Memorialismo – Leia a maravilhosa palestra de Leão Zagury

Médico, escritor, autor de vários livros, dentre os quais o encantador “É assim que eu conto”, Leão Zagury esteve em Macapá semana passada participando das comemorações dos 70 anos da Academia Amapaense de Letras e proferiu esta maravilhosa palestra terça-feira, 20.

Leiam:

“Ilmo. sr. Presidente da AAL professor Fernando Canto, prof. Maneca, acadêmicos  e demais componentes da mesa, meus conterrâneos.

Em primeiro lugar quero deixar claro que não sou um literato portanto peço aos ilustres membros dessa douta academia que perdoem os excessos que decorrem do amor e do desejo de contribuir. Na verdade, sou apenas um idoso audacioso que ama essa cidade e conta suas histórias. 

Como não poderia deixar de ser, passei em revista alguns pontos a serem destacados sobre memorialismo, meu gênero literário.

Memorialismo – é o gênero literário em que o autor narra a história da vida de uma ou de várias pessoas. Assim como as biografias contam a vida de alguém ou de um lugar ou de ambos. Trata-se, portanto, de Escrever a Vida

Nós, que falamos português, só ouvimos o termo biografia no século XIX, onde se encontra de tudo desde trabalhos artísticos a opiniões, valores e crenças. Em geral tratam de pessoas públicas, cientista, esportistas ou dos que provocaram impacto na sociedade. 

Na escrita biográfica destaco a corrente positivista onde se realçam os heróis da sociedade, exemplos a serem seguidos e seus feitos dispostos cronologicamente, mostrando seu progresso. E a marxista, em oposição, que dá enfoque às estruturas sociais e ao coletivo. Devido a essa visão em um determinado momento da história, as biografias passaram a receber menos relevância como gênero de escrita. As correntes da escrita biográfica têm em comum o caráter de relato, que conta uma história sem excluir aspectos contextuais, sentimentais, cultura, vida privada e até política.

Sônia Farias Professora de Teoria da Literatura UF de Pernambuco esclarece que “Teorias dedicadas ao gênero memorialista buscam elucidar o filão autobiográfico. Os relatos de indivíduos fornecem informações, e o inscrevem no tempo e no espaço, por meio da expressão ficcional ou poética. A memória familiar reconstruída dramaticamente e tecida pelo protagonista ou pela voz poética revela e traduz a formação social no bojo das transformações culturais e científicas ao longo da história”. 

O século XX marcou o advento da biografia romanceada, na qual se recria, ficcionalmente, o material coletado sobre os biografados. Saliento a biografia de Stefan Zweig, Judeu, humanista, pacifista e crítico do nazifascismo. Esse gênero, geralmente, é resultado do levantamento da própria existência do autor e inclui confissões, memórias e cartas, que revelam sentimentos íntimos e a própria experiência como fez também Benjamin Franklin. 

Na atualidade, o interesse pela vida das pessoas cresceu muito. Autores consagrados escreveram ou tiveram suas biografias escritas por outros dando consistência a essa atividade literária. Dou como exemplo as biografias de Sartre e Simone de Beauvoir e no Brasil Afonso Arinos e Pedro Nava. 

Nava, médico como eu, membro da Academia Nacional de Medicina pertenceu à geração modernista de Belo Horizonte. É considerado o maior memorialista da literatura brasileira, autor do Baú de Ossos e Balão Cativo entre outros e se tornou minha referência nesse gênero literário. Traçou um painel dos costumes do Brasil no século XX, através da descrição dos hábitos familiares e populares, abrangendo quase um século, de riqueza temática, vocabular e erudição. Nava só assumiu a literatura quando se aposentou. A morte do pai quando tinha oito anos, foi o início das suas lembranças. Nos seus livros relata suas experiências de vida, sociedade e medicina. Comove e fascina o leitor, com as lembranças da infância. 

Segundo Drummond “possuía essa capacidade meio demoníaca, meio angelical, de transformar em palavras o mundo feito de acontecimentos.” 

Não ouso me comparar a esse eminente literato, mas modestamente, procurei pisar suas pegadas.

Depois de atingir meus objetivos profissionais como médico, tendo fundado e presidido a Sociedade Brasileira de Diabetes e a Academia de Medicina do Rio de Janeiro e me tornado Membro do American College of Phisitians entre outras, resolvi contar de onde vim, porque “sou como sou” e porque ajo “desta ou daquela maneira”. Apaixonado por ficção, principalmente quando usada para falar da vida real, resolvi fazer parecer mentiras as verdades que vivi. 

