Você já viu porco dar risadas?

Você já viu porco dar risadas? Eu também não.

Mas é comum a gente falar “que porco dá risada” quando nos referimos a uma fruta muito, mas muito, azeda, muito ácida.

“Nossa! Essa laranja tá tão azeda que até porco dá risada”, dizemos, fazendo careta, quando chupamos uma laranja insuportavelmente ácida.

Quando criança tentei várias vezes ver um porco rir, jogando a ele as frutas mais ácidas, como araçá, taperebá, limão caiana…

Tínhamos um vizinho que todo ano criava um porco para comê-lo no Natal. A vizinhança, sempre solidária, costumava mandar “babugem” para alimentar o bicho. Babugem é aquele resto de comida que fica nos pratos após a refeição. Junta-se os restos de todos os pratos, coloca-se numa tigelinha, numa lata ou num saco e aí está pronta a “babugem” que vai ajudar a engordar o suíno.

Pois bem, com a desculpa de jogar a “babugem” para o porco, a molecada jogava também um pedaço de araçá, um limão ou uma banda de laranja super azeda e ficava ali, escorada no chiqueiro, à espera que ao comer aquela coisa o porco do vizinho começasse a dar sonoras gargalhadas.

Às vezes o porco comia, outras não. Mas rir, nunca. Pelo menos na frente da patotinha.

Será que o porco era tímido e tinha vergonha de rir na frente de várias pessoas? A gente se perguntava isso, pois volta e meia algum moleque chegava contando que quando estava sozinho com o bicho ofereceu-lhe uma fruta azeda, o bicho comeu e se danou a rir. O moleque então entrava para a lista dos sortudos da rua e conquistava assim a posição de líder entre os demais.
(Alcinéa Cavalcante)

O Tempo – Evandro Luiz

O Tempo
Evandro Luiz

No principio Deus criou o céu a terra…e também o “Tempo”. Depois de sete dias, Ele completou a sua obra. Literalmente um lugar paradisíaco. E só aí então foi descansar.

Tudo corria na maior tranquilidade. Na maior paz. Parecia assim, um lugar onde jamais haveria choro, tristeza, e sofrimento. O “Tempo” então sem nada a fazer começou uma amizade com a cobra que não saía debaixo da Árvore da Vida. O Tempo” então perguntou a cobra: “por que você não vai ´passear na floresta? Mas a cobra disse que se sentia atraída por aquele lugar e que tinha o maior fascínio pela fruta daquela árvore.

O “Tempo lembrou que se alguém comesse daquele fruto haveria uma grande mudança no universo. Ainda assim, com todos os pedidos, a cobra não resistiu e arrancou o fruto da árvore da vida. Quando isso aconteceu a terra tremeu, árvores começaram a cair. Trovões eram tão fortes que pareciam bombas. raios cortavam os céus como se estivessem anunciando novos tempos. E estavam mesmo.

Um longo silêncio se fez, até que uma voz saindo de um lugar totalmente desconhecido, anunciava as novas regras no novo modelo de relação entre o céu e a terra. Foi dado ao “Tempo” um poder imensurável. Ele seria onipresente. Foi dado a ele o poder de decidir por quanto tempo deveríamos sofrer, por exemplo, por um grande amor. Todas as doenças estavam sob a sua tutela. Todas teriam tempo de validade. As epidemias só passariam a ser classificadas como pandemia se os homens tivessem perdido tempo com corrupção e desvio de dinheiro. Tudo era repassado para o todo poderoso. Que cada vez mais se convencia de que uma intervenção estava próxima. Tudo isso por que o Tempo perdia terreno. As geleiras derretiam rapidamente, as florestas sofriam com as queimadas e a pobreza crescia.

