Artigo dominical

O barco
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Dois turistas, que estavam acampados na beira de uma lagoa, decidiram atravessar o lago para fazer uma visita ao boteco do lado oposto. Ficaram por lá boa parte da noite tomando umas e mais umas. Finalmente o bar fechou e eles foram obrigados a voltar para casa. Cambaleando, demoraram a encontrar o seu barquinho e, mais ainda, para   sentarem-se nele. Pegaram nos remos e começaram a remar com força. Depois de duas horas, perceberam que ainda não tinham chegado.

– Não deveríamos ter alcançado o outro lado? – perguntou um deles ao amigo.

– Certamente – respondeu o segundo – mas talvez não remamos com a devida energia. Duplicaram os esforços por mais uma hora. Estavam exaustos, mas somente quando o dia começou a clarear perceberam que não tinham saído do lugar. Tinham esquecido de desamarrar a corda que segurava o barquinho ao trapiche.

Sem dúvida uma lei é como um caminho bem traçado pelo qual é possível avançar seguros. No entanto ela pode transformar-se numa corrente ou numa “corda” que nos prende e que nos impede de sair do lugar. Jesus, no evangelho deste domingo, diz-nos que não veio para abolir a Lei antiga, mas para dar sentido e pleno cumprimento a ela. Com efeito, uma lei mal entendida ou cumprida ao pé da letra pode nos deixar com a consciência tranquila, mas pode também nos afastar do seu próprio objetivo. Pelos próprios evangelhos aprendemos que Jesus muitas vezes agiu com extrema liberdade a respeito da Lei e, por isso, foi criticado e condenado. Para ele, tinha algo de mais precioso que a mera observância de uma norma: a vida e o amor ao irmão sofredor ou pecador que fosse. O Deus Pai que Jesus veio nos revelar não era nem um fiscal e nem um juiz. Não era um Deus para poucos escolhidos, perfeitos e imaculados. Agora sabemos que Ele é, em primeiríssimo lugar, amor misericordioso, feliz por perdoar e alegre por acolher os caídos à beira das estradas da vida. O Deus, Pai de Jesus e Pai nosso, é um Deus consolador, bondoso e compassivo. Para entender isso precisamos nos libertar das amarras de uma Lei fria, sem coração, uma Lei que mata em lugar de dar vida. À Lei antiga faltava mesmo o cumprimento que Jesus trouxe e que resume a própria Lei e os Profetas: o novo mandamento do amor.

Somente assim entendemos que não basta “não matar” o irmão. Jesus nos pede de respeitá-lo, de não cultivar raiva ou rancor. Com efeito, o ódio faz que “matemos” o irmão com o pensamento, que o condenemos com o nosso julgamento, que o apaguemos de nossa vida com o desprezo. Para nós é como se não existisse mais, é como se estivesse morto.

Também não devemos praticar um culto somente exterior. Não adianta apresentar uma oferenda bonita a Deus, se o nosso coração está cheio de pensamentos e projetos de vingança. Para que a nossa oferta seja agradável a Deus precisamos ter o coração em paz, precisamos estar reconciliados com os irmãos. Separar as práticas religiosas da nossa vida e dos nossos pensamentos significa esvaziar o culto, e deixar Deus fora da realidade torna inútil a fé. A nossa oração ganha o coração de Deus quando sabemos perdoar e aceitamos ser perdoados.

A fidelidade matrimonial também não pode ser mera fachada. Parar garantir isso precisa vigiar até sobre os próprios olhares e desejos. O amor conjugal deve ser alimentado todo dia pela honestidade e pela confiança recíproca. Quando não é mais motivado e mantido pelo amor, o matrimônio se torna realmente uma prisão insuportável e a convivência uma tortura. Se queremos sustentar a alegria da família, precisamos ter a coragem de cortar relações duvidosas, vícios perigosos e interesses escusos. É o tesouro do amor que sempre deve ser defendido.

A verdade deve resplandecer por si mesma, sem juramentos e inúteis palavreados. Para entrar no reino do céus, é necessário algo mais que a obediência a uma lei: é necessária a criatividade do amor. Muitas “cordas” ainda devem ser cortadas para sair do impasse do nosso comodismo disfarçado de obediência.

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