Entendi lendo Nava que vidas simples e provinciais podem ser universais. Percebi que minha história se confundia, com a história desta cidade. Estimulado pela apaixonada relação que mantenho com Macapá, que carinhosamente, com licença poética de Garcia Marques, chamo de “Minha Macondo”, suas lendas, minhas histórias de família e o incontrolável desejo de impedir que o tempo, esse demolidor implacável, destruísse minhas lembranças, resolvi deixar meu testemunho escrito para meus amigos e descendentes contando como “vi e senti a vida”. 

Conclui que poderia retratar nossa cidade através da maneira pela qual as pessoas conviviam sabendo que essa interação social permeia o imaginário coletivo. E entendendo que apenas a literatura poderia mostrar essas características, descrevendo pessoas, hábitos, costumes, relações e a ocupação do espaço urbano. Foi isso que procurei traduzir com minhas histórias e por isso escrevi o livro “É Assim Que Eu Conto”. 

Minha memória autobiográfica percorreria a linha de uma história pessoal e ao mesmo tempo coletiva, contando o que chamei de “ofício de viver”. Utilizaria este enorme e ao mesmo tempo minúsculo conjunto de observações, memória, sentimentos e escrita para reconstituir como se vivia aqui enquanto a guerra dizimava vidas na Europa. 

De início sofri pela certeza de que jamais conseguiria inserir nas minhas narrativas todo o contexto e todas as pessoas. Resolvi seguir tendo em mente que esse poderia ser motivo para outras histórias e ampliar meu universo em um novo livro. Na minha fantasia nasci “quase gêmeo” do Território Federal do Amapá. Viemos ao mundo em setembro de 1943, e crescemos juntos, o Território e eu, de mãos dadas como irmãos. 

Criança acompanhei a chegada do governador Janary Nunes. Escutei, da minha rede, nas madrugadas, os passos marcados das botas daquele homem poderoso e gentil batendo sistematicamente na calçada em frente à minha casa a caminho da antiga sede do governo. Anos depois me coube acompanhá-lo como médico, o que muito me honrou. Janary trouxe consigo a esperança, a luta contra as doenças e o analfabetismo, o otimismo e o progresso que aumentou com a descoberta das jazidas de manganês na Serra do Navio, revolucionando a economia. Assisti à construção de escolas, hospital e do fórum e seus magníficos leões. 

Tenho saudade daqueles tempos em que o sorriso habitava os rostos dos macapaenses.

Muito me entristeceu quando minha editora vetou colocar no livro os reais nomes das pessoas só me permitindo os da minha família. Entretanto, os mais velhos, seguramente vão identificar os encantadores macapaenses da minha infância e juventude. Exatamente os que aqui viveram e muito contribuíram para forjar minha personalidade. Fixando no papel um pouco deles, de seus gestos e personalidades, através da minha história pessoal expresso minha gratidão.

Assim como Nava, comecei pela relação com meu pai, base do meu vínculo com a cidade. Esse incrível macapaense apaixonado, me mostrou o amor pelos semelhantes, a diferença entre o discurso e a ação, a importância do exemplo, a generosidade, a dar sem receber. Me mostrou o que era a amizade, cristalizada na benquerença do meu pai pela figura forte do seu irmão negro, meu querido tio Casemiro. Eram irmãos, mas irmãos mesmo, desses que não traem e que perdoam os erros. O tio era o irmão negro do meu pai branco e judeu e aqui viviam. A cidade lhes dava o “caldo de cultura” para permitir isso enquanto em outras plagas se matavam pessoas apenas por serem diferentes ou praticarem crenças diversas. Aqui neste paraíso conviviam Judeus, brancos, negros e árabes. Eu amava o tio Casemiro e o amava tanto que um dia passei pó de carvão na pele para ficar igual a ele. Com eles entendi que o mundo era de todos, que o preconceito mata e o respeito pelo diferente une e enche o coração de alegria. 

Como já disse somos judeus e não contávamos com uma sinagoga e a religião por nós era aprendida “de ouvir dizer”. Na verdade, fazíamos uma inocente confusão. Guardávamos o Shabat e acompanhávamos as procissões. E como isso nos fez bem! Acreditem. 