Tudo parecia estar sob o controle dos poderosos. Mas tudo tinha o seu tempo, inclusive o lado bom que pouca gente sabia exercê-lo. A harmonia com ele era fundamental para se chegar a felicidade. E isso não passava necessariamente pela questão econômica, mas sim espiritual. Fazer parte desse processo era tão difícil que poucos tinham sua parcela de tempo para exercê-la. O tempo era individual, coletivo e passageiro. Em alguns momentos era implacável, não perdoava aqueles que exploravam os menos favorecidos e crianças em trabalhos análogos ao de escravidão;  e em outros era tolerante, principalmente quem doava seu tempo com trabalho voluntário. Pois é desses daí que saíam os mártires. Pessoas que morreram acreditando em um mundo melhor para humanidade.. Mesmo com todo poder que lhe foi dado o tempo não para.

O tempo que passou já não nos pertence, está tudo registrado na biblioteca Dele. E na hora do julgamento final, a principal testemunha do júri será ele: O Tempo.

Chuva e barquinhos de papel

Nesta tarde chuvosa vejo, pela minha janela, um garoto só de calção soltando um barquinho de papel.
Sei que em muitos pontos da cidade, neste momento, outras crianças fazem o mesmo.
E pergunto aos meus botões:
Que sonhos transportam estes barquinhos de papel soltos pela gurizada nos riozinhos formados pela chuva?
Em que porto da vida eles ancoram?
Em que altura da vida-rio eles naufragam?

Na infância – já tão distante – soltei muitos barcos de papel que me levaram aos lugares mais longínquos e mais belos na minha imaginação de criança.
E quando a chuva cessava, de volta à realidade, eu saía quase correndo de casa para resgatar o barquinho que às vezes ficava encalhado em alguma pedra na margem da rua. Outras vezes ele caía na boca de lobo, que ficava na esquina da Almirante Barroso com a Leopoldo Machado, e de lá, por conta própria, seguia viagem por todos os rios e mares do mundo e perdia a rota do retorno.
(Alcinéa Cavalcante)

Meus secretos amigos

Meus secretos amigos
Crônica de Paulo Sant’Ana, que muita gente na Internet atribui a Vinicius de Moraes

Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos. Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta necessidade que tenho deles.

A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor, eis que permite que o objeto dela se divida  em outros afetos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade. E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas  enlouqueceria se morressem todos os meus amigos! Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende  de suas existências…

A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem. Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida. Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.

Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem que estão incluídos na  sagrada relação de meus amigos. Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure. E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como  são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente,  construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.

Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado. Se todos eles morrerem, eu desabo! Por isso é  que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles.   E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez,  fruto do meu egoísmo.

Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles. Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de  mim, compartilhando daquele prazer…

Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os  meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus  amigos!

A gente não faz amigos, reconhece-os.

Paulo Sant’Ana (1939-2017) era escritor, comentarista esportivo e colunista do jornal Zero Hora. Esta crônica está publicada no seu livro “O gênio idiota, o melhor de Paulo Sant’Ana”, que é uma coletânea das melhores crônicas dele publicadas no Zero Hora. Esta coletânea foi lançada em 1992.

Adoro velhos malucos – Crônica de Elton Tavares

Adoro velhos malucos
Elton Tavares

Resistir, fazer beicinho ou ficar chateado não adianta nada, todos envelhecemos. Lutar contra isso é uma guerra inútil, de fato. Acho legal a coroada que leva isso na boa, principalmente os velhos malucos. Adoro velhos malucos. Conheço uma porrada deles.

Os velhos malucos não se resumem a cuidar de netos, jogar xadrez ou cartas com outros velhotes encarangados. Não. Eles frequentam os bares das esquinas, falam besteira, tocam, dançam, namoram, bebem… Ou seja, vivem!

Os velhos malucos fazem de tudo por uma vida menos ordinária. Ou o que pelo menos resta dela. Entre as coisas das quais me gabo, está o fato de ser amigo de músicos, escritores, poetas e artistas em geral. Vários deles, coroas doidaços que curtem a vida como aos 20.

