Desorganizador

DESORGANIZADOR
Rui Guilherme*

Para Amarante,
Com raiva, com amor e muita saudade.

 Por ordem médica, comprei um tal de Porta Med Super – organizador semanal de cápsulas, comprimidos e pílulas. O dispositivo contém 7 porta-cápsulas  destacáveis, com quatro compartimentos individuais cada (manhã, almoço, jantar e noite), um para cada dia da semana. Mais organizador impossível, inclusive ao dizer que serve para armazenar dia a dia “cápsulas, comprimidos e pílulas”; produtos que eu nem sabia que eram distintos um do outro, não sendo – como pensava na minha santa ignorância – senão meros sinônimos entre si.

Imagino como ficariam meu pai e o meu amigo/irmão Amarante  diante do Porta Med Super. Em nosso escritório de advocacia em Belém, na mesa de Papai era impossível enxergar-lhe o tampo: havia uma grande profusão de papéis, documentos, pedacinhos com anotações as mais diversas – um caos completo. E que ninguém se atrevesse a tentar arrumar: Papai jamais consentia, e a resposta que ele provavelmente daria diante de uma tentativa de invasão em sua profusão de papelório era a mesma que o Amarante um dia deu para a filha Tahys:- “Deixaaa isto aí que eu sou organizado na minha bagunça.”

Éramos quatro irmãos: Sérgio e eu; Amarante e Jorge. Os três primeiros, advogados; o último, médico. Do quarteto, sobrevivo eu, o derradeiro, o fona. Sérgio e Amarante estiveram juntos a maior parte de sua vida, desde a faculdade e no Departamento Jurídico do Banco da Amazônia em Belém, até nos anos que passaram em Macapá, trabalhando na Procuradoria Geral do Estado e morando na República Aristocrática de San Marino, meus vizinhos. Lá chegou a ir em visita Jorge, médico, violonista, seresteiro emérito, cuidador de indígenas, mais parecido comigo do que com o irmão dele, assim como Sérgio e Amarante pareciam ser mais irmãos um do outro do que éramos Sérgio e eu, filhos do mesmo casal.

Dizem que sou organizado, e quem assim me julga, faz-me justiça. O Jorge, não sei. Do quarteto, foi o primeiro a deixar este planeta. Organizado sou, sem ser fanático. Mas gosto de ter tudo em seu devido lugar, até para evitar o saco que é de ter que ficar procurando as coisas. Já estando quase que com meu prazo de validade vencido, para continuar podendo escrever minhas mal traçadas linhas, ouvir meus concertos, ver meu futebol, inteirar-me do noticiário, ler meus livros, curtindo minhas memórias, amando meus amores e me esforçando para perdoar a quem me tem ofendido, tenho que fazer minha ginástica três vezes por semana, observar uma dieta pobre em gorduras e açúcar e tomar diariamente a bateria de remédios que o médico me prescreve. É aqui que entra o organizador Porta Med Super, do qual o Amarante iria fazer gozação. Ele e Sérgio, contrariando a aprovação que eu receberia do médico Jorge. Afinal de contas, ele e eu parecíamos mais um com o outro que com os nossos irmãos mais velhos.

Jorge falava de sua derradeira mulher como sendo a nona geladeira, pois a cada casamento que se desfazia, uma geladeira ia embora.

Sérgio partiu sem tirar a farda verde oliva, apresentando-se como primeiro tenente Vasconcellos, da Arma de Infantaria. Fazia juramentos – que nem sempre cumpria – invocando a lâmina de sua espada de oficial. E por aí seguia, enquanto nos deliciávamos nas tardes de vinho e churrasco na casa deles no Condomínio San Marino, a qual Sérgio dizia que era a “Base do Exército”. Bem a propósito, e levando em conta outra mania do meu irmão mais velho de amar os Estados Unidos, Amarante dele falava que Sergio era militarado e amaericanalhado. Esse Amarante!…

Esse Amarante! Ele dizia, entre outras coisas, que iria ministrar um curso de “vitologia”, recomendando que Sérgio e eu nos matriculássemos, para que aprendêssemos a viver com ele. Não passou de projeto, rejeitado à unanimidade. Primeiro porque ninguém ensina ninguém a viver, depois porque viver como Amarante viveu… sei não… nem ele conseguiria ensinar, nem o melhor e mais esforçado aluno iria conseguir aprender.

Amarante partiu no raiar do dia, seis horas da manhã. Recebi mensagem de Tahys. Ela o adorava! Tentei consolar a filha desolada, mas caí num choro sem controle, e acabei sendo consolado por ela.

Ouvi com raiva a notícia da morte do amigo singular. Pouco antes dele partir, fruto quiçá de premonição que ocorre com os iluminados, Amarante ouvia a música “Epitáfio”, dos Titãs. A letra diz que “devia ter amado mais, arriscado mais, ter visto mais o sol nascer”. Daí minha raiva, talvez frustração, de não ter convivido mais com ele, com Jorge, com Sergio; de não termos fruído juntos mais nasceres do dia, ocasos, luares. De não termos brigado menos e trocado mais tanto amor que deixamos inconfessado. Por isso esta saudade tamanha, mitigada, mal-e-mal, pela esperança de que o quarteto volte a reunir-se, respeitando um a bagunça do outro, ou sua organização, ou seus infames trocadilhos, ou suas mais bizarras idiossincrasias.

*Rui Guilherme é poeta, escritor, autor de vários livros, juiz aposentado e atualmente mora no Rio de Janeiro

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