Essa foi a base da minha formação moral e ética.  A ausência de preconceito. E isso eu aprendi aqui nessa cidade que transpirava amor, solidariedade, progresso e fraternidade. 

Não posso deixar de marcar minhas saudades. Tenho saudade do Macapá Hotel onde se podia saborear um Flip guaraná no final da tarde, dançar boleros e jurar amor eterno; do grupo Escolar Barão do Rio Branco onde fui alfabetizado; da olaria que a tantos deu emprego e cujos vasos com decoração marajoara ainda guardo com carinho; da Turma do buraco que plantou tantas arvores e deu emprego aos jovens – e tantas outros locais e iniciativas.

Acredito que os que me lerem no “É Assim Que Eu Conto”, terão a oportunidade de voltar no tempo e ver que na minha Macondo; um bode podia se transformar em um carneiro, sentir a angústia que a derrubada de um abacateiro podia provocar em uma criança e quanto doía em homem simples um coqueiro anão ser abatido, vivenciar o medo da Matinta Pereira e o pavor que os meninos tinham do médico que veio a cidade lhes cortar “as bolas”. Poderão se deliciar com uma comida esquisita chamada “cachorro quente”, na verdade um sanduíche de picadinho bem temperado que ainda hoje me faz “aguar”; entenderão porque minha mãe dona Clemência na verdade se chamava Piedade e poderão entender minha relação carinhosa com uma senhora idosa que se expressava com mãos calosas de quem tanto trabalhou e me adoçava a boca com o melhor mingau de mucajá, conhecer as lendas e verdades que cercam o meu avô Capitão Leão Zagury, que escolheu essas terras para estabelecer sua família. Voltarão no tempo e namorar ao pé da cruz em frente ao velho cemitério, ter medo de fantasmas e roubar um beijinho da namorada no passeio da tarde de domingo no Trapiche. 

Ainda tenho histórias para contar. Ainda tenho gente para lembrar. Preciso falar do seu Congó que tanto me assustava e do que me ensinou, da visita do candidato Jânio Quadros, das matines no cine teatro territorial onde assisti aos domingos os filmes de Tarzan. Não, não falei da querida Sarah Alcântara, fiel amiga da minha mãe, que me mostrou um pouco do que era ciência quando me deu uma revista que se chamava “Ciência em quadrinhos”. Não falei da generosidade das minhas irmãs Cesarina e Dos Anjos exemplos de generosidade e gratidão. Das irmãs Quitéria e Tereza Tavares, que talvez não saibam o quanto as quero. Não falei das flores da dona Anita. Mas sobretudo não falei da saudade do Flip Guaraná parte da memória afetiva de muitos. Não posso esquecer minhas professoras Orlândina Melo e Acinê Garcia que me ensinaram a ler e escrever e da professora Zenar que me disse que escrever com a mão esquerda poderia ser útil e o quanto isso me foi realmente útil em um momento posterior da vida.  Não se pode falar de memória aqui sem falar do Memorial do Amapá e desse incansável Walter do Carmo. Não, não falei de todos, mas os que faltaram servirão de estímulo para manter o entusiasmo pela vida. 

Houve um momento em que pensei ter me desligado dessa cidade. Mas Macapá me chegava de diferentes maneiras, como quando o diretor do meu hospital pediu para atender alguém “de um lugar do qual eu nunca ouvira falar”, da moça que me disse ser minha “irmã de leite” por ter sido amamentada pela minha mãe. 

No meu livro deixei claro a dor da saudade e de como foi para mim viver longe daqui.

Considero-me testemunha de uma época e ao reler meus textos muitas vezes choro e outras sorrio porque os meus personagens ainda vivem. Contando minhas histórias penso estar apresentando aos mais jovens os ícones da minha época e agradecendo aos que trabalharam braço a braço com meu pai para que eu enfim conseguisse meu diploma de médico. 

Obrigado macapaenses, muito obrigado. 

Garcia Marques retirou-se da vida pública ao perceber que seu estado de saúde vinha se agravando. Escreveu uma carta de despedida aos amigos dizendo que se D’us o presenteasse com mais vida diria aos “velhos que a morte não chega com o fim da vida, mas, sim com o esquecimento”. 

Escrevi para que ninguém esqueça os simples que aqui viveram e construíram essa metrópole com amor e trabalho.  Obrigado macapaenses, muito obrigado.”

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