Falos de todos que estão acima dos 65 e ainda possuem o espírito inquieto e se recusam a ficarem mergulhados no tédio. Alguns são somente porretas, outros são paid’éguas, loucos varridos. E não pensem que falo somente de quem ainda curte a noite ou toma cachaça.

Admiro os que vão ao cinema no meio da semana, que viajam quando dá na telha, que sabem que já contribuíram bastante para suas famílias e sociedade para agora se dedicarem a viver tudo que quiserem.

Quem sou eu para dar conselhos a senhores que sabem muito mais da vida. Mas ser um velhote maluco deve ser bem mais feliz que viver numa cama, no fundo de uma rede, num sofá ou em uma cadeira de balanço à espera do “único mal irremediável”. Principalmente quando o senhor ou senhora vive na solidão.

Claro que meus velhos companheiros doidões não abdicam de seus afazeres corriqueiros, mas também não colocam tanto peso em cima de algo tedioso que não lhes dá prazer. E acho isso o máximo!

Os velhos malucos não estão mais atrás de sonhos impossíveis ou de tesouros. O que eles querem é viver bem com o que possuem e em paz com os seres humanos que se tornaram. Suas experiências e histórias rendem bons causos e conselhos. A gente se diverte com tanta prosa poética.

Falo de exemplos como o de Carter Chambers (Morgan Freeman) e Edward Cole (Jack Nicholson), no filme “Antes de partir”. Se meu pai estivesse vivo hoje, faria 70 anos e tenho certeza que o saudoso Zé Penha seria um velho maluco.

Tomara que eu, se me tornar um velho gordo de barbas e cabelos brancos, seja um coroa maluco e saiba aproveitar o número de anos vividos da melhor forma possível. Que como hoje, tenha muito mais alegrias que tristezas. Que também tenha desenvoltura para bater papo e entrevistar outros velhotes doidões ou jovens com corações ávidos por aventura, ambos sedentos de vida.

Eu queria mesmo é que a velhice não impedisse ninguém de ser feliz. É isso!

“Os velhos malucos são mais malucos que os jovens” – Duque de La Rochefoucauld ( François Poitou).

A tacacazeira de olhos ternos e largo sorriso

Dona Mangabeira era uma negra de olhar límpido, sorriso largo e dentes tão brancos como os guardanapos de algodão que ela mesma fazia para cobrir as panelas.

Foi uma das primeiras tacacazeiras da cidade. Era do bairro da Favela. Sua banca (naquele tempo não tinha os carrinhos de hoje) era montada na esquina da rua Leopoldo Machado com avenida Almirante Barroso. De longe se sentia o cheiro do tucupi. Esse cheiro dava água na boca atraindo tanta gente para sua banca. O camarão era vermelhinho e o jambu treme-treme.

Aos domingos, a movimentação era bem maior. Era parada obrigatória de quem passava por ali para ir ao estádio Glicério Marques assistir aos clássicos da época.

A todos – autoridade ou peão – Mangabeira atendia com alegria, contava histórias, fazia o tacacá do jeitinho que o freguês pedia.

– Mais goma ou tucupi? Quantas colheres de pimenta? Quer mais jambu?

E o freguês ia dizendo como queria.

De muitos ela sabia o gosto e já nem perguntava.

Contava que meu pai, o poeta e jornalista Alcy Araújo, era o único que tomava tacacá sem goma.

Mangabeira tinha um carinho especial pelas crianças. Para elas servia o tacacá em cuia menor e nada de pimenta.

Às vezes um moleque mais ousado pedia que ela colocasse um pinguinho. E ela, cheia de doçura, respondia: “Meu filho, criança não come pimenta”. E o moleque não insistia. O convencimento, tenho certeza, não era pelas palavras, mas pela doçura com que ela falava.

Além de tacacazeira, Mangabeira era excelente lavadeira. Daquelas que botava a roupa “pra quarar” e engomava usando ferro a carvão. Era também benzedeira, tirava quebranto de criança, fazia banho de cheiro pra curar gripe, catapora e sarampo e chás e garrafadas pra todos os tipos de males.

