.

Freud dizia que não existe nenhuma necessidade tão importante durante a infância de uma pessoa que a necessidade de sentir-se protegido por um pai. E certamente me senti e me sinto assim até hoje.

Durante a noite, no sofá, em frente à televisão, meu pai se conecta com o mundo. Entro em casa e pelo som da minha voz que se expande pela sala, seus olhos, antes sonolentos, despertam felizes e com um gesto que consome mil palavras, acena. “Oi, filho, como está?”, quer saber.

Aí percebo que “meu velho” anda cansado. O armário invisível do tempo começa a pesar nas costas. Os 80 anos não lhe deixam mais trabalhar. O comércio de madeiras, móveis e esquadrias era a sua praça. Mesmo aposentado, resiste em ficar parado. “Pra quê? Pra ficar olhando as paredes?”, inquire.

Sento-me ao seu lado e o acompanho nos noticiários. Pena que o Brasil dourado que prometeram para ele nunca veio. “Há 30 anos é a mesma conversa, só mudam as caras, mas a politicagem é a mesma. No tempo dos militares as coisas eram melhores”, comenta.

Naquele álbum amarelado de família, que todo lar tem, pego e folheio página por página, perplexo, com a mesma gravidade como quem descobre os poemas de Fernando Canto ou de Alcy Araújo, nossos maiores poetas.

Pai, contemplando tua juventude naquelas fotos, queria que por um momento não fosses meu pai, fosses meu melhor amigo. Teríamos feito tantas coisas juntos, como ter nos vangloriado de nossas namoradas, repartido confidências, jogado bola, colecionado gibis… Mas o destino nos pregou outra peça, outro papel: a minha barba nasceu da tua, a tua voz a minha, a tua estatura o meu tamanho.

O que me deixa feliz é que posso ainda abraçá-lo e a certeza que, no mesmo álbum, no amanhã do tempo, meu neto daqui há uns anos, talvez perguntará: “Esse é meu bisavô?”. E eu, orgulhoso, direi: “Sim, ele é o pai que quero ser”.