Mangabeira era uma imagem forte na paisagem do meu bairro e é uma das belas recordações da minha infância.

(Alcinéa Cavalcante)

Antônio Brasileiro, o homem misterioso que tocava músicas numa folha de mangueira

Uns diziam que ele era louco, outros falavam que era um bêbado. Não era  nem uma coisa nem outra, talvez misterioso, diferente de todos os outros homens que andavam  pelas ruas do antigo bairro da Favela. Ah, ele tinha sim mistérios guardados no olhar.
Sempre trajado elegantemente – calça social, sapato bico fino e camisa de mangas – diariamente ele percorria as ruas do bairro tocando maravilhosamente várias músicas, principalmente o hino nacional, numa folha de mangueira, por isso ficou conhecido como “seu Antônio Brasileiro”. Nunca vi ninguém, além dele, usar uma folha de qualquer planta como instrumento musical.
Louco não era, pois um louco jamais conseguiria essa proeza. Bêbado também não, pois caminhava sobre o meio-fio que, se muito, tinha um palmo de largura. Um bêbado não teria equilíbrio para tal.
Educado, mas de poucas palavras, cumprimentava todo mundo com um discreto bom dia, um aceno de mão ou inclinando a cabeça. Não falava de sua vida nem da vida de ninguém. Se alguém começava a lhe fazer perguntas tratava logo de pegar uma folha de mangueira e começar a tocar, assim fugia do interrogatório.
Quando ele aparecia tocando sua folha, as crianças corriam atrás dele e seguiam-no por alguns quarteirões. Ao ouvir o som, os adultos corriam para as janelas. Muita gente dizia que não havia ninguém que tocasse com mais perfeição que ele o Hino Nacional, em qualquer  instrumento que fosse.
Antônio Brasileiro nunca contou quando e como ou com quem descobriu que podia tirar os mais belos sons e tocar lindas melodias, soprando uma folha de árvore.
Seu endereço exato ninguém sabia. O certo é que morava na Favela (aqui abro um parêntese para dizer que o bairro da Favela nunca foi uma favela), talvez perto do estádio Glicério Marques, pois era por ali, na rua Leopoldo Machado que se ouvia, pela manhã, os primeiros sons de sua folha, depois descia a avenida Mendonça Furtado e seguia não sei para onde. Horas depois voltava pelo mesmo caminho.
Tinha família? Tinha sobrenome? Ninguém sabia. E se alguém lhe perguntasse não respondia, se punha a tocar. Como já falei, era homem de poucas palavras. Misterioso. E todos queriam desvendar, sem sucesso, os mistérios daquele tocador de folhas, que tinha o olhar sereno e quase nunca sorria.
Tinha profissão? Dizem que foi um cozinheiro de mão cheia do Hospital Geral e que do nada abandonou o emprego e passou a perambular pelas ruas. Por isso que uns dizem que ele era louco e outros que ele perdeu o emprego para o álcool. Mas eu reafirmo: nem louco, nem bêbado. Era o retrato da liberdade, livre de todas as amarras, talvez preso apenas aos seus mistérios que ninguém conseguia decifrar.
Às vezes quando caminho pelos canteiros floridos da avenida Mendonça Furtado ou à sombra das mangueiras da Leopoldo Machado imagino “seu Antônio Brasileiro” aparecendo de repente. Ele arranca uma folha de mangueira, começa a tocar, as pessoas aparecem na janela. Ele passa por mim, me cumprimenta com a cabeça, desce a ladeira e segue rodeado por um bando de moleques não sei para onde.
E eu sorrio. E quem me vê sorrindo assim sozinha nem imagina o por quê.
Antônio Brasileiro deixou seus mistérios impregnados na paisagem da minha Favela.

Quando meu amigo se perdeu na mata

Há muitos anos um amigo meu se perdeu na mata. Era caçador experiente, conhecedor dos segredos da floresta, acostumado a entrar na mata para relaxar, apreciar as árvores e caçar algum animal para comer.
Mas certo dia ele se perdeu. Ao atravessar um igarapé por cima de um tronco caiu e bateu a cabeça. Ficou meio zonzo e, ao invés de tomar o caminho que o levaria ao ponto de partida, tomou o rumo contrário.
Ele entrou na mata com dois amigos e como sempre cada um seguia para um lado, mas às 16 horas tinham que se encontrar no ponto de partida para retornar.
Nesse dia meu amigo não retornou. Seus dois amigos esperaram até o anoitecer… e nada. Voltaram para Macapá para pedir ajuda.
Muita gente se mobilizou. Mesmo quem não tinha experiência nenhuma com mata queria ir à procura dele.
Passaram-se dias e dias… e nada. Os que entravam na mata davam tiros na esperança de que ele respondesse. É assim que costumam fazer. Mas, desta vez, não havia resposta.

Na caçada anterior, meu amigo trouxe uma guariba para ser seu bichinho de estimação.

Já estava para completar um mês do desaparecimento quando a mãe dele lembrou da guariba. E disse: “É a mãe dessa guariba que está prendendo meu filho na mata. Soltem ela, devolvam ela para a mata que ela vai soltar meu filho”. Dito e feito.
Soltaram a guariba (meu amigo Cristiano – o Raimundo Maia Barreto – é testemunha disso).
Pois bem, no dia seguinte o desaparecido foi encontrado navegando num rio numa jangada que ele improvisou com galhos de árvores e o pouco que restava de sua roupa.
Foi encontrado por um avião de pequeno porte cedido pelo governo para sobrevoar a área.
“Não foi o avião que me me encontrou. Fui eu que o encontrei”, contava, dizendo que ao ouvir o barulho do avião correu pro rio na jangada que acabara de fazer e fez sinal levantando os braços.
Trazido para Macapá, foi internado no Hospital Geral (hoje HCAL) para fazer exames. Dois dias depois em sua casa nos contava a aventura.
Relatou que ouvia os tiros dos colegas, mas não podia responder porque só tinha uma bala na sua espingarda que não poderia desperdiçar pois lhe seria muito útil se encontrasse algum animal feroz pela frente. Se alimentava de frutas, folhas e raízes; matava a sede com água que tirava de um cipó; passava as noites acordado no topo de árvores; dormia pouquíssimas horas por dia e para isso deitava no chão e se cobria com folhas; passou fome e muito frio e não tinha noção de quantos quilômetros andou – pela floresta, riachos e subindo e descendo morros –  procurando a saída. Em vários momentos percebeu que andava em círculos, pois sempre passava pelo mesmo lugar.

Quando foi encontrado estava magro, quase nu, os pés, braços e pernas cheios de arranhões. Mas com muitas histórias para contar para os amigos, colegas de magistério e alunos pelos quais era tão querido.

E se alguém pensa que depois dessa ele se aquietou… negativo. Muchê continuou indo pra mata, porém nunca mais caçou guariba.

Adoráveis invasores

Discretamente eles começaram a frequentar o quintal e, como ninguém se importou, eles passaram a se achar donos. Fizeram morada nas árvores, comeram algumas frutas e jogaram outras no chão.
Um dia avançaram mais e chegaram até a garagem, onde começaram a cantar e fazer festas. Ninguém os expulsou.
Não demorou muito um deles, talvez o líder do grupo, ousou mais: entrou sorrateiro na área de serviço. No outro dia voltou, comeu a ração dos cachorros e chamou seus comparsas para um banquete.
E como ninguém se importou abusaram mais ainda; invadiram a cozinha, se apropriaram da fruteira e bicaram mamão, bananas e outras frutas.
Da cozinha para a sala foi um pulo, ou melhor, um voo. E agora são os primeiros a chegar para o café da manhã e alegrar nosso amanhecer com seus maviosos cantos.
(Alcinéa Cavalcante)